terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Cucurrucucú paloma

Caetano canta e o sangue arrepia-se.

Dicen que por las noches
No más se le iba en puro llorar
Dicen que no comia
No mas se le iba en puro tomar
Juran que el mismo cielo
Se extremecia al oir su llanto
Como sufria por ella
Que hasta en su muerte la fue llamando

Ay, ay, ay, ay, ay
Cantaba
Ay, ay, ay, ay, ay
Gemia
Ay, ay, ay, ay, ay
Cantaba
De pasión mortal moria
Que una paloma triste
Muy de mañana le vá a cantar
A la casita sola
Con sus puertitas de par en par
Juran que esa paloma
No és otra cosa mas que su alma
Que todavia la espera
A que regrese la desdichada
Cucurrucucú
Paloma
Cucurrucucú
No llores
Las piedras jamás
Paloma
Que van a saber
De amores

Alma de viajante

Pela forma como se me dirige por e-mail deve ser um grande amigo meu, embora não saiba quem é. Nessa qualidade sugere-me uma série de viagens a preços, pois claro, de amigo. Curiosa, vou espreitar...
Maurícias, Reunião, Zanzibar, Costa Rica, mas também uns vulgares Países Baixos ou Hungria, há de tudo, eventualmente para todos os gostos, mas não para todas as paciências.
Os preços baixos incluem estadia e deslocação e, escolhendo a Tailândia, tenho a possibilidade de lá chegar em trinta e três horas e regressar numas alucinantes cinquenta e cinco!
O local criteriosamente seleccionado para mim é adequado para quem procure calma, como eu - dizem eles e fico espantada como estranhos alegam conhecer-me! - e portanto, fique tranquila e descansada, as praias e o seu natural alarido, ficam longe de mim.
Verdade seja dita que terei a possibilidade de visitar inúmeros aeroportos, logo, conhecer imensa gente, fazer amizades, aumentar os meus amigos do Facebook e tirar fotografias em sítios inesperados.
Que mais pode pedir uma pessoa? Trotar infatigável pelo mundo, dizer olá e adeus numa corrida enquanto se entra e sai de aviões sem descanso, ir à Tailândia e não banhar os pés na praia.
Agora sou eu que lhes digo, Meus queridos amigos, façam um favor a vocês mesmos e mudem de estratégia! Já agora, pelo caminho apaguem a minha morada.

O que nós queremos... nem nós sabemos

No pequeno percurso entre casa e o metro venho a ouvir a Rádio Comercial.
A boa disposição daquela malta hoje brindou-nos com uma estatística - altamente científica! - sobre as diferentes preferências de profissão em homens e mulheres.
De acordo com o estudo, e de entre uma lista que contempla jornalistas, fotógrafas e web designers, os homens preferem as advogadas; já as meninas preferem os médicos e, algures na lista, vinham os desenhadores de móveis, ou algo parecido, o que levantou sobrancelhas de admiração.
O espanto é revelador de grande falta de coltura, de desconhecimento dos mitos de Nova Iorque e respectiva globalização, de verdadeira carência de informação.
Urge sentarem-se diante da televisão a ver todos os episódios de todas as séries de O sexo e a cidade.
Qual a profissão do belo Aidan Shaw, namorado de Carrie?  Aquela carinha laroca, o cabelo comprido e ar descontraído e despreocupado, sem horários, romântico, perfeito até ao enjoo... as mãos do homem, que nem plainas, a afagar, a mimar, a dar atenção aos detalhes, aos cantinhos... ai mãe...
Pessoal do programa da manhã da Rádio Comercial, o que as mulheres querem é um Marceneiro!

Holocausto, com H de horror

Ontem comemorou-se o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. A 27 de Janeiro de 1945 abriram-se os portões do campo de concentração de Auschwitz, um cemitério de gente viva.
A memória - e agora que lidamos com um problema de memória selectiva por parte de um jovem na sociedade portuguesa... - tem de ser preservada, tem de nos ensinar o que não se pode repetir e estes avisos têm eles próprios de se multiplicar, nas comemorações, na literatura ou no cinema, ou em qualquer outra forma, mas reais.
Filmes como o aclamado A vida é bela são visões que amenizam a realidade, que, propositadamente ou não, suavizam o horror quando o horror não pode ser suavizado; são perspectivas que iludem como quem afirma que era possível enganá-los, era possível fugir, era possível vencer. Quem vá a Auschwitz sente o logro, o engano, a fraude de filmes como aqueles e percebe a resposta do historiador Robert Hughes quando lhe perguntaram qual a obra de arte adequada para lembrar as vítimas em Dachau, Os próprios fornos são perfeitos. Como é que a arte pode superar a eloquência daquele lugar?
Acabei de ler A bibliotecária de Auschwitz, de Antonio Iturbe, relato baseado numa história verídica, mas que coloca Auschwitz-Birkenau a alguma distância de Auschwitz-Birkenau de Primo Levi e muito longe do que nos invade quando entramos nas antigas instalações dos que eram consumidos com ziklon-b.
As descrições dos longos caracóis loiros onde enrolavam os dedos deixam-nos logo de sobreaviso, assim como os diálogos entre mães e filhas onde a etiqueta social é chamada a intervir. Embora o autor conte como conheceu a protagonista na qual a história se inspira, (quase) tudo nos parece encenado e a mim, encenações que envolvam a morte de milhões de pessoas, dão-me que pensar.
Tal como os muçulmanos têm a obrigação de ir pelo menos uma vez na vida em peregrinação a Meca, todos os cidadãos do mundo que se prezem deviam ir a Auschwitz, proclamar a religião do respeito, venerar a memória e aprender com ela.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Gosto disto...

