quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Tenho frio

Tenho frio. É o Outono. Sei que é ele. Não o vejo mas sinto-o. Afasto os arrepios com o pensamento que já só faltam oito meses para as férias. Entretanto deram-me uma nova conferência para organizar. É sobre África. É claro que ganho logo esperanças. África sempre me deu esperanças apesar das minhas incursões terem sido sempre no norte e nunca lá abaixo, nunca ao centro, nunca nos litorais de praias quentes, praias africanas. Sonho com Moçambique, também com Angola, mas mais com Moçambique, vá lá saber-se porquê. Lá está a chegar o Verão e eu deixo o pensamento voar, fecho os olhos esperançada de os abrir nesse continente no qual deposito tanta esperança. Abro os olhos. Estou no centro de Lisboa, pois claro. Mas não para sempre.

Diferenças

Não sou preconceituosa mas há coisas nas quais não consigo deixar de reparar. Talvez seja falta de hábito, quem sabe.
Entro no metro e ouço um homem a falar alto, bem alto. Ouço-o mas não o vejo. Vislumbro apenas a mulher para quem ele discursa, com voz forte, masculina, grave. Fala de coisas mundanas, uma festa para a qual não foi convidado, refere alguém com quem está magoado, diz que vai mudar de atitude com não sei quem.
O metro avança e as pessoas são vomitadas nas estações, deixando a carruagem cada vez mais vazia. Vejo-o então. São os seus gestos que me chamam a atenção em primeiro lugar. Gesticula muito. Algo na minha cabeça, de forma imediata, me diz que aqueles gestos e aquela voz não são da mesma pessoa. A voz é grossa mas as unhas são enormes, pintadas à francesa, cinco pontas numa mão cuidada e cheia de anéis. O tom é viril mas o cabelo pelo meio das costas, com nuances louras quase brancas, denota uma preocupação capilar inusitada nos homens. As afirmações são másculas mas o rímel está bem colocado, perfeito, a sombra nas pálpebras, perfeita, os lábios levemente rosados, perfeitos, indiciam um bom batom.
Em Lisboa não se encontram pessoas assim com frequência. Fiquei a admirá-lo, ou a admirá-la, não sei. Admirei a diferença, que me fez rir, confesso, mas também admirei a naturalidade e a força interior que manifestava, pois não é fácil ser tão diferente de forma tão descontraída. Não é fácil não ligar nada aos olhares que não se descolavam e que o apelidaram de drag queen. Era uma drag queen, ali, com um palco em movimento, com muito público. Não é fácil manter a normalidade face a presenças acusadoras, que se voltavam de todas as formas para o olhar.
Quando saiu fiquei a olhar pela janela os longos cabelos louros que caiam pelas costas em cima dum casaco azul-escuro cheio de estrelas prateadas. Quer queiramos ou não, ele era uma delas.

Quetzal e Bolaño

Avanço no Terceiro Reich de Bolaño. Quando li 2666 pensei que a gramagem das folhas era muito fina por causa das mil e qualquer coisa páginas do livro, justificação plausível. Porém, O Terceiro Reich não atinge as 350 páginas e o tipo de papel é o mesmo. Leio e vejo os fantasmas das páginas anteriores e os espectros das seguintes. Não gosto.
A Quetzal é uma Editora, com maiúscula. Para além de não gostar das folhas tão finas também estranho que um dos personagens se chame Charly ao longo da narrativa e que na badana explicativa se chame Charlie. Ainda na badana escreve-se desleixadamente 'pesonagem', identifica-se a unidade hoteleira onde o protagonista está como Hotel del Mar e ao longo da narratica chama-se-lhe Del Mar e nomeiam-se nomes de outros personagens usando inexplicavelmente a maiúscula para o artigo que antecede os nomes. Também não gostei de ver o nome dum clube de futebol traduzido para castelhano quando devia estar em catalão, isto para criar uma uniformização com outros, identificados nas suas línguas originais.
Os tradutores são os mesmos de 2666. Alguém, não sei quem, entendeu mudar uma singela frase na badana da capa de 2666 (edição de 2009) para O Terceiro Reich (edição de 2010) no texto sobre o autor: "Aos quinze anos a família mudou-se para a Cidade do México" e "Quando tinha quinze anos a família mudou-se para a Cidade do México". Mais ainda, em O Terceiro Reich a Quetzal teve o cuidado de escrever na contra-capa os nomes correctos dos jornais onde saíram críticas a Bolaño, e que em 2666 se ficavam pelo diminuitivo: Washington Post, que agora aparece precedido pelo The, acontecendo o mesmo com The Independent.
Quem terá considerado estas mudanças importantes, a ponto de as fazer, e porque razão terá o revisor, João Assis Gomes, deixado passar algumas coisas?
Ainda nem cheguei a meio do livro e já decidi fazer uma visita a uma livraria para encontrar uma edição em castelhano e perceber se foi o Autor que, por lapso ou deliberadamente, dá a mesma informação com datas diferentes em páginas distintas do livro ou se foi erro de tradução/revisão. Uma vez que o livro se sequencia como um diário com capítulos a abrirem com datas, estas são importantes e uma gralha destas defrauda as minhas expectativas como leitora.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

I'm the captain of my soul - Rita Redshoes

I'm the captain of my soul
I'm the captain of my soul
I ain't got no mercy for my bones
I will sail my ocean all alone, it's true

I saw sirens, I saw ghosts
And all the children in my boat
I fight for glory, not for hope
And I need to let out these words from my throat

I'm the captain of my soul
I'm the captain of my soul
I ain't got no mercy for my bones
I will sail my ocean all alone, it's true

I saw wailers, I heard songs
Melodies of wisdom for us to sing along
I raised the anchor of my soul
Cause I need to break free
Before I get old

Oh captain, Oh my captain
I'm gonna wade in the water
I'll be washed by new tears
They'll save me from my fears

I'm the captain of my soul
I'm the captain of my soul
I ain't got no mercy for my bones
I will sail my ocean all alone, it's true

I'm the captain of my heart
I'm the captain of my life
I'm the captain of my whole
I'm the captain, the captain of my soul

O jardim das plantas

Li um livro - O jardim das plantas - que contém uma descrição fabulosa de outras crianças, outros tempos ainda, mais duros e vividos. Tenho por garantido que se o meu filho o ler nem vai imaginar que aquilo não é uma descrição de aventuras e sim o relato da vida real, tão longe está daquela vivência, daquelas dificuldades, daquela realidade.

