quinta-feira, 28 de abril de 2011

Portem-se bem, ouviram?

Trabalho a 100 metros dum hospital que desde ontem tem internado um doente cigano.
Não o vi, ninguém me disse e não tenho dons adivinhatórios, mas o acampamento que vai crescendo, com gente de várias idades, muitas crianças e sacos espalhados por todo o passeio desde o início até ao fim da rua, levam-me a essa conclusão.
Carros e carrinhas estão parados nos mesmos sítios desde ontem, bagageiras abertas, roupa e calçado espalhado pelo chão e… pessoas a defecarem no meio da rua!
Ontem vi um garoto e hoje, que cheguei bem cedo, vi um adulto nestes propósitos tendo depois empurrado as necessidades para debaixo dum carro! Inacreditável.
Comentando a cena com um colega, este disse-me que o hospital, os restaurantes e cafés, um hotel e diversos moradores já tinham chamado a polícia que veio ao local e lhes pediu para… não fazerem barulho.
Conclusão, temos que aguentar e rezar pela saúde dum cigano que desconhecemos, a ver se fica bom depressa pois, se temos o azar que ele morra, para além da imundície temos também os gritos, as ladainhas, as carpideiras e não há polícia no mundo que os cale, alegando respeito pela tradição do defunto!

Raridade

Quando era pequena tinha um medo atroz de máquinas fotográficas. Devia ser a minha costela índia que pensava que me roubavam a alma ou qualquer coisa semelhante. E assim, poucas são as fotografias onde não estou a mostrar as goelas, como se as mostrasse ao médico, num imenso ahhhh de boca aberta. A minha mãe era – e ainda é! – aparentada com as estrelas de cinema antigas, aquelas que eram fotografadas sempre lindas e que eram notícia pela sua beleza e não pelos escândalos de hoje.
O meu pai, a cumprir serviço militar obrigatório, já tinha deixado o seu sonho: ser aviador. Iniciou-se no mundo do trabalho numa gráfica, com pouco mais de meia dúzia de anos. Um amigo levou-o e disse-lhe que quando lhe perguntassem o que sabia fazer, ele respondesse compor, provando que era perito na arte da composição, ele que vestia umas calças compridas pela primeira vez!
E lá foi ele e lá veio a pergunta. Mas a seguir a essa, o Sr. Mário, velha raposa das artes gráficas perguntou-lhe o que mais sabia fazer. O pobre do rapaz pensou rapidamente e deu a resposta que achava que o outro queria ouvir:
- Sei compor e descompor!
O Sr. Mário a rir-se da lata do gaiato disse-lhe que quem lhe dava uma valente descomposição era ele, mas que podia ficar à experiência.
Uma das velhas máquinas, mecânicas e com braços, um dia acertou-lhe num olho e obrigou-o a usar óculos. Ele não se importou com o sangue, com a dor, com o espectáculo do ir para o hospital, numa altura que quase tudo se tratava em casa com panos quentes e canjas de galinha. Ficou inconsolável por já não se poder alistar na aviação… Por ironia do destino, trabalhou a vida inteira ligado às artes gráficas e só andou de avião uma vez até hoje.
Ele que pelo meio estudou para Padre, que esteve para ser aviador, bem, fazendo as contas eu tive imensas probabilidades de não nascer, mas isso não aconteceu porque não havia Padres nem aviadores que resistissem à beleza da minha mãe, meia cigana, meia malandra e sempre sexy.
Ps. Eu ainda não andava mas o meu pai já me punha letras à frente do nariz...

Beleza em estado puro

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

O poema de Sophia arrasta a pergunta - todos arrastam - o que viveu ela que a levou a esta dimensão?

