Foi com 45 anos e numa Europa em crise, mas que se movimenta para todo o lado e que integrou o conforto como obrigatório, que li o (clássico) Pela Estrada Fora. Será coincidência ter sido em período de Erasmus? Como se fosse uma viagem mais que geográfica, através do tempo? Do tempo antigo, do tempo perdido, do tempo alheio, do tempo eterno? Não sei, mas aconteceu assim.
Dei-lhe com os olhos numa prateleira lá de casa onde me andava a passar despercebido há anos (tem o preço marcado em escudos). Como tenho sempre as janelas abertas, a crise escapuliu-se para dentro da minha casa, assentou arraiais e ando a reler, ou a ler tudo o que me aparece de graça. E lá estava Jack Kerouac ou Sal Paradise ou uma máquina de escrever humana sorrindo-me numa estante.
A leitura foi terminada no último dia em Madrid. O que é que se costuma dizer das coincidências…?
Li-o no abafado do metro, nas paragens de autocarro, antes de adormecer e andou sempre comigo na mala, como uma espécie de bilhete de despedida de suicídio dum tipo de vida, que se hesita em usar.
No último dia, dando as últimas voltas a fazer tempo para apanhar o avião, vejo uma loja com máquinas de escrever antigas. Há uma que me olha de soslaio, pequena mas carregando milhares de impressões digitais de não sei quantas pessoas, atrevo-me a dizer homens: foi fabricada em 1904 e usada na guerra. O teclado é normal mas na verdade cada tecla escreve um outro carácter, cuja correspondência está atrás como se fosse em Braille, de modo a dificultar a desencriptação das mensagens. Não era a Enigma, mas garantidamente era da família.
É amor à primeira vista. Entro na loja com o pensamento dividido e rezando para que o Dean Moriarty que vive em mim esteja a dormir. A minha principal prece é que seja barata, mas tenho a consciência que não será. Quando souber o preço saberei sorrir, agradecer a informação e voltar costas? Ou serei acometida por aquelas loucuras que só parecem loucuras dias ou meses mais tarde e que enquanto estão a ser praticadas vestem-se como actos naturais e até saudáveis?
A montra onde a máquina crescia para mim estava tapada do lado de dentro por um pesadíssimo biombo em ferro, tosco, dir-se-ia chegado da própria Idade do Ferro. A dificuldade em chegar à máquina e saber-lhe o preço seria um sinal? E que sinal? Que não esperasse e me fosse embora? Ou um teste à minha persistência, com prémio no fim?
Finalmente o biombo foi afastado e a máquina retirada da montra como se fosse uma pessoa resgatada dum desmoronamento.
O coração acelerava como se tudo aquilo fossem os preliminares dum pedido de casamento, com algumas hipóteses de se concretizar ali e agora. Mas 349 euros era um dote muito elevado para mim, embora a princesa valesse muito mais.
Olhei-a como um marinheiro apaixonado mas que não quer comprometer-se pois desconhece a sua sorte por esses mares e não sabe se regressa, e abandonei a loja com o coração partido.
Há anos atrás, em busca duma casa para morar, visitei um apartamento belíssimo, último andar, duplex, piso superior todo modificado, revestido a madeira, uma pérola. O preço era alto e tentámos negociar com os donos. Numa das ocasiões, talvez numa terceira visita à casa, vejo no chão uma máquina de escrever. A bem da verdade, eu não a vi, foi ela que me chamou e dei comigo instantaneamente a dizer aos donos, e ao meu boquiaberto marido, que se deixassem a máquina nós pagávamos sem regatear. No dia seguinte telefonaram a dizer que não aceitavam e, apesar da desilusão, conseguiram subir na minha consideração. A casa só não tinha vista para o mar, caso contrária seria perfeita.
Dei-lhe com os olhos numa prateleira lá de casa onde me andava a passar despercebido há anos (tem o preço marcado em escudos). Como tenho sempre as janelas abertas, a crise escapuliu-se para dentro da minha casa, assentou arraiais e ando a reler, ou a ler tudo o que me aparece de graça. E lá estava Jack Kerouac ou Sal Paradise ou uma máquina de escrever humana sorrindo-me numa estante.
A leitura foi terminada no último dia em Madrid. O que é que se costuma dizer das coincidências…?
Li-o no abafado do metro, nas paragens de autocarro, antes de adormecer e andou sempre comigo na mala, como uma espécie de bilhete de despedida de suicídio dum tipo de vida, que se hesita em usar.
No último dia, dando as últimas voltas a fazer tempo para apanhar o avião, vejo uma loja com máquinas de escrever antigas. Há uma que me olha de soslaio, pequena mas carregando milhares de impressões digitais de não sei quantas pessoas, atrevo-me a dizer homens: foi fabricada em 1904 e usada na guerra. O teclado é normal mas na verdade cada tecla escreve um outro carácter, cuja correspondência está atrás como se fosse em Braille, de modo a dificultar a desencriptação das mensagens. Não era a Enigma, mas garantidamente era da família.
É amor à primeira vista. Entro na loja com o pensamento dividido e rezando para que o Dean Moriarty que vive em mim esteja a dormir. A minha principal prece é que seja barata, mas tenho a consciência que não será. Quando souber o preço saberei sorrir, agradecer a informação e voltar costas? Ou serei acometida por aquelas loucuras que só parecem loucuras dias ou meses mais tarde e que enquanto estão a ser praticadas vestem-se como actos naturais e até saudáveis?
A montra onde a máquina crescia para mim estava tapada do lado de dentro por um pesadíssimo biombo em ferro, tosco, dir-se-ia chegado da própria Idade do Ferro. A dificuldade em chegar à máquina e saber-lhe o preço seria um sinal? E que sinal? Que não esperasse e me fosse embora? Ou um teste à minha persistência, com prémio no fim?
Finalmente o biombo foi afastado e a máquina retirada da montra como se fosse uma pessoa resgatada dum desmoronamento.
O coração acelerava como se tudo aquilo fossem os preliminares dum pedido de casamento, com algumas hipóteses de se concretizar ali e agora. Mas 349 euros era um dote muito elevado para mim, embora a princesa valesse muito mais.
Olhei-a como um marinheiro apaixonado mas que não quer comprometer-se pois desconhece a sua sorte por esses mares e não sabe se regressa, e abandonei a loja com o coração partido.
Há anos atrás, em busca duma casa para morar, visitei um apartamento belíssimo, último andar, duplex, piso superior todo modificado, revestido a madeira, uma pérola. O preço era alto e tentámos negociar com os donos. Numa das ocasiões, talvez numa terceira visita à casa, vejo no chão uma máquina de escrever. A bem da verdade, eu não a vi, foi ela que me chamou e dei comigo instantaneamente a dizer aos donos, e ao meu boquiaberto marido, que se deixassem a máquina nós pagávamos sem regatear. No dia seguinte telefonaram a dizer que não aceitavam e, apesar da desilusão, conseguiram subir na minha consideração. A casa só não tinha vista para o mar, caso contrária seria perfeita.