segunda-feira, 27 de junho de 2011

Um must da praia 2

Dias de calor intenso com mergulhos em ondas de dimensão média – que eu cá sou um bocado medricas com a altura das ondas – são das melhores coisas do mundo.
Só há um elemento capaz de estragar esta maravilha: o vento. Porém, há que tirar partido de todas as situações e quando se levanta o vento não nos devemos levantar da toalha, antes pelo contrário.
Se estivermos atentos veremos todo o tipo de pessoa a correr pela praia, normalmente na mesma direcção, a do vento. Precisamente. Correm atrás dos seus chapéus-de-sol que se julgam borboletas, levantam a estaca e voam dali para fora, imunes a tudo e a todos, vazando olhos pelo caminho com as varetas em riste e o tecido bem esticado, a brincar como se fosse uma vela latina.
Alguns proprietários pedem ajuda aos banhistas: sem fôlego mas de braço esticado, dão sinal para parar a marcha do chapéu que as mais das vezes não se deixa apanhar e acaba encalhado noutro chapéu, numa geleira ou nos costados de alguém.
Há estatísticas oficiais que comprovam que o dono do chapéu a meio da correria já tem vontade de desistir, não porque queira comprar um novo, mas pela vergonha que a maratona sempre acarreta com risos provenientes de todos os cantos do areal.
Isto é comprovado pelo facto de, quando o chapéu decide fugir, haver sempre, mas sempre e a menos que o dono esteja sozinho, uma ligeira discussão para se saber quem deverá ir atrás do chapéu, com promessas de fazer isto e aquilo em compensação de não desatar a correr pelo piso difícil que é a areia e, pior, fazer o caminho de regresso por entre gargalhadas do público e caras furiosas com varetas de comportamento duvidoso.
Volto a questionar-me como é que ainda há quem diga que na praia não se faz nada?

Um must da praia

Um must da praia são os buracos na areia, a que os autores teimam em chamar… castelos. Em quase meio século de praia nunca vi alguém construir um e poucos são os que humildemente assumem que vão fazer um simples buraco.
Por norma estes engenheiros são pais de crianças de pouca idade e com frequência os seus petizes desistem da obra ao fim de um quarto de hora ou pouco mais; há os pais que desistem em simultâneo mas há aqueles que, parecendo ter contrato de empreitada, continuam a escavar furiosamente e aumentam o buraco /castelo criando na zona um ar de impacto de meteoro.
As crianças têm a maravilhosa característica de não precisarem ser apresentadas sequer para fazer amigos e rapidamente o buraco/castelo se enche de utilizadores. Nesta altura os pais empreiteiros dividem-se em dois grupos e aqui reside o fantástico de tudo: há os pais que fomentam a sobrelotação da construção e há os pais que querem que o pobre do buraco se mantenha como um resort privado da sua prole, e que não obstante não serem directos afugentando as outras crianças, mas tudo fazem para que se afastem. A cereja em cima do bolo aparece quando os filhos do construtor se afastam para ir à água, por exemplo, e ele fica ali a guardar o buraco, como quem guarda uma herança que quer deixar aos seus sucessores. Esta pose é acompanhada de gritos para que se despachem e venham brincar no castelo, qual Martim Moniz ali entalado entre a vontade de mergulhar e a necessidade de preservar o seu árduo trabalho…
Entretanto já a figurinha do mestre de risco adquiriu um ar cómico pois as suas crias antes de irem à água depositaram-lhe os respectivos chapéus na cabeça, que ele transporta como se fosse a própria Marge Simpson.
Noutra fase do processo aparecem outros pais, que se aproximam devagar, tentando perscrutar se o homo habilis é sociável ou não. Aproximam-se de cócoras, aos saltinhos para, por um lado, acompanhar a altura e o andamento dos seus rebentos e, por outro, para garantirem uma certa distância e não ficarem muito à mercê duma eventual fúria do construtor que, com frequência, está fortemente armado com pás, ancinhos, baldes e outras artimanhas.
Já se verificaram casos em que o dono da obra põe o outro a correr dali para fora, mas também já aconteceu que os dois se aliassem para aumentar a fortificação, vulgo buraco na areia. Chama-se a isto fazer uma aliança e não fosse dar-se o caso de nunca mais se verem na vida, haveria muitas probabilidades de casarem os filhos anos mais tarde. Estas probabilidades aumentam, bem como a solidez da aliança e a profundidade do buraco, se ambos forem do Benfica.
E ainda há quem diga que na praia não se faz nada...

