quinta-feira, 2 de junho de 2011

Sublinhando Palmeiras Bravas

Há algumas semanas emprestaram-me Palmeiras Bravas, de William Faulkner, e disso dei aqui conta. Porém, o livro contém uma particularidade notável, a que o actual proprietário faz alusão numa nota que escreveu em 2009 quando o comprou, como ele diz, na Livraria Utopia do Sr. Herculano Lapa: o livro tem imensos sublinhados e partilho com o proprietário o desejo de ter conhecido esse primeiro leitor, o dos sublinhados.
Porquê estas frases e não outras? Porquê para além dos sublinhados, uns círculos a envolverem certas palavras? Porquê? Não há marcas de sublinhados apagados o que me leva a concluir que não houve indecisão no sublinhar, que foi firme e pensado. Sentido. Muito sentido, como se pode perceber se lermos só os sublinhados.
Os bolds são das palavras com círculos. Os parágrafos dividem os sublinhados.
Se por um qualquer milagre o leitor que fez este trabalho reconhecer aqui a sua marca, por favor entre em contacto comigo.
Sendo um texto de Faulkner, tem edição duma pessoa desconhecida a quem presto homenagem.

“A mulher de cabelos negros e olhos amarelados duros num rosto cuja pele se esticava retesa sobre os malares proeminentes
Apenas ali sentada na completa imobilidade que o médico não precisava da confirmação do aspecto tenso da pele nem da vazia e retirada fixidez dos aparentemente invisuais olhos para logo reconhecer – essa completa e imóvel abstracção da qual até a dor e o terror estão ausentes, em que a criatura viva parece escutar e mesmo observar algum dos seus próprios órgãos frouxos, o coração, por exemplo, o secreto e irreparável escoar do sangue.
Mas não era o coração
Tenho imenso tempo de saber ao certo que órgão está ela a ouvir
Duros olhos de gata
Mas não o coração
Os vazios e ferais olhos pregados nele, a quem, de conhecimento certo que ele tinha, mal poderiam ter alguma vez visto, com uma ilimitada e profunda aversão.
Não era a ele que a aversão se dirigia. É a todo o género humano.
Não à raça humana mas à raça dos homens, a masculina.
Sim, sim. Alguma coisa que a inteira raça dos homens, os machos, lhe fez ou ela supõe que fez.
Negro vento cheio de selvático e seco som das palmas.
O médico bem os ouvia, aos dois pares de pés descalços; era um som como se estivessem dançando, furiosamente e infinitesimalmente e sem sapatos.
Era um riso duro e não alto, como vomitar ou tossir.
Apenas com o abstracto e furioso desespero que lhe vira nos olhos por sobre o prato de gumbo ao meio-dia.
Parecia-lhe que os via: os anos vazios em que a juventude se desvanecera – os anos para as audácias e para os absurdos, para os efémeros, trágicos e apaixonados amores da adolescência, raparigas e rapazes juntos, a lúbrica, importuna e palpitante carne, que não tinham sido seus.
Repudiei o dinheiro e, por isso, o amor não abjurei dele, repudiei-o. Não necessito dele; daqui a um ano ou dois ou cinco anos, saberei que é verdade o que agora julgo ser verdade: nem mesmo necessitarei de precisar.
Tens paz, não precisas de mais nada.
Ela fitou-o, e ele viu que os olhos dela não eram castanhos-claros, mas amarelos como os de um gato, encarando-o com a especulativa sobriedade que podia ser a de um homem, firmes para lá do mero à vontade, especulativos para lá de encararem.
Não sei. Nunca tinha estado apaixonado.
Poderia ter descoberto que o amor não existe, mais do que a luz do Sol, apenas num lugar e num momento e num corpo, para toda a terra e os tempos todos e toda a plenitude respirada).
Ele compreendera a intuitiva e infalível perícia de todas as mulheres nas questões práticas do amor.
Qualidade profundamente trágica que ele sabia (estava aprendendo depressa) não ser peculiar dela, mas atributo de todas as mulheres neste instante de suas vidas, que as reveste de uma dignidade, quase pudor, que se transmite e cobre mesmo a última e ligeiramente cómica atitude da derradeira entrega.
E nada de divórcio.
Que o amor e o sofrimento são a mesma coisa e que o valor do amor é a soma do que é preciso pagar por ele, e que sempre que ele sai barato foi que a nós mesmos nos enganámos.
Então, pela primeira vez nas duas da vida, viu-a chorar. Ali sentada, com o rosto áspero, contraído, selvático, sob as lágrimas brotando como suor.
Posso esconder atrás da bata branca, tapar a cabeça com a rotina.