O livro em si é curioso mais pelas descrições paralelas de vivências de outros tempos, do tempo dos meus pais, do que pela história em si.
Está pejado de aspas, reticências, sinalefas de todas as qualidades e feitios que aparentemente criam ruído à leitura, se bem que se perceba que o autor lhes recorre para tentar elucidar-nos sobre expressões faciais, por exemplo, ou para recorrer ao linguajar da época ou ainda a expressões que caíram em desuso.
Na verdade é um livro muito visual, com recurso aos erros de linguagem que sempre se dão quando falamos, com interjeições a meio do discurso directo, paragens, intervalos que, no fundo, correspondem aos tempos próprios duma conversa.
A leitura faz-me sorrir com frequência, principalmente quando encontro expressões usadas pelo meu pai, e que eu abomino, como por exemplo bumba! Esta palavrinha designa um baque, um estrondo físico ou psicológico, e pode ser substituída por zás, toma, pumba, zuca e outras, todas lindas como se vê.
Diz o autor que quando eram crianças andavam sempre a correr e exemplifica; a descrição é real, visual e dura mas ternurenta. Fugiam, correndo, para a escola e principalmente da escola, dos pais, dos polícias, uns dos outros. Comparo esta actividade física incansável com a imagem dum garoto de hoje, sentado frente à televisão e com uma playstation nas unhas. Se não estiver diante do ecrã mágico está diante doutros ecrãs que coexistem e dos quais são cada vez mais viciados, seja do computador, do telemóvel ou do i-pod.
Agarrei o livro por falta de leituras e não me desiludi. Fez-me rir, embora não seja nenhum portento. Tem informação científica ou não fosse o autor um ex-professor de Agronomia, Luís Campos, o mesmo que tinha escrito O Estripador de Lisboa cuja acção foi copiada de tal forma na vida real que o autor chegou a ser suspeito do caso.
A introdução de informação científica é feita de forma clara e sem ser pesada, é natural e lê-se muito bem. Os livros de José Rodrigues dos Santos, por exemplo, contêm informação científica que nos é transmitida através de conversas entre os personagens mas que nos fazem parecer totós, enquanto cidadãos e enquanto leitores. Percebe-se que o autor quer fazer chegar a mensagem de forma clara ao maior número de pessoas, mas quando se colocam questões de lana-caprina na boca de especialistas, isso retira credibilidade às personagens e ao livro. Há longas conversas onde se repete informação já prestada e que cansam, informação que se parte aos bocadinhos para que o leitor perceba a natureza do que é explicado. São opções. Um livro lido recentemente e do qual já falei – Solar de Ian McEwan – também contém uma substancial carga informativa científica que o autor consegue transmitir sem cansar, sem rechear a narrativa de explicações, que se podiam tornar exaustivas. Na perspectiva de leitora vejo as diferenças essencialmente como um autor que escreve porque sente necessidade disso e tem material e conhecimentos para o fazer e outro que escreve para vender. Não condeno Rodrigues dos Santos, nada disso, é uma opção legítima, apenas digo que são duas escritas diferentes, onde o leitor é visto também de forma diferente. Se eu quiser saber mais sobre física ou sobre as alterações climatéricas, no âmbito de Solar, vou procurá-las, caso contrário, quando as coisas me parecem um pouco forçadas, sinto-me a ler um manual e não um romance.
O jardim das plantas a que tive acesso é edição de autor de 1994, tem a Universidade como pano de fundo, passa por casos amorosos entre um professor e uma aluna, viaja pela Europa com descrições divertidas e contém conversas de café interessantes entre responsáveis universitários, que ali projectam futuros.

Portugueses no mundo

Tenho acompanhado os programas da RTP sobre os portugueses no estrangeiro, os novos emigrantes, tão distantes das vagas que há décadas se instalaram em França, na Alemanha e na Suice, nome dado à Suíça pelos emigrantes da terra dos meus pais.

São pessoas novas que cedo procuram novas oportunidades em áreas das suas preferências, é gente que fala a língua do país escolhido, que tem uma vida social intensa cruzada com gente da terra, que frequenta os mesmos cafés e supermercados, que tem amigos naturais dos países eleitos e vai a concertos de música, que ocupa lugares profissionais de destaque. Em todos estes aspectos em nada coincidem com os emigrantes indiferenciados que apenas falavam português e mal, que viviam em guetos e se acomodavam apenas com conterrâneos, criando espaços fechados de comunicação, com dificuldades de alimentação e recorrendo sempre aos pratos portugueses, apesar de se evidenciarem como bons trabalhadores, em termos gerais.
Na Austrália faz-se surf, em Nova Iorque visita-se o Metropolitan e em Berlim fazem-se passeios no Checkpoint Charlie. Não se distinguem dos nativos, num fenómeno com características globais, entrosam-se na perfeição.
Vão sozinhos ou com a família, têm filhos que falam, pelo menos, duas línguas. São emigrantes com vida própria, que se deslocam de avião com passaporte, ao contrário dos seus antepassados que passavam a fronteira a salto, escondendo-se como criminosos que os queriam fazer parecer ser. São pessoas realizadas. Não sabem se vão voltar a Portugal e não têm casas com azulejos espalhadas pelas aldeias, com telhados inclinados por serem cópia das casas dos locais de emigração, onde a arquitectura prevê os nevões, inexistentes em Portugal. Usam o dinheiro que ganham em si próprios essencialmente. São cidadãos do mundo, nascidos em Portugal.
Têm o apoio das tecnologias para comunicarem com a família e não escrevem cartas com selos esquisitos que demoravam semanas a chegar e eram lidas com mãos trémulas e olhos lacrimejantes, quantas vezes por um estranho, pois os que ficavam muitas vezes não sabiam ler e dependiam de outrem para se alimentarem de notícias da França. Estes novos emigrantes viajam, praticam desporto e confraternizam.
De uns dizia-se coitado, teve que emigrar, destes afirma-se com inveja que emigrou. São sorridentes e, embora falem das famílias, não têm a palavra saudade escrita na testa. As distâncias hoje são menores, as idas para o estrangeiro são projectos de vida e não alternativas únicas, como eram antigamente.
Quem avance até à Universidade tem, cada vez mais, a hipótese de se inscrever no Programa Erasmus e começa a vida de emigrante ainda estudante. A perspectiva de viver num local diferente, com tudo o que isso implica, começa a criar um vício de sair cada vez mais, de experimentar outras realidades, de se relacionar com outras culturas, de conhecer outras e novas pessoas. A partir daí, e com as dinâmicas de vida dos jovens dos dias de hoje, ir viver para o estrangeiro deixou de ser aquele abismo que era há anos atrás, de distância, de falta de notícias, de invisibilidade. Começa a ser um hábito para o qual as férias no estrangeiro também contribuem.
O meu amigo V. vive na Noruega, é casado com uma cidadã brasileira que vive no Brasil, e os pais vivem em Portugal. É o protótipo de cidadão do mundo, anda sempre a correr o planeta, e a confluência das suas viagens, das suas existências, das suas deslocações, e da sua natureza também, fazem dele uma pessoa riquíssima, talvez a mais rica que eu conheço. Só o facto de falar e ler em várias línguas não tem preço! A perspectiva que uma pessoa assim tem do mundo e das coisas em geral é mais completa, mais conseguida. Não olha para o umbigo e não o admira como uma das maravilhas do mundo, mas antes está sempre atento a qualquer maravilha que de repente se plante diante dos seus olhos e as possibilidades disso acontecer são elevadas.
Durante anos quis emigrar e experimentar o que era viver noutro país mas o meu marido nunca se dispôs a isso. Hoje aconselho o meu filho, vivamente, a estudar no estrangeiro, a abrir novas portas. Antigamente as pessoas emigravam porque todas as portas se lhes fechavam, hoje a emigração pode consubstanciar a sua abertura, a vários e diferentes níveis, por opção.
Como sou de não perder a esperança, nunca, continuo a sonhar que um dia farei o mesmo, mas se só for de visita ao meu filho, já me dou por contente.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Porquê comprar dois livros (aparentemente) iguais? 2