quarta-feira, 22 de junho de 2011

A rainha da noite

Tudo começou quando recebi uma chamada do Vasco Marques no meu telemóvel pessoal. Como tenho um colega com esse nome, a primeira coisa que me veio à cabeça depois de ouvir o nome do outro lado da linha foi, porque raio é que ele não liga pelo telefone fixo? Afinal era outro. Confirmou se eu me inscrevera para o Quem quer ser milionário? e no meio de muita boa disposição fez-me uma bateria de 20 perguntas da, chamada, cultura geral e as respostas foram suficientes para me colocar no concurso.
Ontem, seis da tarde, Paço de Arcos, estúdio da Valentim de Carvalho, e lá estou eu para a gravação, acompanhada pelos meus pais e pelo Marcelo, não porque eu tenha medo de andar sozinha, mas porque a Dona Prata não perderia a hipótese de ir comigo por nada no mundo.
O coração da selva amazónica que uso diariamente na cabeça e ao qual chamo cabelo foi arranjado pelas mãos duma menina muito simpática que chamava a toda a gente… amor. É fofo e querido e além disso, é a melhor forma de não termos que decorar nomes! A simpatia da moça contrastava um bocado com a sisuda cara da maquilhadora que, não obstante, me deixou com ar de quem tinha acabado de aterrar vinda das Ilhas dos Mares do Sul.
A espera prolongou-se, pois trocaram a ordem dos programas e os famosos entraram primeiro, Herman José, Ana Bola, Maria Rueff, Joaquim Monchique, Nilton e João Paulo Rodrigues que só não deitaram o palco abaixo porque sabiam que havia mais gravações a seguir.
Ofereceram-nos o jantar mas, acima de tudo, ofereceram-nos uma simpatia incrível, aumentada pelo constrangimento do atraso e consubstanciada na presença especialmente do Bruno, a boa disposição sul alentejana em pessoa, e de outros colaboradores do programa cujos nomes não fixei mas entre os quais estava também o Vasco Marques.
O José Carlos Malato é uma força da natureza pois não se cala nunca e tem sempre qualquer coisa a dizer, mesmo que esteja exausto duma maratona com nomes como os já referidos Herman ou Ana Bola, corredores de fundo que puxam até mais não. Gravar três programas de seguida não é brincadeira: em casa só vimos a parte calma, tal como o pato que nada serenamente no lago, mas debaixo de água as patas abanam furiosamente.
Os concorrentes tiveram tempo de sobra para conversar e para se conhecerem minimamente: uns mais faladores e a mostrarem laivos daquilo que queriam fazer valer quando lhes fossem feitas as perguntas, outros mais reservados, mas todos bem-dispostos.
O jogo é assente na sorte, muito mais do que nos conhecimentos de cada um, mas também tem alguma estratégia. O risco de as coisas saírem como queremos é grande, e aquilo que eu queria era ser a última para ganhar pelo menos 500 euros.
Das conversas tidas antes com os meus parceiros de concurso percebi que a terceira cadeira era a melhor e por um acaso acabei sentada nela. Também decorrente das conversas tidas em bastidores o concorrente antes de mim usou uma estratégia para me eliminar, legítima diga-se de passagem, que consistia em ‘oferecer-me’ uma pergunta sobre futebol, assunto sobre o qual sou a maior expert, desde que esteja sozinha…
Já me via a dizer adeus e a sentar-me obedientemente nas bancadas, quando surpresa das surpresas, acertei no raio da resposta! A seguir aparece uma perguntinha cuja resposta eu tinha na ponta da língua; porém, era elevada a probabilidade do concorrente seguinte não a saber e eu depositei-lha nas mãos e ele errou. O prémio desceu, é claro, mas nesse momento, e fiando-me em hipóteses, percebi que seria a última pessoa! Se tivesse respondido, acertava, mas diminuía a possibilidade de ser a última, talvez nem voltasse a sentar-me na cadeira vermelha (que é muito menos incómoda do que parece) e por isso arrisquei com base no ditado que diz mais vale um pássaro na mão que dois a voar.
Cognomes de reis, medidores de velocidades do vento e escritores vêm ainda dar-me alguma sorte pois deram azar aos outros.
E foi assim que fiquei no papel de rainha da noite…

terça-feira, 21 de junho de 2011

Vale

Vale tudo. Vale de desconto. Vale de Cambra. Vale postal. Vale arrancar olhos. Vale de lençóis. Vale o peso em ouro. Vale a pena. Vale Paraíso. Quanto vale? Vale glaciar. Vale de compras. Vale e Azevedo. Vale mil palavras. Mais vale tarde. Vale do Tejo. Cheque vale. Vale oferta. Vale de transporte.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

‘Podíamos viver sem Criar Afectos? Podíamos, mas não era a mesma coisa…’

Os meios de comunicação social anunciam em horário nobre e em manchetes a morte de idosos abandonados pela família, cuja ausência nem foi notada pelos vizinhos e com quem as autoridades se preocupam quando há mandatos de tribunais para cumprir. Abrem-se as portas e multiplicam-se espectáculos macabros.
Mais do que os corpos, são os relacionamentos que estão em avançado estado de decomposição, principalmente com a população sénior.
Porém, nem sempre é assim.

