quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Pregos no Ego


O tio Chico Buarque deu-nos esta letra a que chamou Olhos nos Olhos. É linda e tendo em conta os versos que estão a bold podia chamar-se Pregos no Ego.

Quando você me deixou, meu bem,
Me disse pra ser feliz e passar bem.
Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci,
Mas depois, como era de costume, obedeci.

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer.
Olhos nos olhos,
Quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando,
Me pego cantando, sem mais, nem por quê.
Tantas águas rolaram,
Quantos homens me amaram
Bem mais e melhor que você.

Quando talvez precisar de mim,
Cê sabe que a casa é sempre sua, venha sim.
Olhos nos olhos,
Quero ver o que você diz.
Quero ver como suporta me ver tão feliz.

Saltemos!


Fruto de uma vida passada com muitas horas em pé, a que se junta uma alimentação bem portuguesa com tudo a que se tem direito no universo dos presuntos gordos e afins, falta de exercício físico e uma média de horas de sono muito aquém do recomendado, o meu pai tem uma colecção única de operações às artérias.
Se as primeiras se ficaram por banais limpezas, passou depois a desobstruções que obrigaram a outras logísticas, cujos sinais de trânsito interrompido nem se percebia se eram provisórios ou definitivos. Ah, o tabaco também não ajudou lá grande coisa, não sei porque me lembrei de repente, mas é verdade.
Quando as simples desobstruções não fizeram efeito, os cirurgiões optaram por umas quantas ligações directas, fazendo das pernas do meu pai uma espécie de patchwork arterial.
Consequentemente, da mesma forma que a minha mãe muda de óculos de sol, o meu pai muda de bengala. Não sendo o caso para brincadeira, temos que o levar o melhor possível, combatendo as angústias que se geram, o medo do desconhecido em forma de amputação de um pé, a perca da liberdade física como se conhece.
De entre os problemas de saúde há os chamados cromos doirados e um dos do meu pai é um AVC, vários até, mas um que se destacou pela intensidade e pelo rasto dos estragos.
Ora, agora dizem-nos que as obstruções se verificam num grau de 95%, daí a urgência de nova operação. Porém, o historial dos avc’s põe travão à urgência e pede exames complementares para se pesar o risco de um lado e do outro.
A minha mãe está presente na consulta e ouve o médico dizer que as possibilidades do meu pai ficar na mesa de operações são elevadas (sic). As palavras não foram brutas, de modo algum, apenas não se cozinharam e foram proferidas cruas. Nem lumes brandos, nem entaladelas.
O portão do hospital exala desânimo e as pedras da calçada parecem ter ímanes que nos dificultam o andar. Cumpre-me falar do mundo, de tudo e de nada, e faço-o com a ajuda do meu filho e de uma amiga que estava connosco.
Construo diques e uma barragem ou outra na conversa de modo a conduzi-la para saltos de para-quedas, um sonho que o meu pai tem desde sempre, que nunca concretizou e que se diz pronto para o fazer, independentemente das circunstâncias.
Falo num velho com oitenta e tal anos que o fez há meia dúzia de dias. Um velho de oitenta e tal anos! O meu pai tem setenta, é um gaiato.
Perante a ideia a minha mãe insurge-se contra as minhas loucuras. O meu pai alarga o sorriso como se pensasse em qualquer coisa que está na dimensão dos sonhos irrealizáveis e, de repente, lhe aparecesse à frente em carne e osso.
Pelo meu lado sinto o coração bater mais depressa. Nada é melhor que fazer os outros sorrir. Saltemos. 