Diz-me o M. que quer ler Guerra e Paz mas lá em casa só há uma edição de estante. Farto-me de rir com ele e entendo-o na perfeição. Como levar aquele calhamaço nos transportes, com capa dura debruada a dourado? Como escrever apontamentos e deixar marcas em edições de estante?
Na anterior reflexão sobre a razão de comprar dois (ou mais…) exemplares do mesmo título, coloca-se, é claro, a possibilidade de termos primeiras edições, livros comprados em alfarrabistas, ou sebos, com papelinhos lá pelo meio, bilhetes de autocarro, de cinema, facturas ou listas de compras. A lista de possibilidades é imensa.
Quando falo numa primeira edição não me refiro a Nora Roberts, a quem não retiro a importância que tem como captadora de leitores.
Lembro, lembrarei sempre, o momento em que tive nas mãos e em simultâneo as edições de Os Lusíadas, com o pisco para a direita e o pisco para a esquerda. Ambas primeiras edições. O momento foi-me proporcionado por José Mindlin e eu nem queria acreditar no que estava a acontecer. É claro que este exemplo não se repetirá e não me vejo com a Bíblia de Gutenberg na mão, não que eu não o desejasse! Mas são momentos que gente como eu vive apenas uma vez. E ficamos felizes.
O V. fala-me de livros autografados pelos autores que encontra pelos alfarrabistas lá dos Mares do Norte. Apodera-se deles como um esfomeado duma côdea de pão e eu fico cheia de inveja.
Comprei As memórias de Adriano num sebo em São Paulo e guardo-o longe da vista de todos, embora nem precisasse, pois qualquer um que me visite não se sentiria atraído por aquele livro velho, já amarelo e o que não falta aí nas livrarias são edições de Marguerite Yourcenar. Porém, foram as páginas marcadas nos cantos, com pequeníssimas dobras que me chamaram a atenção por eu fazer exactamente a mesma coisa, nas páginas que sei que quero revisitar. Resultado, comprei-o, pois claro.
Discordo da chamada de atenção que os manuais escolares trazem para que os utilizadores não os risquem. O uso dum livro pressupõe muita coisa, entre elas, poderem ser sublinhados, escreverem-se apontamentos nas margens, chamadas de atenção, conclusões a que se chama, e mais um mar de coisas.
Sempre escrevi nos livros. Tenho alguns com o espaço entre as linhas ocupado por reflexões, como se fosse um livro dentro de outro. Nunca me lembraria de pedir ao meu filho que não escrevesse num livro, antes pelo contrário incentivo-o a fazê-lo, a transformar cada objecto daqueles num objecto só seu, quase intransmissível, mas identificável, como se tivesse um carimbo com o seu nome, como se outrem, ao lê-lo dissesse sem apelo nem agravo, este livro já foi de fulano.
Quando o meu pai trabalhava numa gráfica fez o meu nome numa linha de chumbo e deu-me uma almofada de carimbo. Os meus livros estavam identificados como se fosse um adulto, coisa que eu adorava. Escrever nos livros não significa falta de respeito, mas antes é uma prova de uso, quase uma prova de amor.
Numa altura da minha vida fui motorista num colégio infantil o que coincidiu com a entrada na universidade. Levanta-me muito cedo e ia buscar os gaiatos a casa, deixá-los no colégio, levava-os à ginástica, à natação, ao judo, e a todas as actividades onde estivessem inscritos. O trabalho não era pesado mas ocupava-me muito tempo. Desse tempo guardo imensos livros cujos sublinhados são às ondinhas o que levava os meus colegas a perguntarem-me como conseguia eu fazer aquilo. Simples: tinha sempre um livro no lugar ao meu lado e quando parava a carrinha do transporte dos miúdos, enquanto os pais vinham e não vinham buscá-los ou trazê-los, enquanto os adultos que me acompanhavam os retiravam para entrarem no ginásio ou na piscina, eu agarrava imediatamente no livro e colocava-o em cima do volante. O trepidar do carro, por mais esforço que eu fizesse para riscar linhas a direito, criava aquelas ondas, que tanto espantavam os meus colegas.
No sábado na FNAC, vagueava eu no meio das estantes, com um 2666 em castelhano na mão quando ouvi uma conversa entre duas adolescentes. Uma dizia que nunca tinha lido um livro inteiro na vida, Deus a livrasse de tal e a outra mostrava-lhe um exemplar de José Rodrigues dos Santos – O sétimo selo – informando a amiga que alguém conhecido delas estava a ler aquele livro. O ar de surpresa da rapariga parecia-me genuíno mas irritou-me profundamente ouvi-la dizer o seguinte, com ar afectado (sic):
- Com tanto livro tinha que escolher logo esse? Não podia ser um mais piqueno?
A outra conseguiu levar-lhe o espanto ainda mais longe dizendo-lhe que, para além desse, a tal pessoa já tinha lido outros! Para a pobre criatura aquilo eram os segredos de Fátima, revelados ali aos seus ouvidos.
As duas andavam na casa dos 15, 16 anos e dali não sairão leitoras; mas a questão principal é que daquela abominação nascerão outras, pois que preocupação ou incentivo à leitura com os filhos terão seres com cabeças como aquelas?
Imagino-as a falarem com o M., pouco mais velho, e este a dizer-lhes que quer outra edição de Guerra e Paz, e só consigo visualizar uma conversa entre um português do século XV e um chinês do século XXV.

Joaquim Figueira Mestre

Ao fazer uma pesquisa sobre a produção literária de Joaquim Figueira Mestre leio o seguinte na página da Wook:
Joaquim Mestre nasceu em Trindade, concelho de Beja. É licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e pós-graduado em Ciências Documentais pela mesma universidade.
Gosta de ler e sonhar, de comer e beber, de amar e viajar. E de escrever, também. Por isso é autor de um livro de contos O Livro do Esquecimento (2000) e do romance A Cega da Casa do Boiro (2001). É, ainda, director das revistas Rodapé e Pé de Página. Vive no Alentejo, ermo a que alguns chamam a sua casa e onde as pessoas andam com o sol nas mãos e a lonjura no olhar. Vive num monte onde tem uma vinha e sonha um dia fazer um grande vinho. É director da Biblioteca Municipal de Beja.

As últimas frases são no presente, remetem-nos para a actualidade e não mentem, nem quando sabemos que Joaquim Mestre morreu em Maio de 2009, pela simples razão que pessoas como Figueira Mestre simplesmente não morrem. Como director da Biblioteca de Beja fez o impensável, chegou mais longe, onde ninguém ousara sequer sonhar, com acções que fizeram da Biblioteca o centro do mundo, uma Biblioteca cheia de novos e velhos, de gente. Batalhador e teimoso, diz quem o conheceu, era um homem da vida, no melhor sentido da expressão e por isso não se estranha que se mantenha o sonho de um dia fazer um grande vinho porque as coisas grandes fazem-se com raízes. E Joaquim Mestre é uma raiz na perspectiva profissional, desafiando a própria natureza, o calor do Alentejo, as vozes que diziam ser impossível nascer um oásis naquele lugar. Mas ele fez a Biblioteca de Beja, ele foi a Biblioteca de Beja, ele será sempre a Biblioteca de Beja.
Quem ficou tem uma missão mais arriscada que a de qualquer outro bibliotecário porque ocupa o lugar que foi de Joaquim Mestre, o lugar do Mestre, num espaço maravilhoso aberto até às onze da noite, como se fosse uma igreja para acolher os crentes. Levar a leitura, a discussão, as conferências até às pessoas e trazer as pessoas voluntariamente até uma Biblioteca não é fácil, mas Joaquim Mestre fazia as coisas como se as tivesse praticado durante séculos e deixou em Portugal a Biblioteca mais viva do país.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Porquê comprar dois livros (aparentemente) iguais?