O Teatromosca Companhia fez ontem a estreia da peça Europa, com textos de John Berger. Até aqui podíamos pensar que foi só mais uma estreia duma peça de teatro, como várias outras. Mas não é.
Fazendo jus à sociedade do relacionamento, ao convívio entre diferentes gerações, à partilha, ao desafio, à inovação, à novidade, à não discriminação, ao sentido comunitário, à verdadeira cidadania activa, vários dos actores estavam a iniciar-se, rondam todos os setenta anos e pertencem ao Projectos Criar Afectos.
O Criar Afectos – filho da Junta de Freguesia de Rio de Mouro e centrado na aura da Marisa Pereira, mais do que a, importantíssima, colónia balnear com que começou o Projecto há dois anos faz muitas mais coisas:
- Dignifica e qualifica a vida dos idosos em Rio de Mouro, Sintra.
- Qualifica a vida dos familiares dos idosos
- Projecta vivências do passado no presente e no futuro
- Dinamiza a vida da Freguesia
- Integra a população sénior e não discrimina
- Faz verdadeiro trabalho social
- Descobre segredos, não porque estivessem escondidos, mas porque nunca tiveram oportunidade de ser revelados.
- Cria uma rede de amizade, solidariedade e conforto
- Faz sorrir.
Ontem na estreia não havia outsiders, eram todos gomos da mesma laranja. O texto não era fácil para principiantes mas eles mostraram-se à altura. Parabéns ao encenador, Pedro Alves. Parabéns aos actores. A todos os actores.
Mais do que ter pena de não estarem lá críticos de teatro, gostaria que lá estivessem responsáveis institucionais, que tirassem o modelo, que copiassem a forma, que abrissem os olhos para ver!
Não é preciso estar sempre a inventar a pólvora, é necessário e urgente multiplicarem-se as boas ideias, adaptá-las e pô-las em marcha.
E o Criar Afectos – só pelo nome! – é decididamente uma excelente ideia, posta em prática e com um enorme sucesso.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Cabeleireira, oferece-se!

Quando dizemos cortei o cabelo, estamos a mentir, portuguesmente falando, pois na verdade foi outro alguém que o cortou e não nós.
Ontem cortei o cabelo. Nesta afirmação leia-se um acto pessoal, de tesoura em punho e madeixas a cair pelos ombros. Fui eu, pela minha mão: segurei as pontas espigadas e lá vai disto. Segurei as pontas espigadas e o que não era ponta nem estava espigado, mas o resultado foi bastante satisfatório, principalmente porque não me preocupo muito com uniformidades e até acho engraçado estar mais curto dum lado que do outro. Estou na moda!
Desde há alguns anos que pinto as unhas sozinha, coisa que antigamente jurava a pés juntos não ser capaz de fazer sozinha: via a mão esquerda a tremer, o pincel a deslizar entre os dedos a quilómetros das unhas, as gotas de verniz a cair antes de chegarem ao sítio certo. Mas como diz o ditado, a necessidade aguça o engenho e hoje sou quase profissional da coisa.
Pintar o cabelo era outra coisa digna de orquestra, para mim que nem pífaro era capaz de assoprar. Hoje sou uma pró da matéria embora seja como aqueles pintores de paredes que precisam de tapar todos os milímetros quadrados de chão para que as pingas não estraguem o soalho: quando dou conta a tinta escorre-me pelo pescoço e os óculos antes azuis estão mais encarnados que uma capa de toureiro.
Eu que prego que não conhecemos os nossos limites e que somos capazes de tudo, ora bolas, não havia ser capaz de cortar o cabelo? Inclino-me perante a profissão de cabeleireira, tal como outra qualquer, mas, desculpem lá, valores mais altos se levantam e não vi alternativa.
O meu filho aprovou, hoje nos transportes ninguém olhou para mim de lado e no meu trabalho só comentaram que estava mais curto! Yes!

terça-feira, 14 de junho de 2011

Que dia pá, que dia!

Sexta-feira foi dia de ménage à trois: o V., eu e uma morena chamada Papa-léguas em cima da qual estivemos o dia todo. O V. tem também uma loura mas eu não vou à bola com ela porque nos obriga a estar praticamente deitados e aquilo mete-me medo. Experimentei uma vez há alguns anos e não me sobram saudades. Já a morena tem dois lugares onde vamos bem sentados, direitos, a levar com o vento na cara pois a opção é sempre de não baixar a viseira do capacete.
Há séculos que tínhamos combinado visitar um lugar onde há muitos anos o pulguedo nada pode contra a força da leitura, uma descrição que adoro pela veracidade e pelo simbolismo e que não podia ter outro protagonista. Não encontrámos a casa, mudado estava o local, com quintais arranjados e paredes brancas, bordejado por serranias verdes que se mantêm sempre assim à força de levarem com a brisa marítima que vem do Oeste.
Sardinha da Nazaré ao almoço a escorregar garganta abaixo com as Berlengas ali diante, que se aproximaram só para que as pudéssemos ver bem e logo mais uma lembrança e uma história regada com gargalhadas, de quando se fazia mergulho em gruta berlenguense e se aguentou o mais que se pode debaixo de água para que a barcaça com turistas passasse e no último instante lá se empurra o corpo em direcção à mescla de gases a que chamamos oxigénio e os turistas aos berros a pensar que o monstro do Loch Ness estava nas Berlengas a banhos e afinal era o V. que já tinha falta de ar!
E quem tinha falta dum dia assim era eu: com risos e conversas e livros e aquela memória absolutamente espantosa que me deixa sempre boquiaberta com a precisão e a infalibilidade.
O fim-de-semana teve quatro belos dias, mas o primeiro valeu por umas férias.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