O dente sorridente (bom título para uma estória)


 Há a Fada dos Dentes e há o dente da Fada...

terça-feira, 26 de abril de 2011

Say ‘Cheese’, parte II

Já tenho as fotografias! Depois de quase ter sufocado dentro daquela prisão, fui a outra depois do almoço. Lojas, lojas, gente, gente, gigantescas faltas de espaço e eu apertada e mal disposta, a percorrer outra catedral de consumo. Na loja da FNAC dizem-me que ali não revelam mas que o fazem no Colombo e só demora uma hora. A boa notícia mistura-se com o medo de ter que entrar no terceiro centro comercial no mesmo dia, um feriado cheio de sol… não estou em mim e vou ao Colombo. Deixo o rolo decidida a esperar lá fora enquanto converso com a I.
Porém, o Duarte liga a avisar que está à porta de casa e não tem chaves… Não! Não! Não!
Metemo-nos no carro, vou a casa, abraçamo-nos para matar saudades dos dias que ele esteve ausente, subimos e eu não encontro mais que fazer se não passar a ferro… A I. vê televisão e conversa comigo sentada no sofá enquanto eu passo furiosamente a ferro. Passa-me pela cabeça a frase que uma amiga me disse e que me enfureceu há semanas atrás, quando lhe disse como estava triste e me tinha posto a passar a ferro e ela me respondeu que eu fizera bem, que assim estava ocupada… por mais que eu a ame do coração, fiquei danada com ela!
A caldeira do ferro esvaziou-se e fomos buscar as fotografias, ou seja, pela quarta vez no mesmo dia fui a um centro comercial. Isto é um recorde imbatível e não creio que o consiga ultrapassar mesmo que viva 100 anos.
… finalmente vi as fotografias…

Dá-me a tua mão

Dá-me a mão
Espreita no meu coração
Debruça-te nesta varanda
Ouve o tocar da banda
É a minha pulsação

Sem medo e sem receio
Acolho-te no meu seio
Semente lançada à terra
Minha vida, minha guerra
Milho, trigo ou centeio

Ah… contas do meu rosário
Fosses tu meu adversário
Tanto oxigénio, tanta vida
E à chegada e à partida
É tudo teu, meu corsário

O olhar cansado não descansa
Faço com a espera uma aliança
A Via Láctea é pequena
Aguardo um milagre, serena
Com a eternidade ensaio uma dança

Dá-me a mão
Espreita no meu coração
Sou um rio, um afluente
Transbordo com água quente e ardente
Acende uma vela, tira-me da escuridão

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Say 'Cheese'!

