quinta-feira, 21 de julho de 2011

Sean Sellers

Ontem assisti a uma reportagem sobre Sean Sellers, condenado à morte por crimes cometidos com a idade de 16 anos. A sentença foi executada em 1999 quando tinha 29 anos. Até lá viveu no chamado corredor da morte, mas sem o isolamento de outros condenados pois foi ‘seguido’ pela televisão e os jornalistas dedicaram toda a atenção ao adepto de satanismo, amante de Dungeons and Dragons, convertido depois ao cristianismo já na prisão, a sofrer de múltipla personalidade mas que matou três pessoas quando era adolescente, uma delas para ‘ver como era’. Várias personalidades, entre elas Desmond Tutu, ergueram as vozes para que a sentença fosse transformada em prisão perpétua, mas a injecção foi mesmo dada, diante de várias pessoas convidadas, e o convidado aqui é macabro, mas é verdadeiro, pois o Estado de Oklahoma, para além de permitir que as famílias das vítimas assistam à execução, permite também a existência de convidados; não sei em que outras salas passa o mesmo filme…
Polémicas à parte sobre a pena de morte, havia ali qualquer coisa que não batia certo, na reportagem, bem entendido, que no resto estava tudo baralhado, como é óbvio.
Sellers defendeu que as famílias das vítimas eram as únicas que podiam decidir sobre a sua morte ou não pois eram os afectados; mais ninguém devia interferir no processo.
Fiquei sem perceber se os juízes também deviam ser postos de lado e se esse modelo seria uma proposta a ponderar; se assim fosse, qualquer ladrão acabava no cadafalso, sem apelo nem agravo. Estranha defesa de alguém que está no corredor da morte.
As imagens mostraram o dia da última apelação com pedidos de condenação por parte da família dos assassinados e durante a qual foram dados cinco minutos ao assassino para se defender. Mais uma vez a defesa foi fraca, com palavras mal pensadas, discurso não estruturado e argumentos esquisitos. Ora, alguém que está na prisão, a ver esgotar-se o tempo de vida, deve ter tempo para pensar – digo eu… - e articular um discurso de fazer chorar as pedras da calçada, sozinho ou auxiliado pelo advogado e amigos, com quem podia trocar correspondência. Sem surpresa, o júri disse não, não, não e não, pois era constituído por quatro pessoas.
Nos minutos dados a Sean Sellers não se ouviu um lamento, um pedido de desculpa, um ar de mortificação, nada. O advogado chorava, as câmaras mostravam os amigos de olhos fechados, como se não quisessem encarar a realidade e, fechando os olhos, impedissem os nãos de lhes entrarem pelos ouvidos.
Penso que a única pessoa que podia ter tido um papel fundamental na defesa de Sean teria sido a mãe, mas essa estava debaixo de sete palmos de terra pois foi uma das pessoas que ele matou.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Que grande lata!

Ao fundo da rua está o palácio que me dá telhado como local de trabalho. Antes de lá chegar está o quiosque onde me abasteço diariamente. Cumprimento o dono, o Sr. A. que me vai estendendo as coisas sem que eu precise de as nomear, pela força do hábito. Enquanto isso, uma senhora pergunta:
- Qual é o melhor jornal para encontrar anúncios de casa de férias?
- Tem o Ocasião e o Correio da Manhã.
- Ai sim? Então empreste-mos… é só para tirar os anúncios de casas de férias, não os vou ler.
Não me contive e dei uma gargalhada olhando directamente para a mulher que me sorriu perguntando do que me ria.
- Da sua lata! O uso do jornal pressupõe a sua compra!
O Sr. A. olhava-me com os olhos abertos como se fossem bandeiras a pedir ajuda, o que me fez continuar até que a mulher lá se decidiu:
- Bem, se tenho que pagar, então só levo um… pode ser o Ocasião.
Esperei que ela pagasse, despedi-me do homem e vim-me embora.
Hoje de manhã, repete-se a rotina e o dono do quiosque comenta o sucedido, dizendo que há pessoas que são capazes de tudo. Enquanto falávamos, pára um carro ao lado do quiosque e estaciona batendo estrondosamente no carro do Sr. A.
O condutor sai do carro, o Sr. A esbraceja indignado e tenta endireitar a placa da matrícula, dizendo ao outro:
- Então você não viu o carro?
- Vi, mas isto são coisas que acontecem! Nunca bateu quando está a estacionar?
Desta vez não consegui rir-me com a nova manifestação, não de lata, mas de verdadeira latosa do homem e disse ao Sr. A. que ia chamar a polícia. O homem acalmou e baixou o tom de voz: que não era preciso, que ele tinha muita pressa, que desculpasse, que de facto são coisas que acontecem, que…
- Pois são coisas que acontecem, são… mas a quem não presta atenção ao que está a fazer!
A exaltação do Sr. A ia crescendo, mas esmoreceu com o que pareceu um pedido de desculpa sincero do outro.
Espero que amanhã não lhe mandem o quiosque ao chão!