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos,
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.
Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho alacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que força através de tudo
num perpétuo movimento.
Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste ou capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, paço de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão de átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.
Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que o homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.
António Gedeão, Pedra Filosofal

Dia de greve

Já não me lembro da frase que o homem do carrossel anunciava, outra volta, outra rodada, acho eu, mas sinto-me na mesma quando penso em mais um dia de greve do metro.
Uma ventania árctica faz-me pedir ao meu filho que me leve à estação de comboios para apanhar uma alternativa de transporte. Noutra altura qualquer teria ido a pé, mas hoje fazia um frio dos diabos e dei-me ao luxo de incomodar.
O comboio, dos novos com dois andares, vinha cheio mas não à pinha e, perfurando aquela massa que se deixa ficar junto à porta, consegui logo um lugar sentada. Ao meu lado seguia uma jovem de perna cruzada com um saco da Fnac que teimava em escorregar para cima de mim. Parecendo não ter reparado, tirei um auscultador, para a ouvir caso ela dissesse alguma coisa, e perguntei se podia segurar melhor no saco, como quem diz, toma lá conta das tuas coisas não mas atires para cima.
A rapariga teve azar e até tive pena dela, pois fez um ar ofendido e, enquanto perguntava se estava a incomodar assim tanto, descruzou as pernas e pregou um valente pontapé na passageira da frente que reagiu imediatamente com um agudo ai, levando a mão à perna. Neste gesto, naturalmente inclinou a cabeça e a atacante fez o mesmo em simultâneo para ver os estragos na perna alheia. Resultado, pregaram tamanha cabeçada que logo ali se gerou uma discussão, por entre risos, entre os quais o meu, inevitável, mas que me valeu um olhar penetrante e um está a rir-se do quê? a culpa é sua! Foi nesta altura que passei dos risinhos para um bom par de gargalhadas.

De castigo, já!

Todas as noites pico o ponto ao telefonar para os meus pais a saber como estão, como foi o dia, o que fizeram e não fizeram. Nos últimos dias tenho tido uma pontaria olímpica e ligo sempre quando estão a jantar. Por norma, encurta-se a conversa ou deixa-se para mais tarde. Não foi o que aconteceu na segunda-feira.
Assim que atenderam percebi que a sopa estava a ser consumida e informei que ligava mais tarde. Nada disso! Mais logo é que não que estamos a despacharmo-nos para irmos ver televisão. Televisão?
Durante anos, a senhora minha mãe caracterizou-se por detestar três coisas: bananas (consta que em pequena comeu um cacho de empreitada, razão pela qual nunca mais as pode ver à frente), iogurtes (tendo dedicado a vida às crianças e vivendo no seio de vários colégios infantis onde proliferavam os iogurtes, foi coisa que sempre lhe sempre lhe causou um certo asco) e futebol (mundo no qual conhecia o Eusébio e sabia que se jogava com uma bola).
Agora e desde há uns, poucos, anos, come iogurtes como se não houvesse amanhã, adora bananas e tem um fascínio por futebol inacreditável: vê os jogos, comenta-os, irrita-se quando o Sporting perde e venera o Cristiano Ronaldo.
Assim, naquela noite, eu tive a ousadia de ligar quando iam repetir as imagens da condecoração e, não só fui admoestada para me despachar, como fui convocada para me sentar igualmente diante da televisão, qual missa a que tinha que assistir.
Sendo minha mãe disse que sim e, a verdade, é que fazia intenção de cumprir mas, aquecido o jantar, fui sentar-me na sala e ligando a televisão estava esta sintonizada no canal História e passava uma reportagem sobre o Sudário de Turim, a Kaaba de Meca, a Pedra de Blarney Castel na Irlanda entre outros mistérios que a História vai construindo para nosso prazer e curiosidade.
Deixei-me ficar por ali, saltando de século em século, guiada por teorias variadas onde não faltavam extraterrestres, coisa maravilhosa e, escusado será dizer, nunca mais me lembrei do Cristiano.
E foi assim que no dia seguinte quando voltei a falar aos meus pais e me perguntaram se eu tinha gostado de ver a cerimónia, e depois de um quase qual cerimónia?, que conseguiu ser atalhado, eu respondi, mentindo, que sim, fora muito bonita.
Ora, como toda a gente sabe, apanha-se mais depressa um mentiroso que um coxo, e eu aguardo serenamente o meu castigo. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Dia de passeio

Na canção do Rui Veloso bebe-se a brisa marinha e aprecia-se a paisagem. Não pintei os lábios de vermelho nem passei meia hora ao espelho e daí, talvez, não tivesse apreciado paisagem alguma.
Comecei o dia com uma reunião na avenida de Berna e, desde a saída do metro até ao destino, foram uns bons vinte minutos: atravessar a Praça de Espanha a pé não é brinquedo.
Os semáforos descombinam para os peões, abre um e fecha o outro logo a seguir, abre este e fecha o seguinte.
O transeunte pára a cada passo, afastando-se do alcatrão o mais possível pois a água acumulada é lançada pelos rodados dos veículos, bate-nos nas pernas sem pedir licença e assim se avança, como numa dança, pára, afasta, passa, pára, afasta, passa.
Não sei se o mar estava em contestação, mas o céu estava em agonia, chovia e chovia e chovia.
Não houve inundações porque tendo eu feito o percurso a pé, sem chapéu-de-chuva, apanhei a água toda e trouxe-a comigo.