Deve ser o tempo que me põe meia esquisita e sem sono. Acordei bem cedo e, imagine-se, fui arrumar papéis. No fundo duma mala azul e no meio de um pacote de lenços por usar, um lenço usado, dois tampões higiénicos, dois bilhetes de cinema e uma factura do McDonald's, estava um rolo fotográfico.
Há algum tempo encontrei uma máquina fotográfica sem que nada me indicasse a sua propriedade. Revelei o rolo e fiquei com um monte de fotografias duma janela na mão. Conclui que alguém andava a espiar outro alguém pois a janela era sempre a mesma, as fotografias tinham sido tiradas a várias horas do dia, o que se via pela luz, e havia sempre um vulto que não se percebe se é homem ou mulher, mas é uma pessoa indubitavelmente. Fiquei com as fotografias e com a máquina que ainda mora algures no meu gabinete de trabalho.
Face à descoberta, vesti-me e saí com a intenção de revelar o que escondia naquele cilindro de plástico e metal.
Primeiro fui tomar o pequeno almoço com os meus pais e com os amigos deles e assisti à zaragata do costume pois todos me querem pagar o pequeno almoço. Ora eu não tinha fome, mas cai na asneira de dizer que ainda não tinha comido! Então, para evitar que todos juntos me tapassem o nariz e me enfiassem uma meia de leite pela boca abaixo, lá mastiguei metade dum pão. A verdade é que ontem não almocei nem jantei: cheguei a casa depois do almoço sem fome e quando fui dar os parabéns à Suzy, que fazia anos, e ela me perguntou se já tinha jantado é que me lembrei que também me tinha esquecido. Nem as insistências dela conseguiram que a fome espreitasse de dentro de mim e, para ela não ficar triste, bebi um café e um copo de água! Antes de me deitar bebi um iogurte geladinho e pensei que me apetecia tomar banho naquilo; mas depois fiz as contas ao dinheiro e desisti!
O local mais próximo onde pensei que atingiria o meu objectivo é o Forum Sintra, uma espécie de réplica da prisão do Linhó, ali bem perto: é todo metalizado, corredores estreitos e escuros, com umas clarabóias lá bem no alto para as pessoas não fugirem. Numa palavra: horrível. Em duas: de fugir!
Mas valores mais altos se levantavam e eu senti-me o Capuchinho Vermelho a entrar na floresta, cheia de medo e com a respiração alterada. Mas tinha que ser.
Estacionei numa ponta para me ser mais fácil recordar onde estava o carro, mesmo que fique a quilómetros da entrada. Entrei na prisão e perguntei por uma loja de fotografia; ficava a 10 metros! Porém, só daqui a uma semana é que me davam as fotografias. Uma semana? Eu pensei que fosse uma hora! Nada disso, agora centralizavam as revelações de rolo no Porto e tinham que mandar para lá, e esperar que as devolvessem. Então não quero!
A caminhar pelos longos corredores, sem parar diante de lojas com roupa linda que nenhuma me serve, nem sequer frente a qualquer sapataria, o que é um feito gigantesco para mim, fui à Worten onde me disseram imediatamente que sim, que tinham serviço de revelação imediata! Sorri e segui o rapaz, mas foi sorriso de pouca dura pois quando ele me pediu o cartão e eu franzi os olhos a dizer, qual cartão?, é que ele explicou que só revelavam de telemóvel ou de máquina com cartão, não de rolo. Obrigadinha, sim?
Nesse momento já sentia falta de ar e tinha uma ligeira tontura. Os centros comerciais são bichos com uma penugem qualquer à qual sou alérgica e comecei a sentir-me mal. Precisava rapidamente dum antídoto!
- Por favor, onde é que há aqui uma livraria?
Quatro perguntas iguais a quatro pessoas diferentes deram como resultado dois não sei, um a Bertrand ainda não abriu e, finalmente, um vá em frente e vire no C&A e encontra a Book.it.
Lá cheguei, já com a vista meia enevoada e entrei. Mexi nos livros, sentei-me no chão, acalmei a respiração, comprei um marcador lindo de morrer e, já recuperada, preparei-me para sair, a correr em direcção ao carro.
Não corri, mas dei grandes passadas como se um guarda prisional viesse atrás de mim e eu não quisesse chamar a atenção. O coração batia como maluquinho e finalmente cheguei ao carro.
A seguir ao almoço, a ver se não me esqueço dele, vou procurar outra loja de fotografia, ou seja, tenho que ir a outro centro comercial. Já decidi que vou convidar alguém para vir comigo, caso contrário posso ter uma apoplexia antes de ver as fotografias.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Vivo na esmola da sorte

Vivo na esmola da sorte
Eu, pedinte, vagabunda
Durmo ao relento da tua ausência
O dia faz-se noite e a escuridão é senhora
É sempre lua nova nos teus olhos
O teu olhar tece teias que não me abrigam
Constrói ninhos onde não me deito
Usa grutas que não me protegem
Esconde-se em buracos que não acho
Dizem que a sorte protege os audazes
Dizem que a sorte é a arma dos fracos
Dizem que a sorte somos nós que a fazemos
Dizem… que nunca ninguém a viu…
Eu digo que ela existe, mas não é minha…

terça-feira, 19 de abril de 2011

Noite de trovoada

Noite de trovoada, acesa, barulhenta. Noite de chuva com calor, ideal para fazer amor desenfreado, conquistado, descoberto, como se fosse a primeira vez.
Abençoados os que aproveitaram, os que se deleitaram com o cenário, com a banda sonora que a natureza propiciou. Pobres de todos os outros…
Noite de trovoada, vibrante e assustadora. Noite de cenário perfeito para entregas de corpos, almas e corações, para misturas e partilhas, de memórias escritas em pedras, em granito que se perpetua no tempo.
É nestas noites que sonho não estar sozinha. É nestas noites que sonho estar acompanhada, ter a própria trovoada deitada comigo, a troar dentro de mim, a rasgar os meus céus com relâmpagos tão luminosos que fazem inveja ao sol. É nestas noites que quero não dormir, que me mantenham acordada, satisfeita e cansada, mas feliz.
As noites de trovoadas existem para as pessoas se abraçarem e beijarem, sem medo e com os olhos bem abertos. As noites de trovoada existem para as pessoas amarem sem amanhã, para viajarem sem porem os pés no chão, para criarem tatuagens na pele.
Alguns fumam cigarros à janela, com pressa, para voltarem à partilha, para se entregarem a carrosséis de beijos e montanhas russas de entrega. Outros fumam cigarros à janela, devagar, como se o fumo fosse o único cenário que lhes é concedido, o único palco. Para uns e para outros a trovoada clama bem alto, impõe, ordena que façam a única coisa pensável, que se amem. Uns obedecem, outros acendem outro cigarro… e a trovoada insiste, insiste, insiste, sem se cansar, autoritária e sorri a quem lhe obedece, caminhando para outras paragens e deixando o sono tomar o seu lugar.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Eu tenho dois amores