Pensando em como talvez não é afinal com o coração, nem com a sensibilidade, que a gente sofre, mas com a nossa capacidade de dor ou vaidade auto-ilusão ou talvez meramente masoquismo.
Gosto da água
É onde vale morrer.
Selvático alheamento e magoou-o um pouco; ele tornou a pensar, Há uma parte dela que não ama ninguém, coisa nenhuma.
Ouve, há-de tudo ser lua-de-mel, sempre. Até que um de nós morra. Não pode ser outra coisa. Ou céu, ou inferno: nada de purgatório pacífico, seguro e confortável, entre ambos, para tu e eu esperarmos, até que o bom comportamento ou a resistência ou a vergonha ou o arrependimento levam a melhor de nós.
O amor. Dizem que o amor morre entre duas pessoas. É falso. Não morre. Deixa uma pessoa, vai-se embora, se a pessoa não é bastante boa, bastante digna. Não morre; a pessoa é que morre. É como o oceano: se não fores bom, se começares a cheirar mal dentro dele, ele cospe-te para morreres noutra parte. Morres na mesma, mas eu antes quero morrer no oceano do que ser cuspida para uma praia perdida e secar lá ao sol até tornar-me uma mistela fedorenta sem nome
Considero o amor com a mesma fé ilimitada, que ele me vestirá e me dará de comer.
Não há-de acontecer nada. Tenho só que habituar-me ao amor.
E a fome não está aqui… - bateu na barriga com a palma da mão. – Isso é só o resmungar das entranhas – A fome está aqui. – Tocou no peito. – Não te esqueças.
Não. Não, enquanto formos dignos de conservar tudo.
Dignos de nos ser permitido conservar. Conservar.
Nunca desistira, pensando em como antes pensara que havia uma parte dela que nem ele nem Rittenmayer jamais tinham tocado, e que nem sequer amava o amor.
Não só fêmea mas profundamente feminina.
O pior comigo é que sempre que digo a verdade ou uma mentira, parece que tenho de começar por convencer-me a mim mesmo
Já lhe disse que me sinto feliz. Nada me pode tirar tudo o que me foi já tirado.
Ele tornou a cismar, não na adaptabilidade das mulheres às circunstâncias, mas na habilidade delas em adaptarem o ilícito, mesmo o criminoso, aos padrões burgueses de respeitabilidade
Ainda não sabes que nem aos animais, graças a Deus, nós parecemos casados?
Qualidade que ela acabara por reconhecer – a impiedosa e quase insuportável honestidade. Não para convencer o cunhado mas para justificar a sua própria fúria, como num ligeiro pesadelo poderia estar segurando as calças que caíam; que não era sequer ao cunhado que falava, mas a si próprio.
Aquilo tornou-se-lhe uma obsessão; reconhecia calmamente que ele se tornara secretamente, calmamente e decentemente um pouco doido
Sensação de profundo desespero, nem mesmo ciente de que se preocupava, preocupando-se tão terrivelmente que nem sequer sabia; e olhava com uma espécie de esgazeado espanto para a solidão ensolarada, da qual ela emergia temporariamente e todavia em que ficava, e para a qual voltava, e reentrava na auréola que se demorava atrás dela.
Estou chateado. Estou morto de chatice. Não há nada aqui para que eu seja preciso. Nem mesmo a ela. Já rachei lenha que chegue até ao Natal e não há mais nada para eu fazer.
Ele não era sensível às cores.
Nunca te vi tão feliz. Pintaste um quadro, ou descobriste enfim que o género humano não tem sequer de tentar criar arte
Nunca na minha vida vi ninguém fazer tanto por ser um bom marido, como tu. Ouve, pateta. Se fosse só um bom marido, e comida e cama que eu queria, porque raio pensas tu que eu estou aqui em vez de voltar para onde tinha tudo isso?
Eu tinha-me transformado em marido.
Foi isto. Eu nem sabia, até ela me dizer que lhe tinham oferecido continuar no emprego.
O verme condenado, e cego para a paixão e morto para a esperança, e nem sequer sabendo, obnubilado e insciente em face da treva, do desconhecido, da subjacente e displicente aposta que estourará com ele.
A sabedoria de concentrar a atenção nos prazeres da carne: comer e evacuar e fornicar e estar sentado ao sol, que não há nada melhor, nada que se compare, nada no mundo se não viver o breve tempo em que nos é emprestado o respirar, estar vivo e sabê-lo.
Mas ela é mais homem do que eu.
Grande parte da coragem é uma sincera descrença na boa sorte. De outro modo não é coragem.