Pediram-me para colocar o e-mail no blogue. Já cá está e foi utilizado por alguém que me pergunta porque razão compro eu dois livros iguais e porque dou importância a aspectos que em nada alteram o conteúdo.
Antes de responder quero agradecer aos leitores que me acompanham. Não posso deixar de estranhar que queiram comunicar comigo e não o façam aqui, nos comentários, pois todos serão bem vindos!
Por outro lado, achei imensa graça às voltas dadas para que a mensagem me chegasse, uma autêntica epopeia, mas resultou. Fico comovida que me leiam e que me devolvam pensamentos e reflexões. Obrigada.

Porquê comprar dois livros (aparentemente) iguais?
Já experimentaram comer uma bela refeição, mas de pé, com o prato na mão e o copo de vinho algures, perdido no meio de outros, igualmente perdidos, sem se saber qual é de quem? Pois acontece o mesmo com os livros. A refeição, ingerida incomodamente em pé ou confortavelmente sentados, é a mesma.
Com os livros destaco a textura, o peso e a cor do papel, a capa, se é mole ou dura, as lombadas, o tipo de letra, o espaçamento entre linhas, as margens, as badanas. Tudo conta. Realço a capa de Solar, de Ian McEwan (editado pela Gradiva), cujo acetinado nos remete, antes sequer de o abrirmos, para uma sensualidade difícil de encontrar nos livros. Depois de o lermos – gostei bastante – até podemos pensar que o editor quis brincar connosco, e levar-nos a pensar uma coisa diferente da realidade, mas eu entendi esse gesto, não como um engano, mas como um desafio.
Em termos de livros científicos, cuja carapaça é sempre linear e desinteressante, veja-se A imagem útil, de Miguel Figueira de Faria, com uma capa tão bela e cuidada, que nos remete sem qualquer dúvida para um conteúdo recheado de interesse. É um livro que não engana. Na versão em capa dura (azul escura, sóbria) sobrepõe-se-lhe uma capa em papel com enormes badanas que são, elas próprias, conteúdo, e por onde se espraia o título. Na versão em capa mole, de boa gramagem, a própria capa reproduz a imagem, onde os cuidados com a fotografia não foram secundados, mostrando-nos um exemplo onde nada foi deixado ao acaso.
Porque nos sentimos atraídos por determinadas pessoas e não por outras antes mesmo de falarmos com elas? Um livro bem revisto para mim é um Steve McQueen e uma boa tradução pode ser um Paul Newman!
Quando compro livros cujas traduções me deixam desconfiada tento comprar também um na língua original – se for em inglês ou espanhol, pois não domino outras – e vou ler aquela passagem para apanhar o espírito da mão do autor. A primeira vez que me aconteceu foi com Os sete pilares da sabedoria, de T. E. Lawrence. Mais do que faltar ali qualquer coisa, havia pensamentos não esclarecidos (para o leitor) e achei que podia ultrapassar a desconfiança lendo em inglês.
Darei um exemplo claro: se uma obra portuguesa for traduzida, como se traduz a palavra saudade? Ora, saudade é mais que um sentimento, muito mais que uma palavra, é um símbolo, um estado de alma único e cada língua tem as suas impossibilidades de tradução, que ficam ao critério dos tradutores. Eu quero saber como foi escrito, sempre que possível sem mediação, sem intermediários, que escolhem as palavras, que as substituem.
O meu alemão é quase nulo mas sei que a construção frásica se faz de forma diferente, o que indicia uma organização mental também diferente. Darei um breve exemplo: o verbo fernsehen significa ver televisão. Enquanto em português existe um verbo e um sujeito, juntam-se mas não se misturam, permitem outros casamentos, outras ligações, em alemão há uma junção, como se fosse uma coisa só. Foi isto que me levou a mentir e a dizer não, quando me perguntaram se tinha e emprestava O gato e o rato de Günter Grass. O pedido veio dum jovem adulto e a edição que tenho não foi bem traduzida. Recomendei-lhe outra e ofereci-me para lha comprar, mas não quis comprometer a sua entrada em Grass com uma edição fraca.
Já aqui falei de O guardião de livros, que li nas férias e cuja revisão é atroz. Dificilmente o emprestarei, mesmo que me digam, como acontece muito, que não faz mal. Faz sim, é como se emprestasse um casaco sem botões, umas botas sem sola ou um guarda-chuva todo partido.
Vejo as características dos livros como as vejo nas pessoas. A parte de dentro não se vê logo ao primeiro contacto, a parte de fora sim. Pode ser um George Clooney com interior de oficial das SS. Pode ser a Betty Feia com interior de Madre Teresa de Calcutá. Mas eu procuro sempre um Matthew Mcconaughey com interior de Alberto Manguel, para referir o autor que deu origem a esta conversa, podiam ser outros.
Fico desiludida com um mau livro na perspectiva duma má tradução ou má revisão; encalho nas gralhas e custa-me passar adiante. Para mim os livros são visuais, leio e vejo o que está a ser descrito, as expressões faciais das pessoas, sinto dor e alegria, transpiro, acelera-se-me a respiração, arrepio-me. Quebra-se todo o encantamento quando a leitura é interrompida por uma gralha que me faz saltar, por um erro cronológico, por um anacronismo. Não tenho culpa de ser assim, tal como o motorista do metropolitano ontem também não teve culpa de estarmos parados numa estação tempo infinito, por motivos que lhe eram alheios. Ele não podia avançar, não conseguia. Eu também não, porquê, não sei. Posso continuar a ler, mas crio uma distância com a leitura, como se desconfiasse de tudo o que vou ler a seguir, como se aquilo, a partir daquele momento, não fosse legítimo, como se eu deixasse de acreditar.
Gosto de neologismos e tenho uma certa pena de não sentir mais necessidade em os criar. Fazem-me abrir os olhos de espanto e interesse pois resultam da necessidade de alguém ir onde mais ninguém ainda foi, o que me fascina, é claro. Ir mais longe e mais além sempre foi um sonho.
Por outro lado também constato que por vezes são criados por um desconhecimento da língua, e aqui recomendo a aquisição dum dicionário…
Se sou uma leitora esquisita? Sou. Embora leia tudo, ou quase tudo, o que me vem parar às mãos, mas não deixo de pensar que tanto posso estar diante duma vista para o Curral das Freiras, imponente, ou para as traseiras do meu prédio.