Há alguns meses mudei de director. Porém, o anterior continua a pedir trabalho como se estivesse em funções e disputa acerrimamente com o actual responsável, uma das minhas áreas de actividade, tanto mais que ele é o verdadeiro entendido na matéria. Face à legalidade de um e aos conhecimentos de outro, juntos concordaram em criar um tempo de passagem em que ambos terão uma palavra a dizer. Aparentemente tomaram a decisão certa, mas criam-se situações que vão do dramático ao cómico e nunca sei a quem dou primeiro conhecimento de qualquer coisa, a quem peço primeiro uma assinatura, quem tem a primeira palavra e, principalmente, quem tem a última e até nos e-mails se questiona quem vem em primeiro lugar.
Andamos sempre confusos para cá e para lá, fazemos e refazemos, ouvimos daqui e dali e, conclusão, nem gregos nem troianos ficam satisfeitos e nós ficamos com a profunda sensação de inutilidade e enormes quantidades de energia desperdiçadas!
As coisas já não estão fáceis, a crise agudiza-se, as relações entre as pessoas deterioram-se e é tempo de fazermos brainstorming e não de queliziarmos uns com os outros!
O cansaço e a fartura que isto arrasta são incomportáveis e davam para uma peça de teatro onde muita gente se reveria, tenho a certeza. Quanto mais tempo ficaremos nestes entretantos sem chegarmos aos finalmentes? Irra!

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Comboios da minha vida

16 anos foi o maior período em que vivi na mesma casa. A trinta metros da linha do comboio e a cem da estação, íamos à janela para ver se o meu pai vinha naquele comboio ou não e saíamos de casa para o apanhar quando as campainhas começavam a tocar.
Viver lado a lado com a rotina dos horários da passagem dos comboios era absolutamente normal. Quando mudámos de casa quis o destino que a linha do Oeste ficasse a poucos metros na janela da cozinha. Da janela da casa seguinte via-se a cerca de cem passos. Anos e algumas casas mais tarde, voltei a uma casa que distava os mesmos cem metros da estação e hoje estou a cem metros da linha férrea, embora Entre-Estações, como se fosse uma réplica humana de Entre-Campos.
Numa ocasião, há muitos anos, vieram uns primos lá do Alentejo com consultas e exames médicos marcados num qualquer hospital e hospedaria marcada em nossa casa. Quando nos levantámos de manhã estavam as criaturas com o estenderete do sofá cama já arranjado, cobertores dobrados e eles sentados a olhar para o vazio, com cara de quem tinha feito uma directa.
Dados os bons dias e os cumprimentos perguntámos a que se deviam aquelas caras. Responderam que não conseguiram dormir com o barulho. Barulho? Que barulho? Ninguém ouvira nada. Apesar do sono lá arranjaram convicção e força para imitar o barulho que se ouvia, aí de vinte em vinte minutos ou de meia em meia, hora, eles não sabiam ao certo, mas tinham a certeza que era um grande barulho, um barulho barulhento e rugidor. Mas que mistério! Como é que um barulho assim só os acordara a eles e nós, cinco pessoas, não ouvíramos nada?
Já não sei quem foi que se lembrou então dos comboios, aos quais estávamos habituados e que passavam por nós sem nos beliscarem o sono.
Durante anos era o meio de transporte de eleição de quem morava na linha de Sintra como eu: portas abertas e gente pendurada nos degraus era um cenário completamente normal, enquanto lá dentro os passageiros seguiam ensanduichados e colados uns aos outros. A estação de Queluz era um susto: entravam os queluzes, como lhes chamávamos, à força toda e as carruagens já cheias ficavam irrespiráveis.
Devido à falta de segurança e ao facto de as pessoas andarem literalmente de fora do comboio, os acidentes sucediam-se e um colega meu perdeu uma perna nestas brincadeiras.
Muitas das visitas aos meus avós no Alentejo eram feitas de comboio até Lisboa, barco até ao Barreiro, outro comboio até Beja, depois de automotora até Moura e, finalmente, de camioneta até à aldeia; a automotora era uma coisa cónica afunilada, vermelha e branca, muito fumarenta, ruidosa e com bancos de sumapau, como se dizia na altura.
Hoje viajo com alguma frequência no Alfa para ir a Coimbra e já não uso o comboio diariamente nas deslocações para o trabalho, mas guardo memórias de viagens fabulosas no sul da Polónia em direcção a Zakopane, pela Itália, Finlândia ou em Inglaterra, sem falar na volta do Tua, impressionante, e muitas, quase todas, as linhas de Portugal.
Viajar de comboio tem um romantismo que nenhum outro transporte consegue atingir, principalmente se os companheiros de viagem forem gente simpática.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Dias Difíceis