(In)Disponibilidade

A indisponibilidade dos amigos é um contra-senso? É, a menos que sejamos nós a criá-la. A menos também que chamemos amigos a pessoas que conhecemos há muito tempo, vários anos, para as quais estamos disponíveis mas onde o vice-versa não é bem assim.
Um determinado problema que nos cria ansiedade em discuti-lo, partilhá-lo e torná-lo mais leve pode acabar por ser guardado a sete chaves.
Vamos contar a alguém que anda feliz da vida com olhos brilhantes, que só vê cores suaves e no meio dessa felicidade reencaminha todas as conversas para as nuvens onde vive?
Vamos contar a alguém que tem um problema semelhante, mas mais grave e, dessa forma, vamos lembrá-lo que ele não faz nada para solucionar o seu próprio problema?
Vamos contar a alguém que se cansa de nos convidar para estarmos juntos e nós dizemos sempre que sim, mas nunca arranjamos tempo para mais do que um telefonema?
Vamos contar a alguém que, sempre que falamos com ele, nos vai dizendo como anda atarefado e atira-nos com as suas mil missões impossíveis antes mesmo de termos terminado o nosso Olá?
Vamos contar a alguém que só sabe falar dum assunto e aproveita todos os intervalos da chuva para se esgueirar para essa posição de conforto?
Vamos contar a alguém que nos ouve e responde invariavelmente com um pois, é a vida…?
Vamos contar a alguém que sentimos que nos ouve como se pagasse uma dívida?
Qualquer um destes bateria a pala na entrada duma festa, dum jantar, duma comemoração; são bons foliões. Quase todos viriam a meio da noite se telefonasse a pedir ajuda; são bons bombeiros. Alguns viriam sem sequer perguntar porquê; são bons católicos. Um ou outro consegue discernir na minha voz que a vida está armada em cabra; são perspicazes. Há quem insista; é militante. Mas estar verdadeiramente comigo, estar mesmo, só a solidão. Nunca a mando embora pois faz-me companhia.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Asfixia

A pelúcia da pele explode em garras afiadas quando percebo que tenho uma missão impossível: verificar tabelas com percentagens, gráficos, valores que se alinham e que me riem com escárnio, sabendo que o desprezo é recíproco, mas que terei que os sentar ao colo e dar-lhes mimo. Faz parte do meu trabalho e não digo que não.
Mas a seguir tenho que domar as feras: segurar as mãos, deitar fora a caneta, entalar as teclas. No ringue digladiam-se querer e dever e eu grito pelo querer!
Odeio estatísticas, elas sabem e dizem-me com a mais repugnante calma, Temos pena! Queres escrever letras? Desprezas-nos? Somos as ovelhas negras da tua amada leitura? Azar… precisas do dinheiro no fim do mês, verdade? Então, lê-nos! Cruza informação, conclui face ao que te dizemos, explora-nos!
Como ondas em mar revolto os números entram-me pela boca e asfixiam-me. Ninguém vê. Mantenho o sorriso e apodreço por dentro.

Toalha de praia com riscas verdes verticais

Vou sentada a ler. De repente vejo uma das minhas toalhas de praia a entrar na carruagem do metro. Apoia-se nos ombros duma mulher e desce-lhe pelo corpo, tapando-lhe o rabo. É grande, eu sei, conheço-a bem pois uso-a há anos.
Toda a minha atenção está centrada na toalha a quem não me recordo ter dado autorização para se ausentar de casa. A mulher tem um ar descomprometido onde leio que foi a toalha a ir ter com ela e não o contrário.
Que fiz eu? Ainda ontem a lavei procurando um programa onde a centrifugação não desse muitas voltas! Será do amaciador?
As minhas toalhas de praia nunca estão no escuro, vêm a luz do dia o ano inteiro, assim como os bikinis e demais acessórios de praia, sempre a espreitarem assim que se abre uma gaveta. As toalhas nem em gavetas estão e sim em prateleiras cujo conteúdo está à mostra; nunca as olho como peças em cemitérios ainda que temporários, fazem-me falta o ano inteiro, só de as olhar já me sinto melhor, principalmente naqueles dias em que se reinventam cinzentos-escuros em céus que, como toda a gente sabe, são azuis!
O cheiro duma toalha de praia é único. É daqueles cheiros que se absorvem e ficam cá dentro, em memória, principalmente se os aspirarmos com os olhos fechados.
Cogitava eu acerca da ingratidão, quando ouço a toalha rir-se e dizer-me:
-Não sou quem pensas e, sim, esta senhora tem gostos esquisitos… para além de mim, irmã da tua toalha de praia, e agora feita manta, tem uma saia feita duma toalha de mesa e um casaco que em tempos foi uma toalha de renda.
Credo… tanta toalha, penso eu.
A toalha de praia continuou:
-Mas não se fica por aqui: a gabardina era uma antiga toalha de plástico e ela usa como bloco-notas um maço de toalhetes. Tem um cachecol feito de uma toalha de baptismo e já ouvi lá por casa histórias perversas com toalhas de rosto mas nem quero pensar nisso…
- Próxima estação: Marquês de Pombal!
Levanto-me para sair. A toalha sorri-me abanando levemente as pontas e dizendo adeus.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Morra a indiferença!