Síndroma de Kafka

A duração de uma vida é coisa muito relativa, morrem uns cedo demais, outros duram que nem sequóias, uns têm vidas longas em anos que se multiplicam a sobreviver, sem alegria ou doentes, outros têm vidas curtas porque só soubemos delas durante uns tempos.
Uma coisa é certa, por muitas vidas que se vivam nunca conhecemos as pessoas com quem lidamos durante anos, mães ou pais, maridos e mulheres, irmãos, amigos ou vizinhos fazem-nos jurar que aquela pessoa nunca terá aquela atitude ou chocarmo-nos quando sabemos que fulano matou ou roubou, no fundo que espoliou o nosso conhecimento, a nossa visão sobre essa pessoa.
Como as mudanças são fenómenos que, normalmente, ocorrem muito devagar, ocasionalmente quando damos conta, já o que era quadrado é redondo, o que era encarnado é cinzento.
Percebemos a mudança, temos essa certeza mas, terá ela ocorrido naquela pessoa ou em nós? Para tirarmos dúvidas, perguntamos a outros, principalmente a outros que estejam longe, que não nos vejam há algum tempo, àqueles que mais fácil e rapidamente dariam conta de qualquer alteração, aos que não estão contagiados pela proximidade.
A resposta é não, pareces igual, igualzinha, igualita, defendes as mesmas causas, mantens os mesmos gostos, continuas chata por não usares certas palavras e teres montes de manias, como a mania de escrever sobre a dromomania, a intensidade do teu abraço não esmoreceu, as tuas gargalhadas continuam saudáveis, a tua firmeza inabalável, a tua generosidade imbatível, a entrega aos outros, a mesma, o teu sentido crítico, ainda mais apurado.
Então, penso eu para mim, não fui eu que mudei e isso entristece-me porque se o tivesse sido, e sendo avisada, alertada, mudava novamente ou, pelo menos, fazia por isso, no mínimo, reconhecia que assim era. Tenho essa certeza porque já me aconteceu.
Quando alguém muda, e muda de tal forma que se transforma numa pessoa diferente, e mencionando nós essa mudança a pessoa recusa acreditar, recusa encarar as provas, evidentes, recusa parar para se ver a si próprio, recusa tudo, o que devemos fazer?
Dizem que nos devemos afastar das pessoas distímicas, mas eu, com um temperamento altamente hipertímico, sempre achei que tinha força para dar e vender, que conseguia ajudar espontaneamente ou quem me procurava no quotidiano, buscando um ombro, um conselho, um sorriso, porque tinha sempre uma janela para abrir, sempre uma energia para partilhar. E quando, a partir de certa altura, não aceitam? Quando nos ostracizam?
Sempre soube que havia pessoas que acreditam que o universo se move para agir contra elas, mas nunca tinha lidado com alguém assim.
Se chove é um aborrecimento, se faz calor, uma chatice, se os sapatos são velhos estão deformados, se são novos, fazem-me bolhas nos pés, de certeza que os transportes se vão atrasar, é garantido que o comer se vai queimar, o rádio só passa música que não presta para nada, toda a gente viu que eu só tinha três coisas e mesmo assim não me deram a vez na fila do supermercado, com tanto medicamento nas prateleiras da farmácia tinha que ser o meu a estar esgotado.
Confesso-me impotente para lidar com uma pessoa para quem tudo está mal e que, incapaz de se ouvir, afirma que não é assim. Quando se lhe reproduz a conversa, diz que estamos a mentir.
Confesso-me impotente para lidar com uma pessoa que não tem uma palavra, uma atitude positiva, que tudo o que faz é em esforço, por sacrifício. Quando se lhe menciona isto, diz que não é assim.
Confesso-me impotente para lidar com uma pessoa que não conheço, que tomou o lugar de outra que eu adorava, que idolatrava.
Confesso-me acima de tudo profundamente triste. Bem sei que há vidas complicadas, mas as dificuldades serão sinónimo de pormos os outros de lado? De esquecermos que existem?
A cada problema que tenho olho em redor e encontro de uma assentada vinte outras pessoas com problemas que fazem os meus parecer uma brincadeira: tenho essa consciência mas, ainda assim, estarei a ser egoísta quando me sinto rejeitada?
Ouço outras pessoas contarem como certas amizades se esfumaram, e como continuaram a viver sem elas, percebendo rapidamente que, afinal, não tinha valido a pena. Eu acho que valeu a pena, e muito.
Conheço duas pessoas cujas vidas davam filmes, ambos dramáticos, provocadores de nós na garganta, ira contra quem lhes fez tanto mal, fúria contra um destino cego que as colocou no mundo, não para viver, mas para sofrer. Dessas pessoas, apesar de dias seguidos de dias de sobrevivência pura, sempre recebi preocupações comigo, expressas em perguntas tão simples como um está tudo bem? Acredito que muitas foram as vezes em que verbalizaram a pergunta e as suas mentes estavam a mil à hora e distantes do local onde nos encontrávamos mas, sabendo que eu, ou outra pessoa, não estávamos bem, arranjavam espaço para os outros. Uma dessas pessoas é das mais sorridentes com quem já me cruzei, com uma auto-estima tão alta que nem se lhe vê o cume e não descansa enquanto a nossa unha partida não volta a crescer. É a pessoa mais corajosa que conheço.
Porque não somos todos assim? Porque não paramos para olhar em redor e descobrir o que olhamos todos os dias mas não vemos? Porque tem tudo que ser negro? Porque nos contentamos com a nossa visão? Porque nos satisfazemos com o nosso pensamento? Porque pomos de lado quem pensa de modo diferente?
Porque nos transformamos tanto? Haverá um síndroma de Kafka? Será irreversível? Pois se até Jacinto saiu do 202 e amou Tormes... tudo é possível; só espero que para ambos os lados, uma vez que a minha esperança se mantém. 