Alberto Manguel, psicanalista da leitura

Ontem fui para casa com Alberto Manguel dentro da cabeça. Depois dos passados a ferro e das roupas arrumadas, enquanto via televisão e durante uma trovoada de tal ordem que estava sempre a pensar que a luz iria abaixo, fui buscar A biblioteca à noite, como quem procura um cobertor quando tem frio.
De noite na minha biblioteca não encontrei A biblioteca à noite, mas fiz uma felicíssima descoberta, Os livros e os dias: um ano de leituras prazerosas, também dele, versão brasileira comprada em S. Paulo (a ASA em 2008 editou este texto sob o título Um diário de leituras).
Os livros e os dias estavam literalmente escondidos no meio duma pilha de livros mas, talvez aquilo que ele refere como a perseverança da memória, guiou-me as mãos e o olhar para aquele esconderijo. Alguns Austers, três ou quatro Chatwins e meia dúzia de outros mais adiante estava, não um, mas dois exemplares de Uma história da leitura. Um de edição portuguesa e outro de edição brasileira – Companhia das Letras – por me ter encantado a capa e a lombada.
Os livros são assentos onde nos pomos confortavelmente, sofás, cadeiras, bancos, poltronas ou cadeirões de orelhas, sei lá eu, sinto-me bem e chega. Alberto Manguel é um psicanalista da leitura e eu preciso dele para viver.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Reader on Reading, Alberto Manguel

O meu amigo V., pessoa avisada e atenta, recomenda-me ler Manguel, o último Manguel, ainda não traduzido para português, mas disponível em inglês. Para meu êxtase remete-me para uma caverna da internet onde fez umas digitalizações de algumas páginas. Soberbas as páginas, as palavras, soberbo o gesto dele, que me sabe atarefada e receia que deixe escapar este Manguel ou que saiba da sua existência tardiamente.
Poucos me dão estas prendas. Muitos, quase todos, não me dão nada e quando me dão é na perspectiva da doação a uma biblioteca, da qual se lembram quando querem fazer arrumações e limpezas e despejam o lixo na biblioteca que mais jeitinho lhes der, com ar de quem está a oferecer o Santo Graal. Pensarão estas pessoas que quem trabalha nas bibliotecas acredita nelas? Que lata!
Um Manguel para mim é um saco de água quente no pino do Inverno dentro da nossa caminha. É maravilhoso. Alguns autores fazem-me viajar mas este faz-me entrar ainda mais dentro de mim. É como se me reciclasse.
A maioria das pessoas que eu gostava de conhecer está morta. Tive o enorme privilégio de estar com José Mindlin, o que não se poderá repetir, pois também já morreu. Mas Manguel está vivo e não perco a esperança de o ver, de poder falar com ele. Ele é como eu imagino ser um escritor, com rasto em vários países, não em visita, mas por vivência, um cidadão, aliás, vários cidadãos, todos aqueles que em nós cabem e que são muitos.
Todos os homens são mentirosos, de 2008, foi editado este ano em português, logo A Reader on Reading, lá para 2012 será agarrado por uma editora e então traduzido. O facto de as coisas existirem mas não nos estarem acessíveis dá que pensar. É como termos chocolates em caixas de camisas e pensarmos que são bichos-da-seda.
Manguel como escritor não devia ser acessível, devia ser inato. Aquilo que li em Reader on Reading é uma fórmula matemática, incontestável, para mim leitora e promotora da leitura.
Obrigada V.

Snobisses

Selma Lagerlöf é uma escritora sueca, autora, entre outros, de A Viagem Maravilhosa de Nils Holgersson através da Suécia. Ganhou o prémio Nobel em 1909 e relata a sua ida para Estocolmo receber o prémio de… comboio.
Com imensa facilidade imagino alguém na Suécia a ir, ainda hoje, para uma cerimónia destas de comboio. Na Suécia, na Noruega, na Dinamarca, até em Inglaterra, em cujo metropolitano se encontram rastas ao lado de smokings que vão à ópera. Porém, não vejo um português ir almoçar à tasca da esquina a pé, só se for metido no seu automóvel e se tiver alguém que o leve, então melhor ainda.
Ouço as pessoas dizerem mal dos transportes públicos e pergunto quando foi a última vez que andaram de comboio. Não se lembram, mas sabem que funcionam mal. Ouviram dizer. Desafio-as a fazerem a experiência, elas próprias e deixarem-se de snobisses, pois no fundo é isso mesmo, os portugueses são uns snobs.
Somos todos doutores. Assinamos doutor, identificamo-nos ao telefone como doutor, corrigimos as pessoas que nos tratam pelo nome e sublinhamos que somos doutores, não respondemos quando não colocam o doutor adiante do nosso nome. Temos imensas dívidas a tudo e a todos, créditos pessoais em barda, mas isso que importa quando é um doutor a pedi-los?
Alcandoramo-nos a donos de poderes inexistentes ou seja, convencemos os outros que somos poderosos, quanto mais não seja que detemos o poder de lhes servir a bica mais depressa ou mais devagar. Como isto é um jogo todos podem entrar, como se fosse uma corda gigante onde todos saltam ao mesmo tempo.
Quem anda a pé é apontado a dedo, quem não tem carta de condução é notícia nos jornais, quem não tem televisão devia ser internado num hospício. A posse de telemóveis sem serem o último grito (se não tiver telemóvel é porque já tem lápide no cemitério) é motivo de gozo, não ter televisão por cabo dá direito a escárnio. Afinal somos doutores ou somos o quê?
Um doutor passa à frente. Um doutor é cumprimentado com uma ligeira vénia, dependendo do cargo que ocupa, a vénia pode crescer. Um doutor adora reproduzir conversas e poder dizer ’Então, ele respondeu-me, Senhor doutor, blá, blá, blá’ e assim todos ao redor ficam a saber que ele é doutor. Um doutor é o último a ser incomodado. Palavra de doutor é lei, mesmo que seja em querela de condomínio e o doutor seja veterinário. Mas é doutor ou não é doutor? Brincamos ou quê?
Há dois dias numa reunião marcou-se um encontro na margem sul do Tejo e alguém teve o verdadeiro desplante de aflorar a possibilidade de irmos de barco. DE BARCO? Sim, os da Transtejo, a viagem é curta, é agradável passar o rio, é barata, não nos preocupamos com o estacionamento, são os barcos utilizados por milhares de pessoas todos os dias para irem de casa para o emprego e voltarem. Pessoas? Mas nós somos doutores!

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Coisas do dia a dia

Conta-me uma amiga que uma forma de citação muito vulgar entre os seus alunos – universitários – é a seguinte:
‘De acordo com o que o Prof. Fulano disse nas aulas…’
Eu digo, fim de citação.

Na semana passada um aluno estava a fazer uma pesquisa no computador cujo resultado era sempre nulo. Pediu ajuda e vi que tinha escrito codigocivil. Introduzi um espaço entre as duas palavras e ele disse:
- Então Código Civil não é tudo junto?