Quarta-feira, final do dia. Conduzo e converso com uma amiga que vem a meu lado. De repente, um homem que caminha no passeio cai, ficando atravessado na estrada.
Estou parada no semáforo e espero dois segundos, é o tempo que dou ao homem e a mim própria para verificar se apenas tropeçou e, se assim fosse, levantava-se, ou se precisa de ajuda. Precisou de ajuda.
Os dois segundos ainda não tinham passado, o homem estava deitado com o corpo metade na estrada e metade no passeio, quando passa um táxi em sentido contrário que LITERALMENTE se desviou da cabeça do homem, deitada no alcatrão, e continuou a sua marcha.
As pessoas que auxiliam o homem são três: uma mulher que vinha atrás do taxista, a minha amiga e eu.
O homem está bêbado. Da porta taberna de onde saiu – eu vinha devagar e por mero acaso vi o homem sair da taberna – os rostos alinham-se a olhar, de braços cruzados.
Pára uma rapariga que se põe a telefonar a pedir ajuda.
Pergunto às caras que olham da porta da taberna se o homem saiu de lá. Pergunto com raiva, sabendo que os vou ouvir mentir e na mentira anunciada aumentar ainda mais a minha raiva. E eles fazem-me a vontade. O coro diz, Não, aqui não esteve.
Junta-se mais um rapaz, pouco mais que um adolescente e sugere a organização dos carros que impedem o movimento da via nos dois sentidos.
Puxamos o homem para cima do passeio que estava limpo em comparação com o nojo que permanecia à porta da taberna. Impávido.
Não era um homem que estava deitado no chão, era um resto, um desperdício, cuja última utilidade fora pagar o álcool que consumira naquele estabelecimento. A partir daí, é cinza que sopramos para longe de nós.
Não posso afirmar que bebeu naquele sítio, não vi. Mas se não o tivesse feito o crápula que estava à porta teria afirmado isso mesmo, Ele entrou já embriagado e eu não lhe vendi nada…
Mais que ver a miséria humana ali condensada e estendida no chão, custou-me ver a indiferença e, pior, um certo brilho no olhar que denunciava as palavras, É para aprenderes…
O meu carro era o que mais incomodava o trânsito, intenso aquela hora. Sem sítio para parar em condições de segurança acabei por deixar o homem com o cuidado dos outros que se preocuparam com ele, poucos, mas atentos.
Deixei a minha amiga em casa e fui à polícia.
Posso aborrecer-me com certas pessoas, posso zangar-me com o meu filho, posso perder amigos, posso ser criticada de todas as formas e feitios, mas há alguém com quem eu tenho que viver em paz, com a minha consciência.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Sublinhando Palmeiras Bravas

Há algumas semanas emprestaram-me Palmeiras Bravas, de William Faulkner, e disso dei aqui conta. Porém, o livro contém uma particularidade notável, a que o actual proprietário faz alusão numa nota que escreveu em 2009 quando o comprou, como ele diz, na Livraria Utopia do Sr. Herculano Lapa: o livro tem imensos sublinhados e partilho com o proprietário o desejo de ter conhecido esse primeiro leitor, o dos sublinhados.
Porquê estas frases e não outras? Porquê para além dos sublinhados, uns círculos a envolverem certas palavras? Porquê? Não há marcas de sublinhados apagados o que me leva a concluir que não houve indecisão no sublinhar, que foi firme e pensado. Sentido. Muito sentido, como se pode perceber se lermos só os sublinhados.
Os bolds são das palavras com círculos. Os parágrafos dividem os sublinhados.
Se por um qualquer milagre o leitor que fez este trabalho reconhecer aqui a sua marca, por favor entre em contacto comigo.
Sendo um texto de Faulkner, tem edição duma pessoa desconhecida a quem presto homenagem.