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Supercalifragilisticexpialidocious

Hoje vim no metro ao lado da Mary Poppins.
Entrou já de livro na mão, mão essa que também segurava uma caneta, enquanto a outra trazia a asa da mala, um chapéu-de-chuva e uns óculos.
Sentou-se a meu lado e começou a organizar-se, tendo pousado os óculos no nariz, corrente meia a balançar, meia deitada sobre o peito, mala no colo, chapéu-de-chuva encostado às pernas e livro de soduku em cima da mala.
A cada tremelique do metro, caia o chapéu, que ela se apressava a apanhar por meio de desculpas; a cada nova paragem e entrada de mais pessoas, caia o chapéu, que ela se apressava a apanhar, já entre desculpas e franzidos de sobrancelhas, como se alguém tivesse culpa dos bíblicos carregos que levava.
Quando o telefone tocou lá nos confins da mala, ela usou uma mão para segurar o livro, a caneta, os óculos e o chapéu, enquanto a outra esquadrinhava os quarteirões de carteiras, papéis, pacotes de lenços, maços de cigarros e eteceteras, cotovelos em riste, sem dar atenção a nada que a rodeava, até que o telefone deu à costa e, em simultâneo, o chapéu voltou a cair, e por cair entenda-se encostar-se a outras pessoas, pois não caia realmente no chão, não havia espaço para isso.
Foi atendida a chamada sem que se deixasse de preencher os quadrados do soduku, e o raio do chapéu, teimosamente continuava a roçar-se pelas pernas dos outros passageiros, e eu só pensava que a partida da família real para o Brasil no longínquo Novembro de 1807 não dera tanto trabalho nem incomodara tanta gente.

Quem não tem cão caça com gato

A capacidade de adaptação das pessoas é grande, não há dúvida. Embora afirmemos a sete pés que nós nunca isto ou sempre aquilo, confrontados com determinadas realidades mudamos os hábitos e os nunca e os sempre relativizam-se.
Até há uns tempos, filmes era na sala de cinema e alguns indiscutivelmente no dia da estreia; agora, tudo mudou. Primeira via-os na televisão ao gosto de quem escolhe a programação e agora o meu filho tratou de me dirigir a um antro de perdição na internet onde há de tudo para todos os gostos, inclusivamente as estreias, com uma semana ou menos de atraso.
Resultado, ando mais agarrada ao sofá que nunca, ajudada pelo zumbido nos ouvidos ao qual qualquer barulho é benéfico, porque o diminui. É rara a noite em que não vejo um filme, ou revejo.
Estava eu a dormitar com um dos últimos quando entrou o Duarte e, atirando-se para cima do sofá, perguntou se eu tinha parado o filme.
Não, meu filho, isto é uma obra do Manoel de Oliveira feita em Hollywood e quase só com africanos.
12 anos escravo é uma seca, com momentos tão parados como os ramos de uma oliveira em Agosto no Alentejo. Não encontrei profundidade de interpretação, nem a densidade que uma história daquelas merece, ou melhor, exige.
Os campos de algodão que dão sempre perspectivas fotográficas de cortar a respiração estão lá, mas sem exuberância visual, exuberância essa que faz falta pois acentua o dramatismo da escravatura negra.
Embora não se visse, sabemos que há uma câmara ali, em todo o filme, como se estivéssemos num documentário, e era suposto que nem nos lembrássemos dela. A forma como está realizado, o que se pediu aos actores e deles se aceitou foi pouco, muito pouco. Nada convence, parece um daqueles documentários policiais onde se reconstrói uma cena qualquer.
Ficou-me um amargo nos olhos, tanto mais que a segunda guerra mundial e a escravatura são dois temas que me atraem sempre e sobre os quais não gosto de ver abordagens superficiais. 