Conversa com um aluno.
-Eu quero consultar a Constituição, mas aquela que tem asas na capa.
- Asas na capa? A Constituição portuguesa?
- Sim, a portuguesa.
- Não temos essa edição, não pode ser outra?
- Tem sim, eu já cá consultei e tinha asas na capa.
Fomos à prateleira onde deviam estar as várias Constituições e de onde ele retira ufano um exemplar, com capa lisa e o nome estampado, dizendo:
- Está a ver, é esta!
- Mas essa é lisa, não tem asas na capa.
-Então não tem?
Enquanto respondia ele abriu o livro e mostrou-me as badanas.

Outono

Se o Outono ainda não chegou deve estar mesmo aí a rebentar. Não sei bem, porque estamos de costas voltadas, estou amuada. Fico sempre amuada neste dia, o dia em que o Verão nos abandona, o primeiro em que lhe sinto a falta, o dia em que acordo e ele já cá não está, como um amante que foge a meio da noite e está meses sem dar sinal de vida.
O Outono é uma estação cobarde, dá-nos ainda uma esperança de calor mas na verdade empurra-nos para o Inverno, como um carcereiro que sorri ao prisioneiro e a seguir bate com a porta da cela, fechando-a.
Sinto o Outono a rir-se de mim do lado de lá da grade, a rir-se da minha esperança tola e vã que o Verão ficasse comigo sempre, que não me abandonasse, sinto-o a apontar o Verão como o verdadeiro cobarde, que abandona quem tanto o ama, quem tanto se lhe entrega, quem o venera.
Dizem que o Outono é belo, mas bem sei que a beleza é subjectiva e eu própria não forço alguém a gostar do Verão! Outono é sinónimo de castanho, de folhas no chão que rugem baixinho debaixo dos nossos pés, é tempo dos cachecóis saírem dos armários, dos casacos se começarem a desempoeirar, dos sapatos fechados voltarem à ribalta. É tempo de luz quebrada, que não dói e cuja intensidade não obriga a fechar os olhos, podendo ser melhor absorvida. O Outono despe a natureza e veste-nos a nós, ora se isto não é contra natura, não sei o que seja!
O Inverno não se mascara, mostra-se como é, frio e húmido como uma gruta, mas o Outono não, faz-me andar inconstante, cria depressões, definitivamente não é meu. E eu não sou dele.
Felizes os que se dão bem nesta estação de olhar semicerrado, enganadora, que goza deliberadamente comigo, que nos quer seduzir e nos leva embalados para, de repente, percebermos que estamos no Inverno. Mas eu conheço-a e não a deixo ludibriar-me; ficarei aqui à espera dele, sei que virá, vem sempre, volta sempre, o meu Verão não morre. O ano passado pisquei-lhe o olho e fui ter com ele à América do Sul às portas da passagem do testemunho do Outono ao Inverno! Enganei-os bem! Pode ser que este ano repita a façanha, que o mesmo é dizer ganhar um alento que nenhuma caixa de vitaminas consegue dar-me.
Assim, começa hoje oficialmente o meu período de pré-hibernação, de defeso!

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Vagueiam almas perdidas que se encontram algures

Vagueiam almas perdidas que se encontram algures
Pessoas passam apressadas
Pensam em coisas diferentes daquelas com que ocupam o tempo
Deixam-se seduzir pela sua própria imaginação
Que os leva onde a coragem os impede.
Encontram-se e desencontram-se
Fazem-se e desfazem-se
Contentando-se e insatisfazendo-se
Esperam que o momento surja,
Qual alquimia já madura tanto foi o tempo que já se esperou
Desconhecimento imenso de nós,
Medo do desejo anunciado, dádiva eterna do que se não tem.
Continuam a caminhar sobre terra, lama, areia, pântanos,
Sem se atreverem a voar, sem se atreverem a saltar,
Com medo da sensação de pairar sobre o ar que nos falta
Quando imaginamos a realização do que o desejo nos pede.
Ardente olhar de quem se satisfaz
Não sabendo e ignorando o que as suas próprias mãos
(Com vida adquirida naquele instante), vão resolver fazer:
Apertar, agarrar, abraçar, bater, ou simplesmente
Acenar e dizer adeus.

Por isso... vivo para o álcool, bla, blá, blá..

Decorrem as praxes. Praticam-se actos estranhos, age-se como animal doméstico, mandado. É o preço a pagar para se vestir traje académico no próximo ano, dizem. Das inúmeras figuras que se fazem hoje em dia, esta é só mais uma, em acordo total com a estupidificante atitude de muitos alunos.
Há praxes e praxes, dizem alguns, todos de copo de cerveja na mão, desde manhã bem cedo, o que a mim, só de ver, me dá vómitos. Cantam em uníssono que vivem para o álcool, por entre bizarras ordens que vão gritando – os caloiros são todos surdos? – envolvidos em capas negras. Só falta beberem Sandeman.
Concluo que julgam não haver amanhã e que precisam mostrar a estupidez por atacado hoje, sem falta, toda, completa e berrá-la o mais alto possível, anunciá-la aos quatro ventos. E beberem, beberem sempre, muito, o mais que se consiga.
As praxes produzem heróis, precisamente aqueles que mais álcool aguentam, e que serão por isso magnificamente lembrados e venerados para sempre, como quem conquista uma montanha e deixa o seu nome no memorial da humanidade. Aqui deixa-se o nome nas urgências hospitalares onde se dá entrada em coma alcoólico bem como na lembrança poltrona e hepática dos congéneres, que pouco mais consegue memorizar.
Os que não aderem às praxes são uns estúpidos do c******! Não querem participar no espírito académico por isso, vão se f****!
Os berros das ordens dadas aos cachorros/caloiros contêm sempre, e sublinho, SEMPRE, o uso de vernáculo generoso em forma e quantidade. A mim costuma entrar-me por um ouvido e sair-me por outro mas, lá diz o ditado e bem, tudo o que é demais não presta.
Não vou dizer que no meu tempo – imagine-se, até eu já tenho um tempo! – as coisas eram diferentes, porque isso toda a gente sabe, mas pergunto-me se saberão como eram imaginativas? Cómicas mas não humilhantes. A bem da verdade, sei por ter visto e ouvido colegas meus pois, como trabalhava, não pude entrar nessas dinâmicas que me eram interditas por falta de tempo. Além disso, eu era mais do género de ir saber logo onde ficava a biblioteca…
Hoje vivo no meio académico e lido com praxes a torto e a direito e não gosto da maior parte delas. Vejo-as e sinto-as como qualquer coisa que não acrescenta nada a alguém, e dá-me pena ver quão baixo por vezes se desce.

Nada corre mais depressa que o calendário

Nada corre mais depressa que o calendário
Fugimos do ontem, em direcção ao amanhã, rapidamente transformado em ontem
Desvendam-se os lendários segredos do tempo
Lembranças e memórias gastas e ridículas.

Leituras de sempre

A aproximação do Outono e a dureza dos dias fez-me procurar imagens que me sossegam e me transmitem serenidade, mantendo a criança que há em mim bem acordada no fim de semana. Guardo livros de infância em local privilegiado junto ao meu quarto, onde os posso ver a qualquer hora, como se fossem uma companhia imemorial, garantida, segura, da altura em que a vida era diferente e tudo era grande na minha perspectiva.