Edith, a mãe de All in the family, perguntava um dia ao seu inesquecível marido Archie Bunker se o período designado, para as mulheres, como menopause, nos homens seria womanpause. Infelizmente a piada não faz sentido em português e a maioria das menopausas não têm sequer piada em qualquer local do mundo. Mas fazem parte da vida.
Ao longo dos anos as meninas eram ensinadas a não falar de certas coisas e se hoje em dia os namorados e maridos vão ao supermercado comprar tampões com a naturalidade de quem compra uma garrafa de água, isso nem sempre assim foi.
Sangue a jorrar dos pipis era tabu e a palavra menstruação evitada a todo o custo. Não sendo uma palavra bonita mas sempre é melhor que qualquer alternativa – à excepção do período – como o clássico Chico, expressão péssima e cuja origem desconheço.
Mas se na adolescência nos ensinavam a calar e a esconder conversas menstruais, porque ao fim e a ao cabo de sexo se tratava, ainda hoje pouco se fala da menopausa. Os calores são causados por um andamento mais rápido, as hemorragias devem ter a ver com qualquer coisa não se sabe bem o quê, a irritabilidade é da falta de férias e muitas outras desculpas porque no fundo as mulheres envergonham-se de estar na menopausa como as raparigas se envergonhavam de estar menstruadas.
A menstruação era associada a qualquer coisa suja, porca e a menopausa é sinal de velhice, quanto menos se falar do assunto melhor! Mais ainda, - e isto dá-me uma vontade de rir especial – eram assuntos sussurrantes, que deslizavam nas conversas mas em voz baixa, para que ninguém ouvisse.
Hoje já não é bem assim e as raparigas afirmam estar com o período com naturalidade e os tampões não andam escondidos no fundo das malas. Isto lembra-me a mala da minha irmã onde desde há anos mora uma caixa de tampax que sempre que se gasta é imediatamente substituída por outra!
O ciclo fecha-se com a actuação da menopausa que dá vontade de muita coisa, mas não de bater palmas. As mulheres falam dela ainda em meias palavras, através de olhares cúmplices que esclarecem as outras sobre o motivo do mal-estar ou dos calores e só diante do senhor doutor é que as palavras são ditas, embora de olhar recolhido e preso ao linóleo do chão, que isto de falar destas coisas, mesmo com médicos, ainda tem que se lhe diga!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Solidão