O jantar

As duas amigas sabiam que naquela noite a mãe de uma delas receberia visitas. Não era isso que as impedia de brincar, não obstante a anfitriã ter saído e deixado as duas a tomar conta do caldo de bacalhau com queijo fresco. Só tinham que esperar que levantasse fervura e, espetando uma batata e vendo que estava cozida, apagar o fogão ou deitar mais água se fosse caso disso. A mãe bem abriu os olhos e elevou a voz relembrando a missão, mas não foi por isso que qualquer delas memorizou melhor.
A visita era especial. Uma emigrante da aldeia tinha vindo de passeio com uma gravidez bem evidente; ao ouvir a vizinha dizer o que era o jantar, assomaram-se-lhe os desejos e logo ali se combinou tudo, nem havia dúvidas, não se falava mais do assunto.
Os doze ou treze anos das duas miúdas se, por um lado, eram idade mais que suficiente para tomar conta de uma casa naqueles anos cinquenta do século passado, por outro, eram algo preocupantes, principalmente se estivessem juntas.
Na bacia de metal com uma gota de água, colocada providencialmente à entrada das traseiras da casa para que se lavassem as mãos antes de entrar, como era hábito na aldeia, banhava uma falha de sabão, que era quanto bastava também para as ajudar a fazer balões e esquecer qualquer compromisso.
O brilho e a leveza das bolas de sabão não deixaram espaço para mais nada e só se voltaram a lembrar da panela quando ouviram a voz da dona da casa, que regressava. Correram ao fogão onde os espinafres e o bacalhau já se agarravam ao fundo.
Depressa, depressa, antes que ela chegue, água, é preciso água, água, água... e os olhos de ambas pousaram em simultâneo na bacia. Nem foi preciso dizer nada, uma afastou a cortina de tiras que impedia as moscas de entrar e a outra agarrou a bacia e atirou a água para dentro da panela, dando-lhe uma mexidela de meio segundo, tampa em cima, a tempo de porem uma cara tranquila e cumprimentarem a dona da casa que entrava com um bolo que encomendara na loja do senhor Chico.
Que sim, que estava tudo bem, então que fossem pôr a mesa e depressa, eles deviam estar a chegar.
A senhora ainda achou que os ovos e o queijo fresco provocavam uma espuma maior que o costume, mas não reagiu até que, servindo o tão ansiado caldo de bacalhau, a convidada cospe enojada a falha de sabão.
A cozinheira levantou-se estupefacta mas em três segundos percebeu tudo o que lhe era dito pelos olhos baixos da filha e a da amiga, caladas ambas como se estivessem na missa e a tentarem ser invisíveis.
A grávida, de boca lavada, evitou que a sessão de gritos fosse maior mas não conseguiu aparar o par de estaladas em cada uma, que na altura não se chamavam pais nem mães para se pregar uns açoites em garotos que comprovadamente tivessem feitos disparates.
A filha foi mandada para o quarto de castigo e a amiga foi levada a casa por uma orelha, onde o pai e a mãe estavam sempre à espera de qualquer coisa do género, conhecendo-lhe a energia e sabendo que era inventiva mas desastrada, bonita mas com muito excesso de peso, namoradeira mas fiel, já altura, ao filho do cabo da guarda.
Era assim a senhora minha mãe.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Quem corre por gosto não cansa

É domingo e parei agora de trabalhar.
Levantei-me cedo, como gosto, e as oito e meia da manhã já me apanharam sentada à secretária, computador ligado, documentos abertos, para que, no caso, corrigisse umas provas tipográficas.
Recorrentemente lembro a minha letra insegura que escrevia no diário adolescente afirmando que era impossível alguém trabalhar mais do que eu tinha trabalhado, a estudar. Rio-me sempre, mas não deixo de pensar na verdade daquelas palavras, na altura, tão distante, hoje.
Ninguém me obriga a estar aqui, a vir, mas não sou capaz de não o fazer: tenho imenso trabalho, não atrasado, é só muito.
Há pessoas que dizem que não devia trabalhar assim tanto, e não devia, por motivos de saúde, sei que não descanso o suficiente, mas também me apontam por habituar mal a hierarquia, por estar sempre disponível, por não saber dizer não.
A bem da verdade, não sei dizer não lá muito bem, é certo, mas também é verdade, de hoje, de ontem e, provavelmente, de amanhã, que gosto de trabalhar.
Gosto, ou não tenho vida social? Gosto, ou não tenho um companheiro para me entreter? Gosto, ou o meu filho já tem vida própria e eu fico sem saber o que fazer? A resposta a tudo é sim, também, o que não invalida de gostar do que faço, principalmente agora, com um projecto novo entre mãos, que me delicia. A prová-lo está o facto de ter sido sempre voluntariosa e empenhada, mesmo quando era casada e o meu filho pequeno.
Claro que me sinto penalizada com o ordenado que recebo, que gostava que fosse bem maior, claro que sim, mas esse aspecto nunca me fez ficar em casa aos fins-de-semana quando tinha coisas urgentes para fazer, nunca me fez adiar fosse o que fosse, nunca me segurou.
Trabalho por brio, antes de ser por prazer ou por obrigação e sou condenada e apontada por isso. Honestamente penso que dou muito à empresa que me paga o vencimento ao fim do mês, mas reconheço que ela também faz por mim; da mesma forma sei que fui eu a dar o primeiro passo e vejo à minha volta muitas queixas, umas com razão e outras nem por isso.
Quando trabalhava na Câmara Municipal os meus colegas diziam-me, meios a sério, meios a brincar, que não podia ficar fora de horas pois a inspecção do trabalho podia aparecer de repente. Por entre os sorrisos da jocosidade ficava a mensagem, que eu não servisse de modelo para que alguém os obrigasse a trabalhar mais, horas de entrada e saída são coisas sérias e merecem respeito.
Hoje, as pessoas que olham primeiro para o relógio e depois para o trabalho que têm em mãos são as que se mostram incapazes de dar o tal primeiro passo. Desfiam o que a empresa não fez por elas e arremessam esses argumentos para não fazer mais que a sua obrigação. Mais uma vez, há quem lhe sobre razões para o fazer e quem não as tenha. Há pessoas que se esforçaram e empenharam durante anos e não conseguiram ver essas atitudes minimamente recompensadas, o que é injusto, sei do que falo pois trabalho com alguém assim. Percebo-as, e se em simultâneo o estado do país não permite que nos agarremos a certas coisas, por outro lado os baixos ordenados não deixam margens para grandes compreensões. Gostava imenso de ter uma solução, mas não tenho.
Ainda assim, penso que os que mantêm um emprego, um trabalho, deviam dar graças por isso e sentirem-se valorizados. Acredito nisto, mas logo me saltam ao espírito exemplos que o contrariam, exemplos de pessoas concretas, de vidas difíceis, que eu adorava resolver, mas não consigo.
O que consigo é adiantar trabalho, e por isso aqui estou, bem ou mal, não sei, mas estou e, com saúde, repetirei, como faço tanta vez. 