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Cão danado


Django. O D é mudo. Assim repete o protagonista que distribui tiros mortais quando alguém não cumpre.
O rapaz Tarantino – cujo nome me lembra o meu avô que chamava tarantina ao cinto com que ameaçava os meus primos recém-chegados de Angola e que faziam as maiores tropelias – dirige cenas que podem ser confundidas com fontes luminosas, daquelas que esguicham água colorida, fazem efeitos diversos, mas com uma pequena diferença, ele usa sempre a mesma cor, encarnado-sangue.
Não tenho qualquer predilecção por Leonardo DiCaprio mas darei o braço a torcer pela verdade vista e já reformulei a minha opinião sobre aquele que me parece sempre criança e sem maturidade facial para a maior parte dos papéis que lhe dão. Leonardo é um eterno adolescente muito bonito que precisa de rugas e cicatrizes para ter mais credibilidade nos papéis que desempenha. Reconheço-lhe o esforço e a encarnação nos bonecos, mas depois vejo-lhe a cara e está tudo estragado. Bom, mas aqui revela-se e gostei imenso dele.
Samuel L. Jackson – que adoro – fez-me adorá-lo ainda mais. Perfeito na anormalidade histórica, pois para atingir aquela perfeição só encarnando a imperfeição do irracional, do anti natura, tão natural na época e naquelas paragens.
A justiça e a vingança, nem sempre pelos melhores meios e caminhos, mas faz-se. Faz-se até à distância e, como também aconteceu em Sacanas Sem Lei, queremos acreditar que os bons ganham, mesmo que tenham que morrer alguns.
Hans Landa – Waltz será sempre Landa, como Connery é James Bond, como Harrison Ford é Indiana Jones, como Brandon é o Padrinho – é um bocado de plasticina que ele próprio molda à sua vontade pondo pés de cabra e corpo de gigante, um olhar caleidoscópico, gestos que já lhe eram naturais antes de nascer, enfim, um poço de onde se tira tudo quanto se quer.
Amei a ingenuidade de Jamie Foxx. Forte desde a primeira imagem, não há uma passagem, uma transformação na personagem. Apenas nos é dado ver como ela evolui na exposição daquilo que é na essência. Mesmo agrilhoado já lá estava tudo.
E estava mesmo tudo, a música, os planos, a escolha do formato das letras, tudo nos remete para filmes dentro de filmes – Franco Nero mostra-se durante breves momentos! – como quem faz uma pergunta sobre a actualidade política e leva como resposta a história de Portugal a começar nos Afonsos, mas de forma resumida, sintética e altamente eficaz. Cada filme de Quentin Tarantino é uma viagem, mais que qualquer outro. 

Abaixo de zero


De entre todas as empresas que, aparentemente, se preocupam com a qualidade e querem aferi-la através de inquéritos junto dos utilizadores, a TMN leva a taça.
Com uma frequência inusitada ligam a querer saber imensa coisa e pedem que sejamos sintéticos, tão sintéticos quanto se pode ser dando respostas quantitativas.
Não há espaço para se especificar que o Sr. X fez um atendimento magistral, independentemente de ter resolvido ou não a nossa questão, ou que a Sr.ª Y é uma suricata cuja linguagem própria não é compreensível por humanos.
Assim, o atendimento tem de ter uma nota. Fazemos a média? Optamos por aquele que mais impacto nos causou? Somos radicais e consideramos que devemos priorizar o mau atendimento para que outros não tenham que levar com ele? Somos generosos e elevamos aquele que parecia estar a resolver um assunto da sua própria pessoa?
Explica-se então ao perguntador do inquérito que se deve diferenciar o atendimento em si da resolução do problema, pois são duas questões diversas. Sim, sim, mas que nota lhe atribui?
Respiramos fundo e respondemos com uma pergunta: Olhe, e já agora, o que fazem com estes inquéritos?
Parece que o seu verdadeiro propósito é arranjar emprego para várias pessoas que assim gastam o seu tempo, passando horas ao telefone com os clientes, apontando as respostas num longo rolo de papel que se desenrola numa ponta e se vai enrolando na outra, como uma informação real que é lida na praça pública por um escudeiro letrado para o povo analfabeto.
Ou então não. Como aquilo não serve para nada os colaboradores da empresa fazem as perguntas sim senhor, mas lá do outro lado desenham formas geométricas tortas num papel branco, cujos riscos vão carregando, fazem tricot (nós é que precisamos de uma mão para segurar o telefone, eles têm uma bandolete que lhes permite ouvir e que termina num mini microfone perto da boca), fazem puzzles de não sei quantas mil peças – que trocam uns com os outros quando chegam a um impasse – entre muitas outras coisas.
É preciso sempre repetir que o mau grado das respostas não se dirige às pessoas em particular e sim à empresa. Não têm formação e são formatados para dar respostas pré-concebidas entre balizas muito pequenas que, só excepcionalmente  agradam ao cliente e lhes resolvem os problemas. Bem, esta é a regra, por que também há alguns que confirmam cientificamente que o bom senso de vez quando tira férias. 