No fio da navalha

Voltei a percorrer O Fio da Navalha. Aquele Larry é inesquecível. Encontrei-o a primeira vez quando era adolescente, em edição de bolso, capa branca com uns metais retorcidos que me faziam confusão. Lembro-me de ter saído de lá e entrado noutras casas a perguntar com os olhos o que era aquilo dos Ashrams, quem seria Ganesha e de me ter deixado conduzir por leituras sobre o assunto que depressa abandonei por me parecerem muito confusas.
Depois apareceu um filme supostamente baseado no livro e fui ver. Saí de lá com vontade de pedir o dinheiro de volta e vinguei-me em nova leitura. Há pouco tempo fui premiada com uma nova edição, da colecção Vintage da Asa, que acabei de ingerir agora.
Há releituras com personagens que são tão marcantes que se me afigura absolutamente normal vê-las vivas, mesmo sabendo que já assisti e acompanhei a sua morte há anos atrás. É a intemporalidade. É a diferença entre vermos uma fotografia de alguém e dizermos ‘Este era o meu Tio fulano’ e vermos uma imagem de César e exclamarmos ‘Este é César’.
Os Césares são imortais, como os Leonardos, os Rafaéis, os Albertos, os Alfredos, e podia seguir até se me acabar a tinta e mesmo assim ficava a lista coxa.
É impossível não amar Larry e, em simultâneo, ter medo de o encontrar. Vê-lo, vê-lo mesmo, não só olhá-lo, é vermo-nos a nós próprios ao espelho, sem máscaras nem pinturas e questionarmo-nos sobre a vida. Ora, actualmente, perdeu-se o hábito de nos fazermos esta pergunta: é meia bola e força, muito palavreado mas pouca acção, faz o que eu digo, não faças o que eu faço e quejandos.
Conheço muita gente, demasiada, que olhariam Larry como olhariam para um unicórnio, admirando-o, mas com a certeza da sua não existência, virando-lhe as costas com um encolher de ombros. Essas mesmas pessoas mostrariam vibrar com as atitudes de desprendimento material de Darrel, e manifestá-las-iam com o rabo agarrado aos seus sofás e canapés aprovados antecipadamente por Elliot Templeton. Nem lhes passaria pela cabeça que há alguém capaz de certas atitudes sem fazer qualquer esforço. Como Larry. Mas como Larry é uma personagem, acabamos todos a comer pescadinhas de rabo na boca!

quinta-feira, 14 de julho de 2011

A Casa Verde

Os almoços de ontem e hoje foram regados com o mais belo néctar dos últimos tempos: O Alienista do soberbo ano de 1882, preparado por Machado de Assis e que chega a mim em 2011 envelhecido mas com sabor de actualidade.
A edição está longe de ser de luxo, é da colecção Biblioteca de Verão do Jornal e do Diário de Notícias, e é oferecida na aquisição de várias outras publicações, no meu caso com a Volta ao Mundo.
As menos de cem páginas devorei-as durante dois períodos de descanso para almoço durante os quais rezei para que ninguém me dirigisse a palavra, enquanto engolia a imagem da actual sociedade na Casa Verde e reconhecia Simão Bacamarte como aquele(s) que aparecem sempre no horário nobre das televisões.
A prosa de Assis é subtil, manhosa mas a fazer vénias, elevando o desequilíbrio à categoria da perfeição.