Zeus condenou o gigante Atlas a carregar o mundo nas costas para a eternidade.
Há pessoas que se assemelham ao Atlas, não por carregarem o mundo, mas por arrastarem a solidão.
Essa solidão adensa-se por exemplo em salas de espera de hospitais, onde chega a tornar-se sólida, mesmo que as pessoas estejam habituadas a estar sós. Até podem ter companhia, mas estando acompanhadas, estão sozinhas, como se estivessem num deserto ventoso onde o vento não se decide para onde soprar e as empurra para todos os lados, tentando deixá-las cair.
As dores e o mal-estar que sentem não são nada, comparados com a tristeza de terem que se encostar ao vazio de uma cadeira de hospital, de fazerem um chá sozinhas, de se esforçarem aos limites para ir à farmácia.
Mesmo que os amigos se ofereçam para fazerem certas coisas, para fazerem companhia, estão no lugar que lhes compete, de ajudar. Só isso, mas falta fazer muito mais.
Lembro-me que quando era casada o meu marido agia como se fosse um médico frio e distante que mede a febre, estica a palma da mão autoritária com os medicamentos, corre as cortinas e cria a penumbra para descansar. Nunca me passou a mão pela cabeça, numa carícia de desejos de melhoras, nunca se deixou ficar ao meu lado deixando o silêncio mostrar como queria que eu melhorasse.
É verdade que não tinha que me preocupar com horários de medicamentos porque sabia que ele não se esqueceria, as refeições eram adequadas, bastava eu levantar-me para ir à casa de banho e quando regressava já a cama estava feita de novo, era perfeito como enfermeiro, mas deixava a desejar como marido.
O sol hoje espoja-se com intensidade nas esquinas dos prédios e da memória como se quisesse desfazer o negro da solidão, mas não consegue, será sempre fraco demais. É quente mas não tem o toque da pele, faz-nos transpirar mas não respira, faz companhia mas não resgata da solidão.
O ar de Verão que o dia hoje trás vestido remete para dias felizes de férias e praia e viagens e passeios e cumplicidades. Remete para o passado.
Oiço as acusações de estar silenciosa e sei que são verdadeiras, mas há momentos tão fundos, tão tristes e infelizes que me obrigo a não trazer seja quem for para dentro deste abismo.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Odeio greves!

Actualmente e desde há algum tempo só uso diariamente o metro. Porém, desde há semanas (que me parecem uma eternidade) que ando a saltar do metro para o comboio e vice-versa, e vice-versa também para os utilizadores do comboio. Porquê? Por causa das malditas greves!
Como só tenho passe de metro, quando os senhores metropolitanistas fazem greve, lá tenho que comprar bilhete de comboio e já perdi a conta às vezes em que isso aconteceu ultimamente.
Acreditem que respeito imenso os funcionários, entre os quais tenho primos, amigos e conhecidos, mas já chega!
Acho que devem ganhar três vezes mais – É três vezes mais que querem? Seja! E se não for, desculpem ai, é que estou tão cansada de me levantar ainda mais cedo, de chegar a casa ainda mais tarde por causa das vossas greves, que talvez me baralhe! – sou solidária com o aumento dos descansos, estou cansada de ler e-mails onde afirmam que não recebem os três mil euros que se diz que recebem e também estou cansada de não vos ver marcar greves nos inícios do mês… porque será…?
A bem da verdade, as empresas acabam a brincar com os clientes – que não têm grande remédio senão ser clientes deles – pois enquanto não andam não têm que fazer manutenção nas linhas, não pagam ordenados, não há acidentes, não têm que pagar seguros e o pessoal vai comprando uns bilhetes no vizinho metro quando são os comboios a parar e na amiga CP quando é o metropolitano a fechar portas.
A clientela obrigatória compra o passe sem o qual não passa nas maquinetas – já agora façam aquilo também para gordos que vocês não discriminam o dinheiro que recebem também não o devem fazer nos passageiros! – e depois anda a comprar bilhetes avulso noutros meios de transporte o mês inteiro.
Por amor de Deus, Alá, Buda, Júpiter, Ganesha e todos os que queiram parem com isso que já não se aguenta.
Nós valemos assim tão pouco que não se importem que viajemos enlatados, com pessoas a sentirem-se mal dia após dia devido aos apertos, com outros a saírem magoados de virem com as costas apoiadas nos ferros a viagem inteira e outras situações semelhantes? Para falar com franqueza a aquisição do bilhete supõe umas determinadas condições e se essas condições não estão reunidas, nem por sombras, então podemos não comprar bilhete…
Senhores maquinistas, revisores, factores e outros funcionários dos transportes, a paciência tem limites, ao contrário da vossa incompreensão para com os passageiros que são obrigados no início de cada mês a comprar passe!