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Xitaca


Nos anos 80 a palavra Xitaca estava presente no dialecto que usávamos para nos expressar no liceu de Sintra. Não, não nos referíamos a uma pequena propriedade agrícola, mas antes ao poiso de (quase) todos os alunos da Escola de Santa Maria, mais do que na própria escola.
Estrategicamente colocada à saída da estação da Portela, ainda hoje se passa diante da porta da Xitaca para se chegar à escola.
A mesa do canto era a mais apreciada, mas qualquer uma servia. Quando combinávamos encontrarmo-nos e não se mencionava o sítio, já se sabia que era na Xitaca.
Bebia-se café e fumava-se. Um ou outro tomava o pequeno-almoço. O espaço apertado ficou saturado de fumo quando se começou a fumar Fortuna, face ao desaparecimento do tabaco português, nem sabíamos porquê, e cravar um cigarro tornou-se uma aventura na qual todos nos especializámos.
O Xitaca recebia toda a gente e o dia em que as mesas faltavam, por estavam ocupadas por desconhecidos, era terrível, muito pior que os professores faltarem às aulas que, naquela altura, nós víamos como um dever que os setôres deviam assumir de vez em quando. Ali cabíamos todos pois bastava estar um conhecido para entrarem duas turmas em simultâneo. A esta distância, pergunto-me como nos aturavam pois chegávamos a encher a pastelaria apenas com a despesa de um ou dois cafés.
No Xitaca contava-se de tudo e foi sentada a uma mesa que ouvi uma colega planear um aborto como quem antecipa a festa da passagem de ano. O assunto era tabu, perigoso e aventuroso, antes de tudo o mais porque não tinha engravidado sozinha! As nossas imaginações voaram para mundos que nunca sonhámos existirem e ouvíamos atentos, alunas e alunos aplicados e prontos a fazer exame da matéria dada.
No Xitaca se faziam as melhores cábulas da escola que eram passadas a outros, que davam opinião e afirmavam que a letra era grande demais, não se via, não se percebia, estavam óptimas, tinham dado grande resultado ao fulano e ao beltrano e se o sicrano tinha tido negativa com elas era porque era mesmo burro.
A bem da verdade, as minhas notas acima do 17 e o facto de ser considerada por vários professores como a melhor aluna da turma em certas disciplinas, e da escola noutras, deixavam-me um bocado à margem destas dinâmicas. Eu queria participar em tudo, mas havia vezes que não sabia como. Mal ou bem lá me juntava à maralha e passava horas e dias no Xitaca a fazer nada.
Há dias organizou-se um jantar da rapaziada que morava lá no bairro onde vivemos 16 anos, na casa que me viu crescer durante mais tempo, onde a minha mãe passou a gravidez da minha irmã, de onde a N. saiu para casar, entre muitas, tantas, outras recordações. 
A organização foi via Facebook onde tenho uma página com um nome inventado, meia dúzia de amigos e que uso para dizer disparates em certos momentos. Ou seja, a lista dos presentes contava com uma figura artesanal, um pouco mítica até e que, durante o jantar, mereceu a confissão de alguns afirmando pensarem que era um homem.
O jantar correu num convívio espectacular, serviram-se memórias e recordações, alguns embaraços, a maior parte deles cómicos, muitas perguntas sobre irmãos faltosos, risadas sobre namoros de adolescência e penso que hoje todos nos congratulamos com o encontro embora nenhum se lembre do que comeu, sendo a comida o pretexto, mas a essência, o encontro em si, foi cinco estrelas.
Às tantas alguém se lembrou de um cromo da escola que quase todos frequentávamos, uma miúda gordinha que estava sempre meia deslocada, óculos graduados na ponta do nariz que deixava ver quando levantava a cabeça dos livros e de quem todos um dia se abeiraram a pedir ajuda para os testes.
Manifestando curiosidade sobre a pessoa levei uma canelada debaixo da mesa e fizeram-me sinal para me manter calada; a amiga que me sugeria silêncio segurava o riso num sorriso que queria rebentar e percebi que falavam de mim. Alguns lembravam-se do meu nome mas tinha passado despercebido à maioria, pois na lista das inscrições constava o meu alter-ego, e poucos associavam a identificação estapafúrdia com um nome real.
Foi desta forma que se repetiu uma cena passada há poucos meses quando se organizou um almoço entre antigos alunos de uma outra escola e eu era a única cujas histórias de chumbos que tinha para contar eram nos dentes. Tal como nessa altura também aqui fui levemente apontada como se tivesse uma aura de uma certa anormalidade e não pude deixar de me lembrar do meu sobrinho que, tendo 20 nas olimpíadas da matemática, ao receber os parabéns perguntou porque se fazia tanto alarido, acrescentando uma pergunta sem resposta: Não era suposto ter acertado em tudo?
Durante o jantar ainda houve quem se lembrasse de uma manifestação feita na escola para reclamar junto de um professor um merecido 20 que me tinha sido substituído na pauta por um 19. O professor alegava que não dava vintes e numa manifestação de solidariedade a minha turma foi em peso ao conselho directivo mostrar indignação pelo facto. Registou-se a situação e o 19 manteve-se.
Eu que era bem redondinha nesse dia estava inchada que nem um pavão e até me podiam ter baixado a nota ainda mais, mas já ninguém me tirava o facto de ter sido por minha causa que aquela malta toda se juntou, reclamou, gritou e uniu.
Vá lá saber-se porquê, não me recordava desse episódio e foi nessa lembrança que as lágrimas me caíram em cima do prato e fiquei verdadeiramente feliz por ali estar, como se fosse de manhãzinha e estivéssemos todos no Xitaca.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