Não fiquei assediada

Terminei O Assédio de Reverte. Como dizia um amigo à saída da sala de cinema depois de sessão que não ficou para a história, interessante mas com pouca acção
Rogélio Tizon é a personagem de peso da narrativa, numa Cádiz liberal do início do século XIX, por onde anda também um corsário de olhos verdes. Ora, nem precisava ter olhos verdes, bastava-lhe ser corsário, profissão romântica e que inspira suspiros em donzelas e em mim.
Confesso que saltei parágrafos de descrições de como-fazer-uma-bomba-acertar-no-sítio-pretendido, com estudos de probabilidades, medições de peso, previsões sobre os ventos e não sei o quê mais, pois não as li. Mas adorei as passagens – ainda que também longas – sobre a vida no navio com burrajonas e demais velas desfraldadas.
Ainda assim, Reverte mantém a capacidade de conseguir fazer-me ver o que descreve, o que nem sempre acontece com outros autores. Leio e estou lá, sinto o cheiro das ruas que ladeiam o mar, a humidade faz-me arrepiar de frio e a chuva molha-me. Só por isso vale a pena.
Calhamaço com quase 700 páginas, da Asa, traduzido por Helena Pitta, 2011.

Fado

Andrzej Stasiuk é polaco e autor dum livro que se chama Fado. Título impecável, não pela vaidade do uso duma palavra na língua de Camões, mas porque é o certo, o único.
Em viagem (‘To trave lis to live. Or in any case to live doubly, triply, multiple times’, p. 34) pelas Polónias, Hungrias, Roménias, Albânias e Eslóváquias, leva-nos sempre sentados na cadeira da ironia colocada ao lado da janela dos pormenores que, como os gomos da laranja, fazem o todo, aquele todo de que os turistas nem sequer ouviram ouvir. Stasiuk viaja, não confundir.
Os plurais dos nomes dos países designam a multiplicidade de realidades simultâneas que nos são postas diante dos olhos, não às postas mas em vislumbres abrangentes, com linguagem simples e perceptível para além do óbvio. As Europas Centrais das quais sabemos que ficam no centro e decoramos as capitais, mas sobre as quais desconhecemos tudo, uma pena.
O livro não é meu, foi-me emprestado. Mas a leitura não podia ser mais minha, tal e qual como num processo de viagem por um país que não sendo nosso, passa a ficar em nós porque passámos por ele.
Apetece-me traduzi-lo para que o possa ler de enfiada em português, depois de feita a leitura em inglês (vagarosa) e na impossibilidade de o fazer em polaco, opção sempre ideal, a da leitura na língua original. Lembro um momento passado há pouco tempo por entre fumo de cigarros à porta do aeroporto da Portela quando me esclareciam auditivamente sobre frases aliteradas em norueguês (seria? Ou sueco…?) e cuja melodia se perdia com a tradução. Foi nesse dia que mo emprestaram.
V. já to posso devolver, obrigada.
Edição da Dalkey Archive Press, tradução de Bill Johnston, de 2009

segunda-feira, 11 de julho de 2011

República do Sudão do Sul

Parabéns ao Sudão do Sul. Bem-vindo a este pacífico planeta, de partilhas e entendimentos, de gente boa, sã e saudável. Talvez por isso o novo país decidiu, ainda a gatinhar, que para garantir e aumentar a saudabilidade era necessário providenciar a existência de uma selecção de futebol!
Bem marcado!