Há três ou quatro livros que ainda me fazem sonhar, sonhos ingénuos, que me provocam arrepios, que me embelezam os olhos de menina que continuam a morar aqui e que se tornam sôfregos pela leitura, mas que se mantêm fiéis aquelas edições: Anita em Viagem e Um Dia na Praia são, talvez, os livros que mais vezes li, uma vez que ainda hoje o faço, deliciando-me com as imagens, transportando-me para aqueles sítios, fazendo daquelas personagens os meus maiores amigos.
Onde estão a crianças que liam aqueles livros, que se mantinham crianças durante tanto tempo? O que têm em comum com as de hoje que ainda não completaram a idade infantil e já vivem a idade adulta?
Eu passava para outra dimensão só com as capas, mas no livro da Anita em Viagem, a tempestade vista da janela do navio, estando no navio, fascinava-me e incutia-me coragem, falta de medo que, de facto, não tenho. Tive ocasião de contar aqui há pouco tempo como foi um cruzeiro acidentado no qual participei e do qual guardo exactamente as partes que os outros menos gostaram. Há pessoas para todos os gostos, eu sei.
A imagem da chegada a Nova Iorque, vista e lida milhares de vezes – o milhares não é exagero nem figura de estilo – que eu sabia ser a última do livro, era sempre uma novidade, um delírio. O porto de Nova Iorque, quando eu lá chegasse seria exactamente assim, com gruas que descarregavam navios gigantescos, e por trás do porto estava a cidade que eu ansiava conhecer como se fosse a minha terra natal há muito não visitada.
Mas a página onde este livro se manteve aberto mais tempo, dias, meses no total, era a da piscina do navio. Eu adormecia com o livro aberto naquela página, dormia com ele na cama, por cima da imagem, como se quisesse mergulhar nela durante o sono e me obrigasse dessa forma a lá entrar. Se era eu que entrava no livro ou se era o livro que entrava em mim, não sei, mas tenho a certeza que ainda hoje, nas minhas mãos, aquele livro e eu somos um só.
Quando eu for a Nova Iorque, fará parte da minha bagagem, disso tenho a certeza, porque foi ali, aos seis ou sete anos, que Nova Iorque nasceu para mim, como uma outra dimensão a descobrir. Como ainda não morri, vou a tempo.
O outro livro, igualmente comido e bebido por mim, era leitura de Inverno, quando eu sofria com a ausência da praia, da areia, do sol quente.
Ambos têm as folhas dobradas pois dormiam comigo no abrigo dos meus lençóis, numa altura em que as mensagens veiculadas eram de crianças obedientes, compreensivas, leais a princípios que, desde cedo, viam e copiavam. Os desenhos transmitem calma, alegria, serenidade.
Naquela descrição de um dia na praia eu era a protagonista e aquele castelo, mais do que construído por mim – isso sim um sonho, uma vez que ainda hoje sou incapaz de fazer um simples buraco na areia – era habitado por mim. E no final, o tesouro, um tesouro verdadeiro, dentro duma arca e tudo, com as coisas mais maravilhosas e valiosas que eu podia imaginar: búzios, conchas, frutos do mar que eu tinha em casa e nos quais metia o nariz com frequência, de olhos fechados inspirando o cheiro a maresia que durante anos mantinham. E lá vinha o arrepio na coluna, de prazer, enquanto ao mesmo tempo e numa rapidez incrível, na memória me passavam os momentos mais marcantes dos últimos Verões. Com este oxigénio eu vivia mais umas horas. Ainda hoje sinto que assim vivo.
Os livros estão em mau estado, eles que eram tão perfeitos, numa altura em que as editoras cuidavam dos livros, especialmente dos infantis, com as folhas cosidas, as capas duras, desenhos de fada e mensagens simples, mas eficazes. Era raro verem-se livros destes onde se andava à porrada, os personagens não faziam esgares maliciosos nem de maldade; eram um exemplo a copiar.
Apesar de não concordar com a criação de mundos de fada para as crianças, transmitindo-lhes a ideia que somos todos heróis de filmes e banda desenhada, mas revejo naqueles produtos uma qualidade que extravasava as páginas e as capas dos livros.
Seja como for nada me faz não amar aqueles amigos de infância que ainda hoje revejo, amigos que não traem, amigos verdadeiros, que nunca nos abandonam, que nos abrem horizontes, que nos transportam, nos fazem viajar, reviver bons momentos da infância e, acima de tudo, sonhar.

sábado, 18 de setembro de 2010

Pinto-me para mim

Pinto-me para mim
Cuidadosamente, passo o baton pelos lábios
O espelho diz-me que o carregue mais e mais
E eu, provocando-o, passo a ponta vermelha uma e outra vez
No lábio inferior, que esfrego no lábio superior, besuntando-o
E imaginando que não é o meu lábio
Gasto deliberadamente a cor
Transformando a boca numa bandeira ao vento
Para que quando passes me faças continência

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Rendas escondidas

Rendas escondidas que envolvem formas
Transformam-se em bordados raros
Esperam que dedos melosos lhes contem histórias
São objectos inanimados que provocam sensações
Que activam a circulação
Que embriagam
Que aceleram a vida
Inibem a vista,
Obrigam as mãos a percorrer caminhos
Levam a fechar os olhos
Escondem o que querem mostrar
Existem para consentir.

Areia às ondas - descoberta!

Ao ajudar uma pessoa a compor um blogue descobri a funcionalidade Estatísticas que muito me surpreendeu.

Fiquei a saber que este areal de casas velhas cheias de segredos é lido, ou melhor, visitado, por pessoas dos quatro cantos do mundo com uma inusitada incidência nos Estados Unidos da América e no Canadá!
Eu tinha a profunda convicção que para lá das fronteiras só o meu amigo V. se dedicava à leitura dos meus devaneios e agora constato que não. Não vou agradecer pois posso correr o risco de receber mensagens a dizer que o melhor seria dedicar-me a outra actividade e que vêm aqui apenas para confirmar aborrecimentos relatados por outrem.
Através da mesma funcionalidade consigo saber também que palavras-chave são usadas para chegar ao blogue: areiaasondas é o mais utilizado, mas há quem pesquise por crónicas da mãe dum adolescente!
Não sei porquê mas isto deixou-me a sorrir.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Festival de Birdwatching

Chegou ao meu e-mail uma mensagem, para mim, enigmática: realiza-se em Sagres de 1 a 3 de Outubro o 1º Festival de Birdwatching.
Das pessoas minhas conhecidas exceptuo o meu pai e o meu primo Tó, que era grande fã da passarada, e não vejo alguém que associe festival a observação de pássaros! Por mim falo, é claro, mas observar pássaros dá-me um sono infantil, profundo e pesado e quando leio que a vila de Sagres vai ser o palco de inúmeras actividades de observação de aves, num evento único que pretende envolver a comunidade local e atrair turistas nacionais e estrangeiros, lembra-me aquela anedota segundo a qual puseram um anúncio para contratar um aviador e entre os candidatos havia um com aparência de agricultor a quem perguntaram:
- Então quantas horas de voo tem?
- Zero!
- Zero? Então fale-nos da sua experiência.
- Nenhuma!
- Nenhuma? Mas então o que veio aqui fazer?
- Olhe, vim dizer que não contassem comigo!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Futebol e Segurança Nacional

