A duração de uma vida é coisa muito relativa, morrem uns cedo demais, outros duram que nem sequóias, uns têm vidas longas em anos que se multiplicam a sobreviver, sem alegria ou doentes, outros têm vidas curtas porque só soubemos delas durante uns tempos.
Uma coisa é certa, por muitas vidas que se vivam nunca conhecemos as pessoas com quem lidamos durante anos, mães ou pais, maridos e mulheres, irmãos, amigos ou vizinhos fazem-nos jurar que aquela pessoa nunca terá aquela atitude ou chocarmo-nos quando sabemos que fulano matou ou roubou, no fundo que espoliou o nosso conhecimento, a nossa visão sobre essa pessoa.
Como as mudanças são fenómenos que, normalmente, ocorrem muito devagar, ocasionalmente quando damos conta, já o que era quadrado é redondo, o que era encarnado é cinzento.
Percebemos a mudança, temos essa certeza mas, terá ela ocorrido naquela pessoa ou em nós? Para tirarmos dúvidas, perguntamos a outros, principalmente a outros que estejam longe, que não nos vejam há algum tempo, àqueles que mais fácil e rapidamente dariam conta de qualquer alteração, aos que não estão contagiados pela proximidade.
A resposta é não, pareces igual, igualzinha, igualita, defendes as mesmas causas, mantens os mesmos gostos, continuas chata por não usares certas palavras e teres montes de manias, como a mania de escrever sobre a dromomania, a intensidade do teu abraço não esmoreceu, as tuas gargalhadas continuam saudáveis, a tua firmeza inabalável, a tua generosidade imbatível, a entrega aos outros, a mesma, o teu sentido crítico, ainda mais apurado.
Então, penso eu para mim, não fui eu que mudei e isso entristece-me porque se o tivesse sido, e sendo avisada, alertada, mudava novamente ou, pelo menos, fazia por isso, no mínimo, reconhecia que assim era. Tenho essa certeza porque já me aconteceu.
Quando alguém muda, e muda de tal forma que se transforma numa pessoa diferente, e mencionando nós essa mudança a pessoa recusa acreditar, recusa encarar as provas, evidentes, recusa parar para se ver a si próprio, recusa tudo, o que devemos fazer?
Dizem que nos devemos afastar das pessoas distímicas, mas eu, com um temperamento altamente hipertímico, sempre achei que tinha força para dar e vender, que conseguia ajudar espontaneamente ou quem me procurava no quotidiano, buscando um ombro, um conselho, um sorriso, porque tinha sempre uma janela para abrir, sempre uma energia para partilhar. E quando, a partir de certa altura, não aceitam? Quando nos ostracizam?
Sempre soube que havia pessoas que acreditam que o universo se move para agir contra elas, mas nunca tinha lidado com alguém assim.
Se chove é um aborrecimento, se faz calor, uma chatice, se os sapatos são velhos estão deformados, se são novos, fazem-me bolhas nos pés, de certeza que os transportes se vão atrasar, é garantido que o comer se vai queimar, o rádio só passa música que não presta para nada, toda a gente viu que eu só tinha três coisas e mesmo assim não me deram a vez na fila do supermercado, com tanto medicamento nas prateleiras da farmácia tinha que ser o meu a estar esgotado.
Confesso-me impotente para lidar com uma pessoa para quem tudo está mal e que, incapaz de se ouvir, afirma que não é assim. Quando se lhe reproduz a conversa, diz que estamos a mentir.
Confesso-me impotente para lidar com uma pessoa que não tem uma palavra, uma atitude positiva, que tudo o que faz é em esforço, por sacrifício. Quando se lhe menciona isto, diz que não é assim.
Confesso-me impotente para lidar com uma pessoa que não conheço, que tomou o lugar de outra que eu adorava, que idolatrava.
Confesso-me acima de tudo profundamente triste. Bem sei que há vidas complicadas, mas as dificuldades serão sinónimo de pormos os outros de lado? De esquecermos que existem?
A cada problema que tenho olho em redor e encontro de uma assentada vinte outras pessoas com problemas que fazem os meus parecer uma brincadeira: tenho essa consciência mas, ainda assim, estarei a ser egoísta quando me sinto rejeitada?
Ouço outras pessoas contarem como certas amizades se esfumaram, e como continuaram a viver sem elas, percebendo rapidamente que, afinal, não tinha valido a pena. Eu acho que valeu a pena, e muito.
Conheço duas pessoas cujas vidas davam filmes, ambos dramáticos, provocadores de nós na garganta, ira contra quem lhes fez tanto mal, fúria contra um destino cego que as colocou no mundo, não para viver, mas para sofrer. Dessas pessoas, apesar de dias seguidos de dias de sobrevivência pura, sempre recebi preocupações comigo, expressas em perguntas tão simples como um está tudo bem? Acredito que muitas foram as vezes em que verbalizaram a pergunta e as suas mentes estavam a mil à hora e distantes do local onde nos encontrávamos mas, sabendo que eu, ou outra pessoa, não estávamos bem, arranjavam espaço para os outros. Uma dessas pessoas é das mais sorridentes com quem já me cruzei, com uma auto-estima tão alta que nem se lhe vê o cume e não descansa enquanto a nossa unha partida não volta a crescer. É a pessoa mais corajosa que conheço.
Porque não somos todos assim? Porque não paramos para olhar em redor e descobrir o que olhamos todos os dias mas não vemos? Porque tem tudo que ser negro? Porque nos contentamos com a nossa visão? Porque nos satisfazemos com o nosso pensamento? Porque pomos de lado quem pensa de modo diferente?
Porque nos transformamos tanto? Haverá um síndroma de Kafka? Será irreversível? Pois se até Jacinto saiu do 202 e amou Tormes... tudo é possível; só espero que para ambos os lados, uma vez que a minha esperança se mantém.