Um must da praia 3

A paleta de cores dum areal num domingo à tarde é digna de ser vista. O enfoque é dado nas cores fortes e garridas, preferidas para fatos de banho, chapéus-de-sol e toalhas que se aninham uns nos outros face ao reduzido espaço disponível e quanto mais dentro de água melhor, seja por causa da criancinha que quer estar sempre com os pés molhados ou pela preguiça de andar na areia.
A metodologia da marcação de propriedade é similar à que se fez na Lua, espetando uma bandeira: aqui enterram-se chapéus-de-sol e estendem-se toalhas, marcando assim o território, mas nem sempre de forma definitiva, pois basta o vento levar a toalha para vir um espertinho, que até ajudou assoprando, para esticar a dele e ficar com aquele metro rectangular.
Porém, há outra coisa que nos obriga a arredar para trás e contra isso nada há a fazer: a maré. Já se sabe que é difícil remar contra a maré e quando o remo é um par de chinelos, uma toalha e uma sacola, pior ainda.
Assim, aquele pedaço de terreno arenoso que nos proporcionou tanto prazer a uma certa hora começa a ser ameaçado pela espuma das ondas para ser galgado pela água empurrando-nos pela areia acima. Para onde? Para cima de alguém, um alguém qualquer, mas que já lá estava.
Quando isto acontece somos alvo de olhares antipáticos e até algumas palavras menos agradáveis, mas é questão de se esperar uns minutos e as mesmas pessoas que não gostaram que estendêssemos a toalha tão em cima deles, pegam agora na sua bagagem e fazem exactamente o mesmo com outros veraneantes, metros acima, passando a nossos companheiros de infortúnio e esquecendo o que disseram um quarto de hora antes.
A faixa de areia mais longe da água começa pois a ser alvo de ocupações daqueles que a desprezaram quando montaram a tenda assim que chegaram.
A parte mais engraçada de toda esta dinâmica – especialmente quando NÃO nos acontece a nós – surge quando uma onda apanha toalhas, sacos e sapatos de alguém que está dentro de água e não se apercebe. É como uma queda no meio da rua em dia de chuva, provoca sempre gargalhadas, é instintivo e mais forte que nós, ou, pelo menos, mais forte que eu.
O pior é que eu quero ajudar, quer o pobre que se estatalou debaixo de chuva quer a família de fato-de-banho cujos pertences parecem ter saído da máquina de lavar sem terem feito a centrifugação, mas como estou sempre a rir-me sou mal interpretada e por norma vejo a minha ajuda ser negada. Mas a gargalhada, desculpem lá, ninguém ma tira!

Profissionais do ouvido

Há pessoas que têm como vocação ouvir e não, não falo dos padres. Ouve-se tanto que até se deixa de saber falar e quando se torna necessário dizer qualquer coisa, o lugar do outro lado aparenta ser de sacrifício pois os anos de prática é na disciplina de ouvir e não de falar. Até uma simples dor de dentes pode ser escondida, por se ter perdido a prática de anunciar o que se sente. Como se chega aqui?
Para além daquela interrogação inicial com que começam as conversas, está tudo bem?, que não é uma pergunta verdadeira, não é uma preocupação, não é o reflexo de quem quer saber, mas um simples cumprimento, ninguém pergunta mais nada e perguntamo-nos, será que se eu dissesse alguma coisa, se deteriam a ouvir? A falta de prática de estar no lugar de quem fala, leva-nos a pensar que os outros não sabem ouvir. Se calhar sabem.
Mas se por um lado os problemas duns são tantos e tão grandes que não deixam margem para a expressão dos nossos próprios problemas, por outro lado, as felicidades dos outros trazem-nos notícias que não merecem ser mescladas com tristezas. Não merecem eles e não merecemos nós levarmos com o silêncio constrangido e surpreendido por nunca se terem dado conta que também tínhamos problemas e há anos que vivemos lado a lado, dia a dia; não damos sinais? Fechamo-nos assim tanto? Não há indícios, tantos!, que temos problemas e preocupações como qualquer outra pessoa? Quando isto acontece somos olhados como um bicho raro, como se o facto de a vida não nos correr bem trouxesse um desequilíbrio às conversas que se costumam ter; como se também eles passassem a ter a grande responsabilidade de ouvir, de aconselhar, de perguntar, de estar disponível, de ser acessível, de serem todos ouvidos.
Quem errou? Quem não insistiu na pergunta do, está mesmo tudo bem?, ou quem insistiu na resposta do sim, tudo, e mudou logo o azimute perguntando, e tu, conta-me tudo.
O poder está na pergunta, em quem pergunta, como pergunta, porque a pergunta é que manifesta o interesse.
Passam-se anos nestas dinâmicas e um dia acordamos a saber ouvir tudo, sussurros e palavras lá ao longe, gestos, mas sem conseguirmos falar de nós. Um dia acordamos esquecidos de nós. Os outros já se esqueceram há muito e o que querem é mesmo o nosso aparelho auditivo.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