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Uma questão de mãos

O Centro Comercial Renovação, nome apropriado para qualquer coisa em Almada, foi a minha escolha de ocasião, precisando de uma cabeleireira com urgência, não me recordo da situação, mas sei que tinha pressa. Nunca lá tinha ido e nunca mais lá fui, aliás, só a premência do meu destino me fez ficar, ainda que muito mal disposta. E porquê? Naquele momento da lavagem da cabeça, que adoro e do qual tenho imensas saudades, a senhora que o estava a fazer, usava apenas uma mão. A outra repousava no bolso, preguiçosa, como lho fiz saber, sendo acompanhada por um pedido de desculpa da proprietária. 
Muitos anos depois, muito longe dali, em Saratov, perto do imponente Volga, diante do hotel decorria uma obra. Um dos trabalhadores encaixava umas pedras, como quem dispõe calçada portuguesa. Sentado no chão, pernas abertas, uma mão guardada no bolso do casaco, a outra dividida entre o martelar e o centrar as pedras, que se acumulavam num monte aos seus pés e era precisamente com um pé que ele arrastava cada pedra que precisava para junto da mão. Uma das pessoas que estava comigo argumentou que talvez só tivesse uma mão; outra pessoa apostou que não, que tinha as duas, que era apenas preguiça, e ganhou. No dia seguinte, ao sairmos em direcção à Universidade, lá estava ele, desta vez de pé, ambas as mãos em acção, uma acção à Ivan Danko, de Red Hot, naquilo que universalmente é conhecido como brincadeira parva, andar à pancada por que lhes apetece. A cena foi interrompida por um homem mais velho que deu ali dois gritos e eles, bem dispostos e a rir, lá meteram as quatro mãos nos bolsos.
Numa outra ocasião, em Lisboa, na plataforma do metro da estação Jardim Zoológico, num dia de chuva intensa, a água escorria por uma parede e colocava-se uma faixa de riscas encarnadas e brancas, desviando os passageiros que ali passassem, evitando quedas e similares. 
A colocação da faixa ocupava quatro pessoas, repito quatro pessoas! 
Uma atava a fita do lado esquerdo, junto de um cartaz de publicidade, enquanto outra segurava o rolo. 
O rolo foi esticado e a fita cortada pela pessoa que o segurava, enquanto um terceiro membro da equipa o atava ao corrimão da escada. 
Um quarto elemento, a uns metros de distância para obter uma visão alargada, levantava e baixava as mãos, qual maestro que orienta a orquestra, fita dois centímetros para cima, fita dois centímetros para baixo, mão espalmada virada para baixo sinal de está bem assim. A missão terminou com a equipa swat a contemplar a obra, satisfeitos e sorridentes. Foi hoje, e assim vai Portugal. 

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Hip Hip Hurray, Ebenezer Scrooge!

A crosta terrestre pode sofrer as rupturas que sofrer que nunca me preocuparei com ela, ou melhor, é uma preocupação relativa, ai sim? isso deve ser grave... digo eu emitindo um ai sim com ponto de interrogação no final que não diz nada, nem mostra curiosidade, interesse ou seja o que for, e terminando com um isso deve ser grave que calha bem mas que, igualmente, expressa zero, no máximo estupidez e ignorância.
Eu sei que sem crosta terrestre esta bolinha a que chamamos planeta era outra coisa qualquer, mas também sei que as eventuais rupturas não trarão qualquer ruptura à minha vida.
Assim, a decomposição, a desagregação, a erosão ou qualquer outro ão não me tiram o sono e as mudanças de clima só me dizem que chegou a altura de mudar a roupa do roupeiro de Verão para Inverno e vice versa passados uns meses.
Estaria doida se fosse solidária com o intemperismo! Convivemos e já chega! Eu nem o menciono e ele não me provocará durante a minha vida, curta, muito curta, comparada com a vida destes fenómenos.
Passa-se o mesmo com a pobreza: quando cá cheguei já cá estava e vai continuar a estar quando me for embora, por que devo ser solidária ou preocupar-me?
Mais ainda, a bem da verdade, nem sei bem do que estão a falar, como vou ser próxima ou activa junto de qualquer coisa que desconheço? Isto é como as máquinas, o melhor é não mexer nos botões para não estragarmos nada.
Por outro lado ainda, isto as coisas estão sempre a mudar e nunca se sabe, imaginem que a coisa é contagiosa? Vai uma pessoa ser solidária com quem tem menos ou precisa e pumba, de repente vê-se também a precisar e a ter menos.
Esta é a conclusão lógica: se partilho fico com menos, o melhor é guardar.
Vem esta reflexão digna de Nobel a propósito do estudo feito recentemente pela Universidade Católica e pelo Instituto Luso-Ilírio para o Desenvolvimento Humano que concluiu que os mais ricos e instruídos são menos solidários.
Não sei quanto pagaram pelo estudo mas eu ter-lhes-ia dito o mesmo de graça.
O facto de se conhecer na pele uma determinada necessidade alerta o nosso consciente, subconsciente e até as raízes capilares sobre os outros. E é bom não esquecermos que nós também somos os outros.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