“A mulher de cabelos negros e olhos amarelados duros num rosto cuja pele se esticava retesa sobre os malares proeminentes
Apenas ali sentada na completa imobilidade que o médico não precisava da confirmação do aspecto tenso da pele nem da vazia e retirada fixidez dos aparentemente invisuais olhos para logo reconhecer – essa completa e imóvel abstracção da qual até a dor e o terror estão ausentes, em que a criatura viva parece escutar e mesmo observar algum dos seus próprios órgãos frouxos, o coração, por exemplo, o secreto e irreparável escoar do sangue.
Mas não era o coração
Tenho imenso tempo de saber ao certo que órgão está ela a ouvir
Duros olhos de gata
Mas não o coração
Os vazios e ferais olhos pregados nele, a quem, de conhecimento certo que ele tinha, mal poderiam ter alguma vez visto, com uma ilimitada e profunda aversão.
Não era a ele que a aversão se dirigia. É a todo o género humano.
Não à raça humana mas à raça dos homens, a masculina.
Sim, sim. Alguma coisa que a inteira raça dos homens, os machos, lhe fez ou ela supõe que fez.
Negro vento cheio de selvático e seco som das palmas.
O médico bem os ouvia, aos dois pares de pés descalços; era um som como se estivessem dançando, furiosamente e infinitesimalmente e sem sapatos.
Era um riso duro e não alto, como vomitar ou tossir.
Apenas com o abstracto e furioso desespero que lhe vira nos olhos por sobre o prato de gumbo ao meio-dia.
Parecia-lhe que os via: os anos vazios em que a juventude se desvanecera – os anos para as audácias e para os absurdos, para os efémeros, trágicos e apaixonados amores da adolescência, raparigas e rapazes juntos, a lúbrica, importuna e palpitante carne, que não tinham sido seus.
Repudiei o dinheiro e, por isso, o amor não abjurei dele, repudiei-o. Não necessito dele; daqui a um ano ou dois ou cinco anos, saberei que é verdade o que agora julgo ser verdade: nem mesmo necessitarei de precisar.
Tens paz, não precisas de mais nada.
Ela fitou-o, e ele viu que os olhos dela não eram castanhos-claros, mas amarelos como os de um gato, encarando-o com a especulativa sobriedade que podia ser a de um homem, firmes para lá do mero à vontade, especulativos para lá de encararem.
Não sei. Nunca tinha estado apaixonado.
Poderia ter descoberto que o amor não existe, mais do que a luz do Sol, apenas num lugar e num momento e num corpo, para toda a terra e os tempos todos e toda a plenitude respirada).
Ele compreendera a intuitiva e infalível perícia de todas as mulheres nas questões práticas do amor.
Qualidade profundamente trágica que ele sabia (estava aprendendo depressa) não ser peculiar dela, mas atributo de todas as mulheres neste instante de suas vidas, que as reveste de uma dignidade, quase pudor, que se transmite e cobre mesmo a última e ligeiramente cómica atitude da derradeira entrega.
E nada de divórcio.
Que o amor e o sofrimento são a mesma coisa e que o valor do amor é a soma do que é preciso pagar por ele, e que sempre que ele sai barato foi que a nós mesmos nos enganámos.
Então, pela primeira vez nas duas da vida, viu-a chorar. Ali sentada, com o rosto áspero, contraído, selvático, sob as lágrimas brotando como suor.
Posso esconder atrás da bata branca, tapar a cabeça com a rotina.
Pensando em como talvez não é afinal com o coração, nem com a sensibilidade, que a gente sofre, mas com a nossa capacidade de dor ou vaidade auto-ilusão ou talvez meramente masoquismo.
Gosto da água
É onde vale morrer.
Selvático alheamento e magoou-o um pouco; ele tornou a pensar, Há uma parte dela que não ama ninguém, coisa nenhuma.
Ouve, há-de tudo ser lua-de-mel, sempre. Até que um de nós morra. Não pode ser outra coisa. Ou céu, ou inferno: nada de purgatório pacífico, seguro e confortável, entre ambos, para tu e eu esperarmos, até que o bom comportamento ou a resistência ou a vergonha ou o arrependimento levam a melhor de nós.
O amor. Dizem que o amor morre entre duas pessoas. É falso. Não morre. Deixa uma pessoa, vai-se embora, se a pessoa não é bastante boa, bastante digna. Não morre; a pessoa é que morre. É como o oceano: se não fores bom, se começares a cheirar mal dentro dele, ele cospe-te para morreres noutra parte. Morres na mesma, mas eu antes quero morrer no oceano do que ser cuspida para uma praia perdida e secar lá ao sol até tornar-me uma mistela fedorenta sem nome
Considero o amor com a mesma fé ilimitada, que ele me vestirá e me dará de comer.
Não há-de acontecer nada. Tenho só que habituar-me ao amor.
E a fome não está aqui… - bateu na barriga com a palma da mão. – Isso é só o resmungar das entranhas – A fome está aqui. – Tocou no peito. – Não te esqueças.
Não. Não, enquanto formos dignos de conservar tudo.
Dignos de nos ser permitido conservar. Conservar.
Nunca desistira, pensando em como antes pensara que havia uma parte dela que nem ele nem Rittenmayer jamais tinham tocado, e que nem sequer amava o amor.
Não só fêmea mas profundamente feminina.
O pior comigo é que sempre que digo a verdade ou uma mentira, parece que tenho de começar por convencer-me a mim mesmo
Já lhe disse que me sinto feliz. Nada me pode tirar tudo o que me foi já tirado.
Ele tornou a cismar, não na adaptabilidade das mulheres às circunstâncias, mas na habilidade delas em adaptarem o ilícito, mesmo o criminoso, aos padrões burgueses de respeitabilidade
Ainda não sabes que nem aos animais, graças a Deus, nós parecemos casados?