As portas do metro

As portas do metro abrem-se a cada estação. Vomitam gente que se apertou contra desconhecidos, evitando olharem-se nos olhos, sabendo que o constrangimento é comum e partilhado, gente que se aninhou como não se aninha em casa.
As portas do metro fecham-se a cada estação. Seguram oxigénios com sotaques africanos, crianças que esperneiam ao sono, adultos mecânicos que reagem ao som do nome da estação onde devem sair, mesmo que vão a dormir com baba a escorrer-lhes pela boca.
As portas do metro abrem-se e fecham-se a cada estação musicando as vidas com barulhos próprios que ninguém ouve e segurando pulsares sociais.

O desejo e os empregados dos cafés

Apetecer e desejar são duas coisas muito diferentes. O desejo está na esfera, desde logo, das grávidas, dos amantes e dos sonhos. O apetecer é da esfera dos caprichos, dos simples apetites, que podem mudar de azimute dum momento para outro.
E é assim que acho sempre estranha e desenquadrada a pergunta vinda dos empregados de café sobre se eu desejo um copo de água.
A bem da verdade, nunca tive assim tanta, tanta sede que d e s e j a s s e um copo de água. Eu quero água, não a desejo, como desejo, por exemplo, um mergulho, e exemplifica-se com o dito por meter água também, mas normalmente não se mergulha em cafés e não sou parente da Sininho.
O desejo de agradar, lá está!, é uma ilusão e mais uma vez confundem-se as coisas pois é um falso desejo: o empregado apenas quer mostrar que os nossos supostos desejos são ordens para ele, que se está nas tintas para o facto de querermos um copo de água ou desejarmos lambuzarmo-nos com um gelado. Ele quer é vender e contribui para isso colocando os nossos arbítrios ao nível do desejo, não percebendo o burlesco da sua pergunta que, dependendo também do empregado em si, pode ir do cómico ao ridículo.
Pobres dos que têm desejos como torradas aparadas ou cafés em chávenas largas que são simples preferências. Tristes os que desejam adoçante ao invés de açúcar ou levar metade do pão com manteiga embrulhado para comerem a meio da manhã que são meros contentos.
Que é feito do querer? Do preferir? Do apetecer?

terça-feira, 5 de julho de 2011

Sorte? Onde, onde?

O euromilhões é um propiciador do aumento das discrepâncias entre as pessoas. É encarado como um milagre, um enorme milagre que acontece a alguns, raros, raríssimos.
Se aquilo fosse distribuído convenientemente muitos ganhariam uma bençãozita, outros eram salpicados de água benta, o que já seria muito bom, e não nos ajoelhávamos a rezar tão fervorosamente todas as sextas feiras, quais muçulmanos.
Mas não, a coisa está feita para alguém ganhar, mas não os apostadores pois claro, e de vez em quando há um que leva, não o bolo todo, mas a fábrica de pastelaria inteira!
É claro que não é justo, mas aquilo também não foi criado pelas mãos da senhora de olhos vendados e os quinhões lá da balança são fruto dum jogo e, como qualquer jogo, raramente se ganha.
É curioso como este tipo de jogos podem ser catalogados com expressões antónimas e, assim mesmo, verdadeiras: há quem lhes chame jogos de sorte e há quem lhes chame jogos de azar. Mas joga-se sempre, e joga-se na esperança da sorte, embora o que aconteça dia após dia é cantarmos as palavras de Renato Teixeira, imortalizadas por Elis Regina, se há sorte, eu não sei, nunca a vi.