A tragédia da rua do Arsenal


Este livro propõe uma viagem ao fim da vida da monarquia portuguesa, num momento em que as dificuldades respiratórias são já aflitivas, no seio de um quadro clínico alterado e sem cura.
Jean Pailler, escritor, historiador e tradutor, viveu a época da revolução de Abril na embaixada de França em Lisboa, tendo sido seduzido por Portugal, que retrata em livro por diversas ocasiões, para além de ser tradutor de génios da nossa literatura, como Eça de Queiróz.
A estória mistura-se com a história e advertem-nos para o facto de o enredo ser ficção e não fruto de investigação histórica.
Leve, muito leve, entretém mas não encanta, as ligações ao estrangeiro não convencem, a Carbonária passa para cá e para lá como dama em passeio, e a polémica sobre a bala que matou Buiça não ser de arma usada pelas forças policiais portuguesas da época é sugerida sem grandes explicações. São observações apenas, uma vez que o livro é mais dedicado ao romance entre o príncipe e a brasileira do que à política.
Por seu lado o trabalho do revisor Henrique Tavares e Castro não ajuda e permite que se verifiquem inúmeras gralhas, repetição de palavras e, por exemplo, na página 51 encontramos um embatese num muro e na 113 há uma imdemnização.
A tradução, da dupla Irene e Nuno Daun e Lorena, também podia ter tido algum cuidado, por exemplo, na confusão entre cognome e alcunha, na página 115 ou em fazer aparecer um valete na 119.
Sem certezas, ficam-me as dúvidas sobre os 45 minutos de Sintra a Lisboa feitos num automóvel em 1907. O rei fazia-se conduzir num Peugeot de 18 cavalos, que vinha lotado… bem, mandemos esta para trás das costas.
Por outro lado, uma das personagens é-nos apresentada como sendo riquíssima, mais até que o próprio rei de Portugal. Ora, na página 101 este mesmo homem, dono de fortunas colossais no Brasil, habituado às lides cortesãs apresenta-se diante da rainha com um fato alugado, razão pela qual lhe estava apertado…
Pergunto-me a mim própria por que razão estas coisas me fazem desinteressar da leitura e não encontro resposta, mas o certo é que me fazem perder o interesse, principalmente se a narrativa se me apresentar com cariz histórico, mesmo que ma anunciem fictícia.
Estes pormenores, para alguns, não têm qualquer importância e os valores do todo levantam-se mais alto; para mim funcionam como grãos na engrenagem da leitura e espantam-me como me espantaria se numa descrição sobre australopitecos um deles perguntasse as horas a um transeunte.
A tragédia da rua do Arsenal, foi editado pela Planeta Manuscrito e li a edição de 2010. 