Qualidade que ela acabara por reconhecer – a impiedosa e quase insuportável honestidade. Não para convencer o cunhado mas para justificar a sua própria fúria, como num ligeiro pesadelo poderia estar segurando as calças que caíam; que não era sequer ao cunhado que falava, mas a si próprio.
Aquilo tornou-se-lhe uma obsessão; reconhecia calmamente que ele se tornara secretamente, calmamente e decentemente um pouco doido
Sensação de profundo desespero, nem mesmo ciente de que se preocupava, preocupando-se tão terrivelmente que nem sequer sabia; e olhava com uma espécie de esgazeado espanto para a solidão ensolarada, da qual ela emergia temporariamente e todavia em que ficava, e para a qual voltava, e reentrava na auréola que se demorava atrás dela.
Estou chateado. Estou morto de chatice. Não há nada aqui para que eu seja preciso. Nem mesmo a ela. Já rachei lenha que chegue até ao Natal e não há mais nada para eu fazer.
Ele não era sensível às cores.
Nunca te vi tão feliz. Pintaste um quadro, ou descobriste enfim que o género humano não tem sequer de tentar criar arte
Nunca na minha vida vi ninguém fazer tanto por ser um bom marido, como tu. Ouve, pateta. Se fosse só um bom marido, e comida e cama que eu queria, porque raio pensas tu que eu estou aqui em vez de voltar para onde tinha tudo isso?
Eu tinha-me transformado em marido.
Foi isto. Eu nem sabia, até ela me dizer que lhe tinham oferecido continuar no emprego.
O verme condenado, e cego para a paixão e morto para a esperança, e nem sequer sabendo, obnubilado e insciente em face da treva, do desconhecido, da subjacente e displicente aposta que estourará com ele.
A sabedoria de concentrar a atenção nos prazeres da carne: comer e evacuar e fornicar e estar sentado ao sol, que não há nada melhor, nada que se compare, nada no mundo se não viver o breve tempo em que nos é emprestado o respirar, estar vivo e sabê-lo.
Mas ela é mais homem do que eu.
Grande parte da coragem é uma sincera descrença na boa sorte. De outro modo não é coragem.
Mais um tempo, e a gente vestia-se e despia-se por dentro dos roupões, na presença um do outro, a apagávamos a luz antes de nos amarmos. É isto. Não é o gosto quem escolhe as nossas vocações, é a respeitabilidade o que faz de nós pedicuros e escriturários e coladores de cartazes e motoristas e escritores de caca.
Um dia, vi que tinha medo. E vi, ao mesmo tempo, que ainda teria medo fizesse o que fizesse, que teria sempre medo, por muito que ela ou eu vivêssemos.
Ainda tenho. E não do dinheiro. O diabo que o leve. Posso ganhar quanto precisarmos; mas o certo é que não tem limites o que somos capazes de inventar com o tema das perturbações sexuais femininas. Não é isto o que quero dizer, nem do Utah que eu falo. Falo de nós. Do amor, se quiser. Porque não pode durar. Não há lugar para ele no mundo de hoje, nem mesmo no Utah. Eliminámos o amor.
A gente viu-se enfim livre do amor como nos vimos livres de Cristo.
Eu não era. E depois Eu sou, e o tempo começa retroactivo, era e será
O instante da virgindade: essa condição, facto, que não existe efectivamente, excepto durante o instante que em sabemos que a perdemos.
Esperara demais. O que teria sido dois segundos aos catorze anos ou aos quinze foi oito meses aos vinte e sete.
E tenho medo.
Não tinha medo então, porque vivia em eclipse, mas agora estou desperto e posso ter medo, graças a Deus. Porque, neste Anno Domini de 1938, não há lugar para o amor.
Porque os corvos e os pardais são abatidos das árvores a tiro, ou se afogam nas inundações, ou são mortos pelos furacões e os incêndios, mas os falcões não. E talvez eu seja o consorte de um falcão, mesmo se sou um pardal.
Um frio que deixava uma inapagável e inesquecível marca algures no espírito e na memória, como a primeira experiência sexual ou a experiência de tirar a vida humana.
A coisa aqui é dispor-se a pessoa a sempre algum frio, mesmo na cama, e fazer a sua vida, e depois habitua-se e esquece, e então nem dá pelo frio, porque esqueceu o que era estar quente.
Está para acontecer-me qualquer coisa. Espera. Espera.
Quando as pessoas se amam a valer, realmente amam, não têm filhos, o sémen queima-se no amor, na paixão
Ela não é só mais homem e mais cavalheiresca do que eu, ela é melhor do que eu jamais serei.
As vezes, ele possuía-a (e ela aceitava-o) numa espécie de frenesi e de imolação, dizendo chorando: ao menos já não há perigo, não precisas de te levantar e apanhar frio.
Só uma coisa. Iremos para onde não haja frio, onde não custe tanto viver, onde eu arranje trabalho e a gente possa ter um filho, e não nos portais da escada. Não, não, orfanatos, não; portas de escada, não. Podemos conseguir, temos de conseguir; hei-de arranjar alguma coisa, qualquer coisa.
Abortador profissional.
Tem de ser. Não somos só nós dois já. É essa a razão, não vês? Eu quero que sejamos só nós dois outra vez.
Temos tão pouco tempo. Daqui a vinte anos já não posso, e daqui a cinquenta estamos ambos mortos. Depressa, depressa.
Estava de facto a aprender depressa as coisas que podia ter sabido antes dos dezanove anos)
“Mas este será nosso”, quando verificou que era isso, era isso mesmo.
Eu disse-te uma vez como cria que não é o amor que morre, é o homem e é a mulher, alguma coisa no homem e na mulher que morre, não merece mais a oportunidade de amar.