Requiem por um par de chinelos

Há quatro anos comprei dois pares de chinelos de enfiar no dedo no mercado: uns pretos para mim e outros azuis escuros para o meu filho. Três euros o par, cinco euros dois pares. O delicado número 45 que ele calçava, o facto de os levar para os treinos e usá-los nos banhos diários, deve ter ajudado a que se tenham partido no ano seguinte. Mas o meu par durou, durou e dura.
Usados diariamente em casa o ano inteiro e em todo o lado assim que o sol se deixa de vergonhas, já fizeram muitos, muitos quilómetros e têm uma sola que parece uma fina panqueca. Há umas semanas encontrei uns bocadinhos de borracha preta na sala e demorei a perceber de onde tinham vindo. Quando percebi o que era, lavei-os e deixei-os secar, mas depois, a vontade de os usar foi mais forte: a minha tara por botas, sapatos e tudo o que seja de calçar, teve aqui um ponto muito alto. Estes chinelos conhecem o meu pé como algum outro calçado, seguram-me com calças e saias, na praia e no sofá; são os únicos que têm o privilégio de poderem estar nos pés e em cima do sofá. Calço-os e sinto-me vestida. Imunes ao suor ou à sujidade da sola dos pés. Já adormeci com eles, viajei por muitos sítios, escorreguei em momentos de chuva inesperada, corri e transportei-os na mão quando caminhava na água ou na areia.
Hoje vi que têm um corte por baixo. É definitivo. Lembrei-me do dia que descobri que um dos meus cães estava doente. Era definitivo e foi rápido. Sei que os vou calçar amanhã e que os vou matar definitivamente, talvez até durem mais dois ou três dias, mas vão ficar até ao último sopro, e depois, depois vão para a galeria dos inesquecíveis, dos verdadeiros companheiros.
Todos conhecemos pessoas que se dizem amigas e que não fazem metade do que um par de chinelos de enfiar no dedo faz por nós.
Posso ter outro par de chinelos, terei com certeza, mas não há substituições.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Twilight zone

A cena é verdadeira e passa-se no gabinete da médica, onde fui há meia dúzia de dias.

- Gosta de praia, já vi…
- Sim, e exagerei na última vez que fui por isso tenho a pele toda a saltar
(Começa a ouvir-se a música do twilight zone)
- Exagerou nada… eu adoro praia e só não fico o dia inteiro porque a minha família não deixa… perdoa-se o mal que faz pelo bem que sabe. Toma algum medicamento?
- Não
- Tem alguma queixa?
- Não
- Óptimo, então está tudo bem
- Apenas tenho excesso de peso.
(Recomeça a ouvir-se a música do twilight zone)
- Não concordo nada: as pessoas são todas diferentes e se não tem razões de queixa de saúde, não vá agora arranjá-las. Fuma?
- Sim
- Ah, isso é que vai ter que deixar
- Tem razão, eu ando a fumar um cigarro electrónico, como lhe chamam, e acho que está a dar resultado.
(Música do twilight zone, outra vez)
- Mas cuidado, pois se acha que tem excesso de peso e está a pensar em deixar de fumar, isso pode ser difícil, sabe que vai ganhar peso?
- Sim sei, eu já deixei há poucos meses e ganhei mais de cinco quilos num mês
- Pois… olhe o melhor é diminuir, mas não deixe mesmo senão já sabe, nunca mais perde os quilos a mais.
(Genérico do twilight zone)