O casamento mais rápido do mundo

Tendo decidido não comemorar o Natal, não escapo ao Ano Novo. Sou eu mesma que tomo a iniciativa de falar com algumas pessoas, desejando-lhes um bom ano e dando dois dedos de conversa.
Ontem repeti a chamada para a minha amiga HS que voltou a não me atender; sendo a segunda vez achei estranho e mandei um sms a reclamar dizendo que só lhe perdoava se ela estivesse acompanhada... e se estivesse eu queria saber tudo...
Hoje ligou-me a reclamar, ela também: então que mania é a minha de lhe telefonar quando ela está a dormir?
Apanhada de surpresa, acho até que abri os olhos, tentando recordar se estaria fora de mim e me teria dado para ligar às pessoas à meia-noite. Não, a minha certeza era absoluta pois rejo-me pelas convenções sociais que interditam telefonemas depois das dez da noite a menos que sejam urgências.
Dez da noite? Clama ela lá do outro lado, Não, tu ligaste eram nove e pouco mas eu é que me deito às nove horas.
De surpreendida passei a catatónica. Pensei que brincava mas ela falava sério e pensou que eu brincava quando lhe disse que às nove da noite estou eu muitos dias a trabalhar, na Biblioteca, entenda-se, não em casa!
Bom, lá adiantámos conversa, as mesmas perguntas repetidas mesmo que nos tenhamos visto dois dias antes, continuas sozinha, sim, e tu, também.
Rimos, não da nossa solidão, mas do disco riscado e eu atiro-lhe que no meu caso é mesmo dificuldade em encontrar alguém, já ela não dá tempo seja a quem for, a deitar-se às nove da noite.
Continuamos a rir e eu pergunto-lhe se quer juntar os trapinhos comigo, ela que sim, à falta de melhor, mas que eu me vá preparando que ela vai meter já os papéis do divórcio.
Do divórcio? protesto eu, pois se ainda nem nos juntámos!
Sim do divórcio, vou alegar falta de atenção da tua parte que trabalhas até às nove da noite...
E assim começou a acabou o meu casamento com uma mulher, a rir.

A minha nova paixão: António Zambujo

Algo estranho acontece

O nosso amor chega sempre ao fim
Tu velhinha com o teu ar ruim
E eu velhinho a sair porta fora
Mas de amanhã algo estranho acontece
Tu gaiata vens da catequese
E eu gaiato a correr da escola
Mesmo evitando tudo se repete
O encontrão, a queda, e a dor no pé que
O teu sorriso sempre me consola

No nosso amor tudo continua
O primeiro beijo e a luz da lua
O casamento e o sol de Janeiro
Vem a Joana, a Clara e o Martim
Surge a Pituxa, a Laica e o Bobi
E uma ruga a espreitar ao espelho
Com a artrite, a hérnia e a muleta
Tu confundes o nome da neta
E eu não sei onde pus o dinheiro

O nosso amor chega sempre aqui
Ao instante de eu olhar p’ra ti
Com ar de cordeirinho penitente
Mas nem te lembras bem o que é que eu fiz
E eu com isto também me esqueci
Mas contigo sinto-me contente
Penduro o sobretudo no cabide
Visto o pijama e junto-me a ti de
Sorriso meigo e atrevidamente

Ao teu pé frio, encosto o meu quentinho
E adormecendo lá digo baixinho
Eu vivia tudo novamente

Poema de Pedro da Silva Martins

Nova cor

A caminho de um chichi a meio da manhã, peço licença para passar no meio de um bando de alunas que ocupam todo o corredor.
Conversam sobre cortes de cabelo e apanho uma madeixa preciosa quando uma delas pergunta Mas ela é o quê? e a outra responde Ela? É tipo loira.

À letra

A propósito dos problemas de saúde do meu pai falo para a minha irmã.
Atende-me o meu sobrinho mais velho e ficamos à conversa.
Então, o que estão a fazer, pergunto eu, e ele responde, à letra:
- Eu estou a falar contigo, o Xavi está a ver televisão, a Pi está a ver se entende o que querem dizer os autores do livro de Português, a mãe está a olhar para umas panelas e o pai não sei porque está no Porto. 

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Cirque du Soleil

Ofereceram-me bilhetes para o Cirque du Soleil. A minha curiosidade era mais que muita, anos a ouvir falar, a ver imagens na televisão, vídeos no youtube. A prenda, ainda por cima de uma pessoa tão querida, veio mesmo a calhar.
Como boa família de ciganos organizámo-nos e fomos em romaria: os meus pais, os meus três sobrinhos e eu, sábado à noite, mau tempo já passado - os miúdos e eu ainda com a lembrança da chuvada da noite de ano novo, Avenida da Liberdade acima a pé, em direcção ao carro, parecíamos pintos, eu, que eles são mesmo de apelido do paizinho, mas sempre a rir e bem dispostos.
Levar o meu pai a qualquer sítio é um sarilho, mas impunha-se: completou 71 anos no dia seguinte - passado no hospital... - e o espectáculo era também prenda de anos.
Uns meros cinquenta metros que nem nos lembramos de percorrer, para ele equivalem a uma maratona. Deixei-os o mais próximo possível do MEO Arena, mas foi preciso fazer o corredor do Vasco da Gama, passar a rua e subir os degraus do ex-pavilhão Atlântico, uma tortura que aguenta com o auxílio da bengala e com a cara amarfanhada de dores contidas.
Durante o espectáculo até ele se esqueceu das dores, palmas e mais palmas, o Xavier, com apenas dois anos, de olhos esbugalhados, sentado nos meus joelhos, tão quieto que parecia uma estátua.
O gaiato já provou ser diferente: duas visitas a dentistas levantaram coros de espanto e admiração quando se senta, abre a boca e não mexe não respira, como nas radiografias. Apesar da sesta, assim que terminou, ele adormeceu encostado ao meu ombro fazendo-me reviver aquela sensação de posse, tão doce, quando eles são pequenos e pertencem-nos, quando se entregam com confiança.
Os outros dois saltitavam satisfeitos, pagaram o parque, faladores, o que é que gostaste mais?, eu foi dos que saltavam e pareciam andar nas paredes, e tu avó, e tu avô, e tu Quica?
Foi a última noite de uns dias juntos, sem grande coisa para fazer, como nesse sábado quando a chuva era tanta que só nos levou ao supermercado, viagem nunca adiada, mas que não impediu que ela e eu fizéssemos comer e doces, que ele me ajudasse com a roupa, sempre disponíveis, sempre donos de mim.
Durante o percurso para as compras comentei com eles que, há uns dias, passando por ali, exactamente aqui, neste sítio, vinha um carro em sentido contrário. Ele, o mais velho, sem perder uma oportunidade de exercitar o seu inglês, perguntou-me se eu tinha ligado para o nine, one, one a avisar do perigo. Ri-me e disse que sim, usando um sotaque nortenho, à Shrek como eles lhe chamam, e inglesando algumas palavras reproduzi a suposta conversa com os bombeiros de Nova-Iorque, e chegámos à conclusão que desde esse dia não se viam americanos na zona da Amadora ou Alfragide porque eles tinham emitido um alerta avisando os cidadãos americanos que andava um veículo em sentido contrário ao pé do Alegro.
Rimos todos e no ar sentia-se a essência do Natal, é Natal, é sempre Natal quando eles estão comigo e quando repetimos cúmplices, I do, I do, I do believe in fairies, há música no ar, balões coloridos sobem e misturam-se com as nuvens, chovem papelinhos com formas engraçadas e oferecemos as nossas gargalhadas uns aos outros, com um laço de seda.
Agora, só no Carnaval...