'Tás a ver?


Dizem os dentistas que os dentes são o que de mais importante temos no corpo: garantem uma ingestão de alimentos adequada, etc., etc. Os otorrinos não nos querem surdos, que isto de não escutar é uma desgraça; os ginecologistas avisam-nos dos imensos perigos que corremos se não os procurarmos com frequência e tal, e cada um na sua especialidade é o número um.
Porém, digam o que disserem, a visão é o que leva mais atenção, preocupação e dinheiro. Por isso mesmo, quando dois médicos me disseram que tinha uma miopia galopante, e vendo-me já numa lista de espera para a operação, com imensa dificuldade em conduzir de noite, em ler legendas na televisão e mais não sei quantas coisas, decidi a sorte de tentar ser operada na clínica espanhola onde o meu pai fizera o mesmo há uns anos, com resultados extremamente gratificantes desde o primeiro minuto.
O preço a pagar pela intervenção era menos de um terço do valor pedido aqui no rectângulo à beira mar plantado, tal como tinha acontecido com as cataratas do meu pai. Nem pensei duas vezes, fui na passada quinta-feira, para ser intervencionada na sexta.
Não contava eu com as tensões que sobem e descem a seu bel-prazer: a ocular estava alta, a arterial estava baixa, os senhores disseram que não operavam e sexta à noite já eu dormia em casa, desanimada e triste.
Nem o bom tempo de sábado me deixou mais bem-disposta e o cinzento de ontem deixou-me na cama mais tempo que o normal.
Ora, tempo não é coisa que se desperdice, há tão pouco!, Vamos lá comprar uns óculos, ficar na filinha pirilau para a operação e não perder tempo a pensar no assunto.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Desgraça


Desgraça é perturbador. Desgraça é profundo. Desgraça é marcante. Desgraça é desconfortável. Como qualquer desgraça, de resto.
Uma das melhores leituras dos últimos tempos, violento e determinado, cru. Desgraça tem um nome perfeito, melhor que racismo, que conflito, que violação, que culpa, que destruição, que vazio, que obsessão, porque Desgraça é tudo junto e muito mais.
A África do Sul aparece-nos negra, mais pelos conflitos do que pela pele. Franzimos o sobrolho ao protagonista mas temos pena dele; franzimos o sobrolho à teimosia da filha, mas também sentimos que faz o que está certo; franzimos o sobrolho perante a eutanásia dos animais mas acabamos por encolher os ombros.
No fim pensamos com todo o vigor e força da nossa perfeita estupidez: ufa, ainda bem que a África do Sul está lá tão longe!
Desgraça é um encontro com cada um de nós, cá bem no interior, uma reunião com o medo, um assomo a incompreensões, principalmente europeias que não conhecem as raízes da situação.
Devia ser obrigatório ler a Desgraça de J. M. Cootze, no fundo, a nossa desgraça, porque contém verdades que penetram até ao osso.
Lido em edição da Leya, publicado em 2011.
Depois da leitura, em discussão sobre o abismo onde a Desgraça nos leva, fiquei a saber que Steve Jacobs filmara a história com o poderoso John Malkovich como protagonista. Não vi, mas fiquei curiosa.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Pensamento positivo


