Nos anos 80 a palavra
Xitaca estava presente no dialecto que usávamos para nos expressar no liceu de
Sintra. Não, não nos referíamos a uma pequena propriedade agrícola, mas antes
ao poiso de (quase) todos os alunos da Escola de Santa Maria, mais do que na
própria escola.
Estrategicamente
colocada à saída da estação da Portela, ainda hoje se passa diante da porta da
Xitaca para se chegar à escola.
A mesa do canto era a
mais apreciada, mas qualquer uma servia. Quando combinávamos encontrarmo-nos e
não se mencionava o sítio, já se sabia que era na Xitaca.
Bebia-se café e
fumava-se. Um ou outro tomava o pequeno-almoço. O espaço apertado ficou
saturado de fumo quando se começou a fumar Fortuna, face ao desaparecimento do
tabaco português, nem sabíamos porquê, e cravar um cigarro tornou-se uma
aventura na qual todos nos especializámos.
O Xitaca recebia toda
a gente e o dia em que as mesas faltavam, por estavam ocupadas por
desconhecidos, era terrível, muito pior que os professores faltarem às aulas
que, naquela altura, nós víamos como um dever que os setôres deviam assumir de vez em quando. Ali cabíamos todos pois
bastava estar um conhecido para entrarem duas turmas em simultâneo. A esta
distância, pergunto-me como nos aturavam pois chegávamos a encher a pastelaria
apenas com a despesa de um ou dois cafés.
No Xitaca contava-se
de tudo e foi sentada a uma mesa que ouvi uma colega planear um aborto como
quem antecipa a festa da passagem de ano. O assunto era tabu, perigoso e
aventuroso, antes de tudo o mais porque não tinha engravidado sozinha! As
nossas imaginações voaram para mundos que nunca sonhámos existirem e ouvíamos
atentos, alunas e alunos aplicados e prontos a fazer exame da matéria dada.
No Xitaca se faziam as
melhores cábulas da escola que eram passadas a outros, que davam opinião e
afirmavam que a letra era grande demais, não se via, não se percebia, estavam
óptimas, tinham dado grande resultado ao fulano e ao beltrano e se o sicrano
tinha tido negativa com elas era porque era mesmo burro.
A bem da verdade, as
minhas notas acima do 17 e o facto de ser considerada por vários professores
como a melhor aluna da turma em certas disciplinas, e da escola noutras,
deixavam-me um bocado à margem destas dinâmicas. Eu queria participar em tudo,
mas havia vezes que não sabia como. Mal ou bem lá me juntava à maralha e
passava horas e dias no Xitaca a fazer nada.
Há dias organizou-se
um jantar da rapaziada que morava lá no bairro onde vivemos 16 anos, na casa
que me viu crescer durante mais tempo, onde a minha mãe passou a gravidez da
minha irmã, de onde a N. saiu para casar, entre muitas, tantas, outras
recordações.
A organização foi via Facebook onde tenho uma página com um nome
inventado, meia dúzia de amigos e que uso para dizer disparates em certos
momentos. Ou seja, a lista dos presentes contava com uma figura artesanal, um
pouco mítica até e que, durante o jantar, mereceu a confissão de alguns afirmando
pensarem que era um homem.
O jantar correu num
convívio espectacular, serviram-se memórias e recordações, alguns embaraços, a
maior parte deles cómicos, muitas perguntas sobre irmãos faltosos, risadas
sobre namoros de adolescência e penso que hoje todos nos congratulamos com o
encontro embora nenhum se lembre do que comeu, sendo a comida o pretexto, mas a
essência, o encontro em si, foi cinco estrelas.
Às tantas alguém se
lembrou de um cromo da escola que quase todos frequentávamos, uma miúda
gordinha que estava sempre meia deslocada, óculos graduados na ponta do nariz
que deixava ver quando levantava a cabeça dos livros e de quem todos um dia se
abeiraram a pedir ajuda para os testes.
Manifestando
curiosidade sobre a pessoa levei uma canelada debaixo da mesa e fizeram-me
sinal para me manter calada; a amiga que me sugeria silêncio segurava o riso
num sorriso que queria rebentar e percebi que falavam de mim. Alguns lembravam-se
do meu nome mas tinha passado despercebido à maioria, pois na lista das inscrições
constava o meu alter-ego, e poucos associavam a identificação estapafúrdia com
um nome real.
Foi desta forma que se
repetiu uma cena passada há poucos meses quando se organizou um almoço entre
antigos alunos de uma outra escola e eu era a única cujas histórias de chumbos
que tinha para contar eram nos dentes. Tal como nessa altura também aqui fui levemente
apontada como se tivesse uma aura de uma certa anormalidade e não pude deixar
de me lembrar do meu sobrinho que, tendo 20 nas olimpíadas da matemática, ao
receber os parabéns perguntou porque se fazia tanto alarido, acrescentando uma
pergunta sem resposta: Não era suposto
ter acertado em tudo?
Durante o jantar ainda
houve quem se lembrasse de uma manifestação feita na escola para reclamar junto
de um professor um merecido 20 que me tinha sido substituído na pauta por um
19. O professor alegava que não dava vintes e numa manifestação de solidariedade
a minha turma foi em peso ao conselho directivo mostrar indignação pelo facto. Registou-se
a situação e o 19 manteve-se.
Eu que era bem
redondinha nesse dia estava inchada que nem um pavão e até me podiam ter
baixado a nota ainda mais, mas já ninguém me tirava o facto de ter sido por
minha causa que aquela malta toda se juntou, reclamou, gritou e uniu.
Vá lá saber-se porquê,
não me recordava desse episódio e foi nessa lembrança que as lágrimas me caíram
em cima do prato e fiquei verdadeiramente feliz por ali estar, como se fosse de manhãzinha e estivéssemos todos no Xitaca.