Revisitar o passado

A morte de um tio do meu ex-marido levou-me a falar com pessoas que prezo muito e com as quais não falava há imenso tempo. Por estupidez, é sempre por estupidez que se dão certos afastamentos, se calhar todos.
Nos últimos tempos vivi situações de afastamento de pessoas, no plural infelizmente, mas têm-me ensinado, e eu tenho aprendido, que não se prende ninguém. Assim, tenho evitado impor a minha presença, deixando um espaço que cada um ocupa como bem entende. Dizem que as acções ficam com quem as pratica e daqui estou tranquila em dois aspectos: tenho essa certeza e a consciência limpa.
Porém, há pessoas que passam por nós e deixam marca. Se a família consubstancia laços de ligação obrigatórios, os outros mantêm-se por opção.
Um desses casos é o de um primo do meu ex-marido, com quem sempre senti empatia, embora discutíssemos imensas vezes.
Ontem, ao telefone, encontrei-o diferente mas igual. Diferente por mais maduro, agora casado e com dois filhos, igual por perceber que mantém o espírito curioso, aguçado e diferenciado da maioria das pessoas, como eu gosto.
Fiquei muito feliz com a recepção que me fez, combinámos reaproximarmo-nos - quero conhecer-lhe a família, é claro - e deixámos aprazado um almoço, um jantar ou, como ele bem expressou, um pretexto para nos revermos e conversarmos.
Não me pareceu ver o miúdo convencido que encontrava amiúde quando o via, pelo contrário, pressenti um homem calmo, afectado pela morte do pai, é claro, e preocupado com a mãe.
Partilhei esses sentimentos, eu, que no dia anterior passei o dia no hospital com o meu pai, cada vez mais próximo de uma solução que nos gela o sangue, mas cujos dedos dos pés roxos deixam adivinhar.
Fico na expectativa de um encontro, não com uma pessoa de família, como sempre os considerei, embora nem sempre fosse recíproco, mas com um amigo que não vejo há tempos e do qual tenho saudades.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Capuletos e Montecchios

As férias passadas na aldeia deixam memórias impossíveis de apagar: os dias longos e abrasados do Alentejo profundo, o poço no quintal, as lavagens no tanque com a minha avó a zangar-se comigo por estar debaixo daquela calorina, a sombra que as videiras davam, o assobio levezinho do meu avô, o caramonho da minha avó, o café feito ao lume que escorria pela cafeteira, o cheiro a melão pela casa toda, a moeda que o meu avô sempre tinha para um gelado, os passeios e os mergulhos na ribeira de S. Pedro, as festas em honra de Nossa Senhora do Ó, as amigas, os segredos.
Inesquecível também era a aparição de uma pessoa de família, muito chegada por sangue mas de outro planeta por amizade.
A sua chegada era adorada pela criançada e era um martírio para mim, que ficava sempre de fora quando ele perguntava retoricamente quem queria ir à piscina de Moura. Eu bem esticava o braço mas a resposta invariavelmente era a mesma: o teu pai que te leve. E o meu pai levava, levava tão depressa que eu chegava lá primeiro que todos os outros, mas em último, porque o carro engraçado era o outro, onde iam todos, a rir, a brincar. Juntos.
Se era para ir a qualquer lado, o meu pai que me levasse, se era um doce, o meu pai que mo comprasse, fosse o que fosse, o meu pai que me fizesse ou me acontecesse. E o meu pai fazia e acontecia.
Não deixei de me lembrar destes episódios quando ontem proibiram uma garota de brincar com os meus sobrinhos, de visita os três ao trabalho dos grandes.
As acções ficam com quem as pratica mas quem não se sente não é filho de boa gente e eu senti, senti mágoa pela proibição de deixar uma criança brincar, conviver, rir em conjunto. Um adulto que age assim está a passar um cheque em branco para o seu próprio futuro, tal como as pessoas que me atormentaram em pequena têm hoje em comum com filhos e netos a distância, imposta por estes últimos.
Que mundo melhor é que apregoamos que queremos quando temos atitudes assim?