Mais um tempo, e a gente vestia-se e despia-se por dentro dos roupões, na presença um do outro, a apagávamos a luz antes de nos amarmos. É isto. Não é o gosto quem escolhe as nossas vocações, é a respeitabilidade o que faz de nós pedicuros e escriturários e coladores de cartazes e motoristas e escritores de caca.
Um dia, vi que tinha medo. E vi, ao mesmo tempo, que ainda teria medo fizesse o que fizesse, que teria sempre medo, por muito que ela ou eu vivêssemos.
Ainda tenho. E não do dinheiro. O diabo que o leve. Posso ganhar quanto precisarmos; mas o certo é que não tem limites o que somos capazes de inventar com o tema das perturbações sexuais femininas. Não é isto o que quero dizer, nem do Utah que eu falo. Falo de nós. Do amor, se quiser. Porque não pode durar. Não há lugar para ele no mundo de hoje, nem mesmo no Utah. Eliminámos o amor.
A gente viu-se enfim livre do amor como nos vimos livres de Cristo.
Eu não era. E depois Eu sou, e o tempo começa retroactivo, era e será
O instante da virgindade: essa condição, facto, que não existe efectivamente, excepto durante o instante que em sabemos que a perdemos.
Esperara demais. O que teria sido dois segundos aos catorze anos ou aos quinze foi oito meses aos vinte e sete.
E tenho medo.
Não tinha medo então, porque vivia em eclipse, mas agora estou desperto e posso ter medo, graças a Deus. Porque, neste Anno Domini de 1938, não há lugar para o amor.
Porque os corvos e os pardais são abatidos das árvores a tiro, ou se afogam nas inundações, ou são mortos pelos furacões e os incêndios, mas os falcões não. E talvez eu seja o consorte de um falcão, mesmo se sou um pardal.
Um frio que deixava uma inapagável e inesquecível marca algures no espírito e na memória, como a primeira experiência sexual ou a experiência de tirar a vida humana.
A coisa aqui é dispor-se a pessoa a sempre algum frio, mesmo na cama, e fazer a sua vida, e depois habitua-se e esquece, e então nem dá pelo frio, porque esqueceu o que era estar quente.
Está para acontecer-me qualquer coisa. Espera. Espera.
Quando as pessoas se amam a valer, realmente amam, não têm filhos, o sémen queima-se no amor, na paixão
Ela não é só mais homem e mais cavalheiresca do que eu, ela é melhor do que eu jamais serei.
As vezes, ele possuía-a (e ela aceitava-o) numa espécie de frenesi e de imolação, dizendo chorando: ao menos já não há perigo, não precisas de te levantar e apanhar frio.
Só uma coisa. Iremos para onde não haja frio, onde não custe tanto viver, onde eu arranje trabalho e a gente possa ter um filho, e não nos portais da escada. Não, não, orfanatos, não; portas de escada, não. Podemos conseguir, temos de conseguir; hei-de arranjar alguma coisa, qualquer coisa.
Abortador profissional.
Tem de ser. Não somos só nós dois já. É essa a razão, não vês? Eu quero que sejamos só nós dois outra vez.
Temos tão pouco tempo. Daqui a vinte anos já não posso, e daqui a cinquenta estamos ambos mortos. Depressa, depressa.
Estava de facto a aprender depressa as coisas que podia ter sabido antes dos dezanove anos)
“Mas este será nosso”, quando verificou que era isso, era isso mesmo.
Eu disse-te uma vez como cria que não é o amor que morre, é o homem e é a mulher, alguma coisa no homem e na mulher que morre, não merece mais a oportunidade de amar.
Beijou-a, como irmão e irmã se beijariam.
Estupor! Para poderes violar meninas nos parques, ao sábado à tarde!
E seremos outra vez só nós os dois para sempre.
Os dois, entre os quais algo como o amor teria existido outrora, ou que pelo menos haviam conhecido juntos a atracção física com que só a carne é capaz de apreender o pouco que jamais saberá do amor.
Nada. Nada? Sim. Nada contra ele.
Eu aguento-te.
Você assassinou-a
Então tornou-se ciente do seu coração, como se o profundo terror tivesse apenas esperado até ele estar pronto. Sentia o vento negro e duro, ao piscar no rasto da luz vacilante, até que esta passou a sebe e se desvaneceu
Como se estivesse bombando areia e não sangue, não um líquido, pensou. Tentando bombar. É este vento o que acho que não sou capaz de inspirar, não é que eu não possa de facto respirar, encontrar algures alguma coisa que respirar, porque na aparência o coração suporta tudo, tudo, tudo.