O anúncio

Este texto podia chamar-se Crónica Anunciada da Publicação dum Anúncio, mas ficava com ar de aliteração.
Disseram-me que iam publicar um anúncio num jornal nacional sobre mim. Primeiro pensei que brincavam. Depois percebi que era a sério e tentei saber o que diria. Fiquei no escuro. Até ontem, quando o li.
Não, não vou reproduzi-lo aqui. Não é bonito andarmos a mostrar os elogios que recebemos. Mas não podia passar sem falar dele. O autor do anúncio é amizade recente e distamos muitas centenas de quilómetros, mas sentimo-nos próximos e aquece-nos o fogo de muita coisa em comum.
Confesso estar habituada a que me façam elogios profissionais, um ou outro sobre o que escrevo, sobre a beleza e /ou diversidade dos meus sapatos e/ou malas, sobre as diferentes cores de cabelo que vou usando, sobre os pratos que vou inventando e, porque não dizê-lo se é verdade, sobre as pernas.
Mas, à excepção dos meus amigos I. e V., que exageram francamente nos elogios à minha pessoa, raros, raríssimos, são os que ouço, os que vejo manifestados.
Ora o anúncio vem em sentido contrário e faz-me um elogio a mim pessoa, toda, inteira.
Nos elogios que costumo ouvir eu sou uma figurante: são os sapatos que são bonitos, é o comer que é bom, é o trabalho que está bem feito; por acaso, eu também ando por ali, mas é por acaso.
O anúncio deu-me vontade de rir, como uma camponesa se rirá se se vir vestida de festa, vendo-se deslumbrante, brilhante, exuberante. É claro que salta logo a pergunta, Mas aquela sou eu? Ou são os olhos de outrem que assim me vêm?
Deliciada com a surpresa, encantada com a leitura, deitei a perguntas para trás das costas e deixei-me envolver em sorrisos.
Obrigada.

O par de sapatos

Através do Criar Afectos os meus pais foram no fim-de-semana em passeio a Viana do Castelo.
Sábado às seis da manhã estavam pontuais no local de encontro, meteram-se na cáminete e lá foram eles mais uma mão cheia de amigos e companheiros. Cantaram até à rouquidão fado, pimbas, cantigas regionais e tudo o que se lembraram. Chegados a Viana foram depositados à porta do hotel com hora marcada para a recolha dos convivas, que o Museu da Ourivesaria já esperava por eles.
O atropelo da subida para os quartos não deve ter sido muito grande porque aquela malta já não tem idade para correrias mas, segundo o relato, rapidamente subiram, abriram as malas para esticarem os fatos, as sedas, os lamés e lantejoulas que usariam no baile que se seguiria ao jantar nessa noite.
Não conheço alguém tão vaidoso como a minha mãe e imaginei logo que levaria na bagagem roupa suficiente para uma tournée de seis meses à Austrália e que faria as delícias e a inveja das amigas.
No caminho trajaram roupa prática, ele ténis e ela botas de caminhar, onde os atacadores ligavam com os brincos e nada ficava ao acaso, cinto, meias, colares, tudo a condizer.
Ora quando chegaram e ela abriu o baú e começaram a sair saias e lenços como pombas de dentro da cartola de um mágico, saiu também um par de sapatos para o meu pai usar no jantar dessa noite que deviam ser calçados com o belo fato desportivo que lhe dá um ar jovial e descontraído. O pior foi só então ela ter reparado que um sapato era preto, quadrado na biqueira e outro castanho e bem redondo!
Ao telefone o meu pai contou-me o disparate a rir-se e dizia que talvez os calçasse, sim, porque felizmente, ela não trouxera os dois do mesmo pé!
Resta dizer que o homem foi ao jantar de ténis porque não encontraram uma casa aberta para comprar um par de sapatos, mas quem o conhece sabe que ele adorou a cena, não se importou nada e agora vai gozar o pratinho até à exaustão…

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Juntam-se todas as cores e fazem-se sorrisos

Juntam-se todas as cores e fazem-se risos
Que não se cansam e nem adormecem
Faltam promessas que não amanhecem
Lambuzam-se olhares que ficam cativos

Olhares que brilham ainda sem sisos
Enquanto os adultos, todos, endoidecem
Enquanto as esperanças, todas, desfalecem
Mesmo com tantos, ai tantos avisos

São empurradas para um incerto futuro
Por mãos que não deviam sair do leme
Distribuindo amor, carinho e certezas

Mas caminham ignorantes rumo ao escuro
Não acreditando que alguém as algeme
São apenas crianças, não têm impurezas