Beijou-a, como irmão e irmã se beijariam.
Estupor! Para poderes violar meninas nos parques, ao sábado à tarde!
E seremos outra vez só nós os dois para sempre.
Os dois, entre os quais algo como o amor teria existido outrora, ou que pelo menos haviam conhecido juntos a atracção física com que só a carne é capaz de apreender o pouco que jamais saberá do amor.
Nada. Nada? Sim. Nada contra ele.
Eu aguento-te.
Você assassinou-a
Então tornou-se ciente do seu coração, como se o profundo terror tivesse apenas esperado até ele estar pronto. Sentia o vento negro e duro, ao piscar no rasto da luz vacilante, até que esta passou a sebe e se desvaneceu
Como se estivesse bombando areia e não sangue, não um líquido, pensou. Tentando bombar. É este vento o que acho que não sou capaz de inspirar, não é que eu não possa de facto respirar, encontrar algures alguma coisa que respirar, porque na aparência o coração suporta tudo, tudo, tudo.
Portanto não é o vento o que não sou capaz de respirar talvez assim para sempre ganhei um pouco de sufocação
Não havia som ainda, salvo o vento
O negro vento sussurrava e murmurava nela, mas não entrava, não queria, não precisava.
E então não pode respirar e começou a recuar da porta, mas era já tarde, porque ela estava deitada na cama, a olhar para ele.
Para que não fique nada senão uma concha para o ar frio, o frio
Estou a aguentar. A aguentar para que possas ir, cavar daqui antes que eles cheguem. Tu prometeste. Quero ver-te ir. Quero ver bem.
É como fogo, Harry. Não dói. É como fogo. Não me toques.
Como a gente se divertiu, não foi, a gozar e a fazer coisas?! No frio, na neve. É no que estou a pensar. É por isso que aguento: a neve, o frio, o frio. Mas não dói; é só como fogo
Mas o coração
O coração
Pois que morra. Que morram ambos. Mas não nesta casa. Não nesta terra. Leva-os daqui para fora e que se esfaqueiem em ao outro à vontade.
Porque ela volta a si outra vez, não volta? Ela vai melhorar. Claro que vai.
Porque havia paz no quarto, fora-se a fúria.
Ouviu os passos na varanda, ouvia-os por cima do coração, do profundo e forte e incessante e superficial repuxar do ar, do respirar que por completo lhe fugia dos pulmões
E a maca sem parar, sugada pela varanda, para o espaço, ainda no mesmo plano, como se possuísse movimento e não peso.
Palmeiras pelintras
Agora é a caneta que não me deixa respirar
Eu amava-a
Um miserável provavelmente ter-se-ia posto a salvo de rebentar o próprio cofre. Teria chamado um profissional, um arrombador que não se importaria, que não amaria os veros flancos de ferro que continham o dinheiro.
E Wilbourne descobriu que, de facto, podia cheirar o mar, o largo marulhar negro e sem ressaca, que o negro vento desfazia.
Era o mar que ele cheirava; era o gosto da praia negra na qual soprava o vento, nos seus pulmões, no topo dos seus pulmões, atravessando isso outra vez, como ele esperava ter de, cada rápida e forte inspiração a tornar-se mais e mais superficial, como se o coração tivesse enfim um achado um receptáculo, um lugar de despejo, para a areia negra que dragava e bombava
Por um momento ele olhou para além dela, pestanejando as doridas e secas pálpebras
Mas não era um vento frio o que soprava para a sala, mas um quente que era forçado para fora dela, de modo que não havia nele cheiro da areia negra que ele soprava. Mas era um vento firme, podia senti-lo e vê-lo, uma madeixa do cabelo selvaticamente escuro e curto a mexer-se nele, pesadamente porque o cabelo estava ainda molhado, ainda húmido, entre os olhos fechados e o perfeito nós de cirurgião da lugadura que suportava o queixo dela.
Pequena morte chamada sono.
A prisão era de certo modo o hospital
A palmeira lá estava, mesmo fora da janela, maior mais pelintra
Também cheirava isso – o cheiro acre dos plainos salgados onde conchas e cabeças de camarão apodreciam
Sem tal realizar no espírito, assumira a imemorial atitude da miséria, agachando-se, pairando não em dor mas em completa e visceral concentração
Ele a olhar para a caneca de café numa espécie de desespero, que ainda não se fizera sentir antes e talvez não tivesse ainda começado sequer a fazer sentido
Pense nela
Quem me dera parar. Se eu pudesse. Mas não posso. Talvez seja isso. Talvez seja essa a razão… - Talvez fosse; era a primeira vez em que quase a atingia. Mas ainda não: e também isso estava certo; aquilo voltaria; descobriria, aprenderia, quando chegasse a hora.
Reaprendera a dormir
Se tivéssemos sabido, poderíamos ter vivido ali os quatro dias
Quatro dias. Não podiam possivelmente ter sido só quatro dias. Não podiam
Memória. De certo a memória existe independentemente da carne. Mas também isto não estava certo. Porque isso não saberia que era memória, pensou. Não saberia o que era o que recordava. E assim tem de existir a velha carne, a velha carne frágil, arreigada, para ser titilada pela memória.
Cianeto
Apenas memória, sempiterna e inescapável enquanto houvesse carne para titilar.
Pois não era só memória. Memória era só a metade disso, não era o bastante.
A memória era capaz de viver nas velhas entranhas ofegantes
Se a memória existe fora da carne, não será memória, porque não saberá o que lembra, de modo que, quando ela se tornou nada, então metade da memória tornou-se nada, e, se eu me tornar nada, então todo o recordar deixará de ser.
Entre a dor o nada, eu escolho a dor."