Portanto não é o vento o que não sou capaz de respirar talvez assim para sempre ganhei um pouco de sufocação
Não havia som ainda, salvo o vento
O negro vento sussurrava e murmurava nela, mas não entrava, não queria, não precisava.
E então não pode respirar e começou a recuar da porta, mas era já tarde, porque ela estava deitada na cama, a olhar para ele.
Para que não fique nada senão uma concha para o ar frio, o frio
Estou a aguentar. A aguentar para que possas ir, cavar daqui antes que eles cheguem. Tu prometeste. Quero ver-te ir. Quero ver bem.
É como fogo, Harry. Não dói. É como fogo. Não me toques.
Como a gente se divertiu, não foi, a gozar e a fazer coisas?! No frio, na neve. É no que estou a pensar. É por isso que aguento: a neve, o frio, o frio. Mas não dói; é só como fogo
Mas o coração
O coração
Pois que morra. Que morram ambos. Mas não nesta casa. Não nesta terra. Leva-os daqui para fora e que se esfaqueiem em ao outro à vontade.
Porque ela volta a si outra vez, não volta? Ela vai melhorar. Claro que vai.
Porque havia paz no quarto, fora-se a fúria.
Ouviu os passos na varanda, ouvia-os por cima do coração, do profundo e forte e incessante e superficial repuxar do ar, do respirar que por completo lhe fugia dos pulmões
E a maca sem parar, sugada pela varanda, para o espaço, ainda no mesmo plano, como se possuísse movimento e não peso.
Palmeiras pelintras
Agora é a caneta que não me deixa respirar
Eu amava-a
Um miserável provavelmente ter-se-ia posto a salvo de rebentar o próprio cofre. Teria chamado um profissional, um arrombador que não se importaria, que não amaria os veros flancos de ferro que continham o dinheiro.
E Wilbourne descobriu que, de facto, podia cheirar o mar, o largo marulhar negro e sem ressaca, que o negro vento desfazia.
Era o mar que ele cheirava; era o gosto da praia negra na qual soprava o vento, nos seus pulmões, no topo dos seus pulmões, atravessando isso outra vez, como ele esperava ter de, cada rápida e forte inspiração a tornar-se mais e mais superficial, como se o coração tivesse enfim um achado um receptáculo, um lugar de despejo, para a areia negra que dragava e bombava
Por um momento ele olhou para além dela, pestanejando as doridas e secas pálpebras
Mas não era um vento frio o que soprava para a sala, mas um quente que era forçado para fora dela, de modo que não havia nele cheiro da areia negra que ele soprava. Mas era um vento firme, podia senti-lo e vê-lo, uma madeixa do cabelo selvaticamente escuro e curto a mexer-se nele, pesadamente porque o cabelo estava ainda molhado, ainda húmido, entre os olhos fechados e o perfeito nós de cirurgião da lugadura que suportava o queixo dela.
Pequena morte chamada sono.
A prisão era de certo modo o hospital
A palmeira lá estava, mesmo fora da janela, maior mais pelintra
Também cheirava isso – o cheiro acre dos plainos salgados onde conchas e cabeças de camarão apodreciam
Sem tal realizar no espírito, assumira a imemorial atitude da miséria, agachando-se, pairando não em dor mas em completa e visceral concentração
Ele a olhar para a caneca de café numa espécie de desespero, que ainda não se fizera sentir antes e talvez não tivesse ainda começado sequer a fazer sentido
Pense nela
Quem me dera parar. Se eu pudesse. Mas não posso. Talvez seja isso. Talvez seja essa a razão… - Talvez fosse; era a primeira vez em que quase a atingia. Mas ainda não: e também isso estava certo; aquilo voltaria; descobriria, aprenderia, quando chegasse a hora.
Reaprendera a dormir
Se tivéssemos sabido, poderíamos ter vivido ali os quatro dias
Quatro dias. Não podiam possivelmente ter sido só quatro dias. Não podiam
Memória. De certo a memória existe independentemente da carne. Mas também isto não estava certo. Porque isso não saberia que era memória, pensou. Não saberia o que era o que recordava. E assim tem de existir a velha carne, a velha carne frágil, arreigada, para ser titilada pela memória.
Cianeto
Apenas memória, sempiterna e inescapável enquanto houvesse carne para titilar.
Pois não era só memória. Memória era só a metade disso, não era o bastante.
A memória era capaz de viver nas velhas entranhas ofegantes
Se a memória existe fora da carne, não será memória, porque não saberá o que lembra, de modo que, quando ela se tornou nada, então metade da memória tornou-se nada, e, se eu me tornar nada, então todo o recordar deixará de ser.
Entre a dor o nada, eu escolho a dor."

Sem comentários:

Enviar um comentário