Uma das memórias mais persistentes ao longo da minha vida é a de ir visitar o meu pai ao hospital. Perdemos a conta às operações, desde um simples arrancar de amígdalas até ao corte e costura das veias das pernas, um trabalho de patchwork cirúrgico, em cujo último acrescento fomos informados que já nada havia a fazer. A partir dali era cortar. Um pé.
Esta espada sempre pairou sobre as nossas cabeças como as nuvens altas que levam chuva mas vão descarregá-la noutros locais. Até um dia. Não se fala desse dia, não vale a pena, é ir vivendo 24 horas de cada vez e deixar o tempo passar.
Vai chegar uma altura em que a nuvem não se afasta e larga uma borrasca em cima de nós. Esse dia tem vindo a aproximar-se, sorrateiro, e agora manifestou-se oficialmente sob a forma de obrigação de nova operação, ainda em Janeiro.
Concientes das implicações, estamos em pânico. Damos força ao doente mas por dentro arrepiamo-nos até ao último osso e contemos a vontade de chorar.
Sabemos que há coisas piores mas neste momento esta é a pior de todas.
Imaginamos o amanhã com cadeiras de rodas, com próteses, com mudanças profundas numa dinâmica de vida que hoje é quase normal, fruto da utilização do carro. Pensamos num carro adaptado e no euromilhões para o conseguir.
Pensamos nas nossas próprias vidas e na revolução a que vão ser sujeitas se quisermos que o meu pai continue a fazer parte das saídas, que assista aos jogos de andebol do Duarte, aos de pólo aquático do meu sobrinho, que possa ir visitar amigos, ao café, de férias,…
A última semana foi desgastante para mim em termos de trabalho e esta notícia arredou-me da vontade de falar e até de escrever, como se meia dúzia de palavras tivessem o condão de nos paralisar os braços, as pernas, o pensamento, a vontade própria.
Faço um esforço para me concentrar em tudo sabendo que a minha condição de bibliotecária, e não de médica, não me fará dar ajuda substancial mas desajudarei, e muito, se ficar a moer o assunto.
Lembro-me do meu querido M., agora em Angola, e dos seus conselhos valiosos face a qualquer coisa sobre a qual nada podíamos fazer. Tento segui-los com pouco sucesso, mas com muito esforço e empenho: dispersar o pensamento, agarrarmo-nos a mil coisas e instituí-las como essenciais no nosso cérebro; aceitar dez trabalhos diferentes em simultâneo, estar com amigos e beber uns copos. Confesso que me apetece e muito… mas por ora entrego-me ao trabalho que, convenhamos, me tem ajudado bastante e nunca me agradou tanto uma onda assim como agora.
Pensamento positivo e esperança, convenço-me eu, rapariga sem fé pois, na verdade, quem tem fé não pode ter esperança. Mas isto são outros quinhentos para outro dia. Fiquemo-nos pelo pensamento positivo.

O dançarino


A jibóia gorda que é o metro está parada na estação inicial. 
A leitura absorve-me assim que abro o livro mas não é suficientemente forte para me afastar a atenção de um jovem que dança diante do vidro.
Ouve-se o pi que anuncia o movimento das carruagens e que me parece passar despercebido ao rapaz, que mantém uns auscultadores nas orelhas.
Ziguezagueando no meio do túnel a escuridão apodera-se do bicho e transforma os vidros em espelhos. O rapaz aproveita e observa o seu reflexo repetindo gestos que lhe devem ser facilitados pela música que ouve, baixa e não partilhada com os restantes passageiros.
Está absorto, sozinho e repete movimentos, inclina a anca, levanta os calcanhares, dobra os pulsos, vira a cabeça e volta a repetir, descontente e persistente.
A carruagem segue mais silenciosa que o costume, olhos postos no dançarino, imune aos curiosos. 
Com a entrada de mais e mais passageiros o palco diminui mas ele não desiste e continua a usar o vidro como espelho para se auto criticar na encenação que pratica.
Meia dúzia de estações mais adiante, e já só a simular movimentos de ombros, pescoço e cabeça, baixa-se graciosamente como se fosse fazer uma vénia. Apanhou a mochila e saiu deixando a carruagem muito mais pobre. 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Andar sem parar


Fora as mariquices científicas, o dia tem 24 horas, 1440 minutos e 86400 segundos.
Tendo em conta que o meu despertador tocou às 8 da manhã e é uma da tarde e o pedómetro marca um quilómetro e quatrocentos metros e 2119 passos feitos, em 23 minutos, conclui-se que estive parada 277 minutos, dos quais muitos foram sentada!
Isto não pode ser e tem de mudar, recuso-me a dar pontos à cadeira, seja a verdinha diante da secretária, o banco do metro, a poltrona no gabinete do chefe diante da sua mesa, a de costas altas na mesa de reuniões ou o banco de trás do táxi.
A nossa natureza é andarilha, andámos nove meses no embalo no quentinho da barriga da mãe, mais uma série deles ao colo e é assim que nos sentimos bem. As mães africanas trazem as crianças às costas prolongando aquele baloiço como se não consentissem a separação dos filhos em idades tenrinhas.
Andar é natural e saudável e poucas coisas há que me fazem sentir tão bem. Com cerca de 15 quilos a menos, ando ainda mais e melhor e agora vem um médico dizer-me que ando demais e que devo parar.
Não acredito nisto e recuso que me esteja a acontecer. 
Já marquei consulta em Pandora com um especialista médico cuja fama passa planetas e apenas é acusado de deixar os doentes azuis, mas eu não sou racista e vou lá hoje à tarde, o que me dá tempo de sobra para regressar a tempo da consulta no Hospital de Santa Marta, marcada ontem, para dia 7 de Fevereiro. 
Tenho tempo para morrer e ressuscitar que ainda vou a horas de me sentar na sala de espera e ler o jornal de fio a pavio. 

A Guerra dos Hobbits ou dos Anéis ou isso


Há realizadores de cinema que parecem querer contrariar a tendência da sociedade actual, uma sociedade apressada, parecendo estar permanentemente atrasada, razão pela qual precisa de se despachar.
Computadores, telemóveis, ipad’s, iped’s, ipid’s, ipod’s e ipud’s, micro-ondas, carros, tudo tem de ser rápido que nem flechas. Não, as flechas são de outro tempo e muito lentas, rápidos que nem um processador XPTO, assim é que é.
Ninguém espera, porque isso era tarefa de antigamente, agora é já, imediatamente, ontem. O passado não interessa, o futuro, a bem da verdade, também não, o presente é tudo.
Se a saga da Guerra das Estrelas começou no fim e voltou ao princípio, com um interesse enorme dos fãs, o Senhor dos Anéis não se ia ficar atrás: chegou o Hobbit, que já todos conheciam mas ainda cá não estava,  uma espécie de D. Sebastião de quem já todos ouvimos falar, que viveu no passado, mas ainda há-de chegar.
Este andar para trás não é só um passo ou outro, são logo três de seguida, também à imagem da Guerra, com grandes viagens pelo meio, daí isto demorar três filmes. E se uns viajam pelo universo os outros não fazem a coisa por menos, pois a distância do Shire até à Lonely Mountain pode ser mais pequena que de Tatooine até Alderaan, mas os tipos são anões, caramba!
Gosto muito de Jedis, em especial aquele Qui-Gon Jinn, ai as tranças que eu lhe fazia naquele cabelo…, mas adoro um bom feiticeiro acima de tudo. Adoro eu e toda a gente, embora isto das feitiçarias não seja mais do que informática avançada, pois no fundo, no fundo uma varinha mágica não é mais do que um rato esbelto e sem fios.
O Gandalf, que não é nenhum nerd, precisa é de um guarda-roupa novo, não por usar saias, mas por as usar tão compridas, que aquilo não dá jeito nenhum para fugir e fugir é qualquer coisa que eles andam sempre a fazer. A mim não me espanta que fujam, que também eu fugiria daqueles orc’s e daquela gente, o que me impressiona é que nunca se cansam!
Se por mais não fosse, os Feiticeiros ganham a batalha com os Jedis por causa de um pormenor, e é nos pormenores que reside a diferença: usam chapéu, um chapéu à moda de Simon Templar cujo cabelo nunca saia do lugar, ou do Agent Smith, que garantidamente usava a mesma laca, pois pode ventar o vento e granizar o granizo, seja a tempestade épica ou estelar e o chapéu de Gandalf mantêm-se na sua cabeça, sem perigo de se perder, como ia acontecendo já um par de vezes a Indiana Jones.
Por falar em Indiana Jones, ele é Han Solo da Guerra – seis filmes seis, como anunciaria um bom cartaz tauromáquico – e Simon Templar é Bond – vinte e dois filmes vinte e dois – e Smith - três matrixes três - é Lord Elrond, ou seja, nós bem queremos heróis, mas isto é como na política, mudam os nomes, os cenários, mas os tipos são sempre os mesmos.
Entre Jedis e Feiticeiros há bicharocos de eleição: Chewbacca e Gollum, com evidente vitória de Chewie, não só pelo tamanho, mas essencialmente pela pelagem. Sméagol podia ter um anel mas o co-piloto do Falcão Milenário é super fashion e as suas palavras são uma verdadeira inspiração!

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

O mercado da Brandoa


É Domingo de manhã. Não tenho carro que me leve até à areia da praia e daí possa dar asas aos pés durante alguns quilómetros. Bem, o que não falta na cidade da Amadora são estradas e ruas e caminhos, por isso, vamos embora.
Dou por mim a andar em direcção à estação de metro e com o aproximar vejo gente com sacos e saquinhos e lembro-me: é dia de mercado da Brandoa.
Quando viemos morar para Lisboa ficámos na casa de um tio meu que estava em África; entretanto fomos vendo casas com sucessivas recusas peremptórias da minha mãe face às sugestões do meu pai:
Buraca! Qué lá isso? Com um nome desses nem dá para calçar saltos!
Porcalhota! Bento! Só podes estar a brincar…
Brandoa! Brandoa… vamos lá ver isso…
A viagem foi de comboio até à Amadora e dai de táxi – ou melhor, de táx… - para a Brandoa. Chegados lá, a senhora minha mãe põe um pé fora do táxi no meio do maior lamaçal de que há memória e perde um sapato, assim, sem mais nem menos, sapato que nunca se encontrou naquele mar de lama. Eu nem cheguei a sair do táxi.
E assim se riscou a Brandoa do mapa e ficámos nesse outro maravilhoso subúrbio que se chama Cacém.
Isto para dizer que associo Brandoa a lama e assim será durante os próximos cem anos, mesmo que lá passe de carro com muita frequência.
Sou habituée do mercado do Algueirão, pelo-me por uma boa feira e na Brandoa revivi Belleville. Quem diz que conhece Paris e nunca foi a Belleville não conhece nada, nadinha, zero!
Com um morro afavelado lá atrás, vizinho da estação de metro, a Brandoa pode meter medo a uns quantos, mas a mim, pelo menos o mercado, fascina-me: brancos e pretos e chineses e indianos e barracas de couratos paredes meias com os montes de roupa e fumo dos choriços assados ao lado de hortaliças lindas de comer e plásticos e meias e cuecas e tudo!
É neste mercado que mora o Fanan, o verdadeiro Fanan, aquele que aparecia num programa de televisão em frente de uma roulotte, com casaco de pura pele de crocodilo, rabinho de cavalo, bota bicuda a esconder a peúga branca.
Os Fanan’s deste mundo conhecem as cervejas por bejecas e enfardam bifanas enquanto o crucifixo lhes balança ao pescoço e o mindinho levantado ostenta um anel de ouro… ou isso; são reis e senhores nas suas enormes gargantas e, se fosse de Verão, ainda iam dar uma cacholada a Carcavelos.
Vi belos exemplares de ladies em fato de treino e sapatos que atestam a genuinidade do local, onde voltarei, como é óbvio. Não faltavam pechinchas, faltava-me a mim o carcanhol, caso contrário viria de lá envolta num casaco de pele de leopardo, calçada com uns Manolos. Não por causa da lisura da carteira mas pelo incómodo do transporte – a pé! – não comprei nenhum ramo de hortaliça, embora fossem de meter pelos olhos dentro.
Planeia-se já nova incursão, desta feita em excursão com amigas a reboque. Não posso falar muito se não ainda tenho mesmo que alugar um autocarro.