A Selecção Nacional de Futebol dá nas vistas pelos piores motivos no mesmo dia em que a Polícia anuncia que fará uma greve.
É nestas alturas que eu gostava de ser ditadora pois já se estaria a escrever um diploma legal mais ou menos com este teor:

Para os devidos efeitos informa-se que a Selecção Nacional de Futebol se desactivou a partir de hoje, com ordenados, prémios e demais exageros dados aos jogadores e à equipa técnica a reverterem integralmente para a Polícia, sob a forma de fardamento, formação, instalações, equipamentos e tudo o que seja necessário, pois as verbas em causa permitem até decorar as esquadras com mobiliário de design com assinatura. Até novas instruções a Selecção Nacional de Futebol continuará a treinar, na persecução de objectivos mínimos, sem direito a qualquer remuneração.
Quem não quiser aceitar estes termos deve abandonar a Selecção imediatamente, lembrando-se que os polícias não abandonam os locais do crime mas antes são chamados a irem lá.
Quem considerar que tem pernas, arte e engenho para integrar a Selecção pode fazê-lo, independentemente da idade, sexo, profissão, ou do que seja, porque com toda a certeza, fará igual ou melhor figura do que o actual plantel. Já o mesmo não se pode dizer da polícia onde, sem fardas, nem equipamentos à altura, poucos sabem estar e ainda mais com a responsabilidade que lhes é atribuída.
As verbas que sobrarem – que sobram com certeza – serão equitativamente divididas por outras modalidades desportivas que também recebem automaticamente os patrocínios com contratos em vigor, até agora dados ao futebol.
Com este documento põe-se fim ao escândalo que tem vigorado, quer no mundo do futebol, quer no mundo da segurança e colocam-se os cidadãos em primeiro lugar.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

No dentista... em Marraquexe

Numa ocasião, em Marrocos, assisti a uma das cenas mais loucas da minha vida.
Quando aterrámos fomos incorporados numa pequena excursão com mais cinco pessoas, um casal de espanhóis e três portugueses, tios e sobrinha.
Os portugueses eram donos duma loja de pneus em Caminha e o homem era conhecido, e assim se nos apresentou, como o António dos pneus. Para além disso, eram produtores de Vilarinho, cujas propriedades eles choraram durante aquela semana, em que se viram inibidos de o ingerir. Ele andava com maços de notas, em escudos ainda, a saírem dos bolsos, de tal forma que o meu (ainda) marido o aconselhou por mais de uma vez a tomar atenção quando tirava qualquer coisa das algibeiras.
O snobismo dela era tão atroz que se tornava cómico. Chegados a um hotel, ela perguntava-lhe:
- Oh António, a nossa piscina é maior do que esta, não é?
Dirigindo-se ao marido todas as frases da senhora começavam com Oh António, o que ainda nos dava mais vontade de rir, pois parecia que ia começar a cantar uma qualquer cantiga pimba. Algures lá para o sul, não me lembro onde, já sentados na mesa do restaurante, ela pergunta:
- Oh António, estes talheres não são em prata, pois não?
E virando-se para a plebe esclareceu:
- É que lá em casa nós só comemos com talheres de prata.
Para além destas pérolas ainda nos tentou convencer que, quando era emigrante em França, amigos seus marroquinos faziam a viagem de comboio entre França e Marrocos, directa e sem passarem pelo Estreito de Gibraltar, nem sequer pelo Mediterrâneo, proeza que ainda hoje me assombra!
Por onde passavam compravam tudo o que havia e que não havia para comprar, desde tapetes a casacos, passando por mobiliário, especiarias, roupa, jóias. Ao fim dos primeiros dias, o carrego era gigante.
Valia-lhe a ele a modéstia, nas conversas e nas atitudes, em contradição com a estupidez natural dela, cuja situação de nítido desafogo financeiro a levava a pensar que isso equivalia a poder dizer e fazer o que bem lhe apetecesse.
Nós e os espanhóis gozávamos à francesa! Os espanhóis eram funcionários da Iberia, ela hospedeira, ele engenheiro e quando ouviram o casal dos pneus afirmar que tinham em casa vários faqueiros, feitos à custa de companhias de aviação, pois roubavam (sic) os talheres todos, passámos a chamá-los O terror de los cubiertos.
Em Marraquexe, e depois dum fim de tarde encantador, mágico, que guardo na memória como dos mais prazenteiros da minha vida, na esplanada sob a praça Jemna el Fna, onde quase se sente o sabor das especiarias na ponta dos dedos, saímos da esplanada e fomos dar uma volta pela praça.
Já os candeeiros dos vendedores de laranjas se acendiam, os encantadores de serpentes a fazerem-nos arrepiar ainda mais, os magníficos contadores de histórias (falarei sobre isto em post dedicado) a cativar assistência e os inevitáveis dentistas, espalhados por ali, à espera de clientes.
A comitiva da excursão andava dispersa, uns por aqui outros por ali, com hora marcada em determinado sítio, para o reencontro e com tempo calmo para as inevitáveis compras.
Ao deambularmos pela praça avistámos o António dos pneus, carregado com sacos, como uma mula, mas ainda com dedos para carregar no botão da máquina fotográfica. E esse foi o mote para o que se seguiu.
Ele tirou uma fotografia a um dentista e ia virar costas, quando o profissional dos dentes e das dentaduras começou um rebuliço de voz, que o mesmo é dizer, uma gritaria. Clamava pelo pagamento que não fora feito! O pobre do António não percebia nada e ainda olhou de esguelha para trás, na esperança que aquilo não fosse com ele. Mas era. De longe gritámos-lhe que lhe desse dinheiro:
- António pague-lhe, pague-lhe!
Mas o António estava tão surdo pelo medo que deixou que o dentista o agarrasse, puxasse e sentasse na marquesa de rua sem que pudesse fazer alguma coisa, pois nem agitar os braços lhe era concedido, tão pesados e carregados estavam com cachimbos de água, djellabas, sacos de especiarias, sapatos bicudos e enrolados na biqueira, chapéus de Musli, turbantes e quanto mais houvesse em Marraquexe para comprar.
Já a correr na direcção dele vimos o dentista, aos gritos, usar o próprio corpo para o segurar, joelho em cima do António e, com uma mão, abria-lhe a boca, e com a outra dirigia uma turquês em direcção dos dentes do desgraçado, que nem gritar conseguia.
Quando nos abeirámos dele o meu marido deu uma nota, muito simpática, ao dentista e começou logo a puxá-lo, ajudando-o a levantar-se da cadeira.
Levantámos as mãos à altura do peito, a olhar para o dentista, gesto mundial para designar paz e lá fomos embora com o António atrelado aos seus inúmeros sacos.
Um pouco adiante a nossa viatura apanhou-nos e o António, lívido, entrou como se fosse o Paraíso e 70 virgens o esperassem.
Lá agradeceu, à sua maneira meio bruta, e acabou por se rir. Mas como as lições nem sempre são aprendidas, no dia seguinte já estava outra vez a fazer disparates.
Num restaurante, bastante modesto por sinal, em cima da mesa havia uma pequena jarra de loiça, sem qualquer história, e nulo interesse. Quando o empregado veio buscar a encomenda ele perguntou-lhe:
- Me regalas isto?
Convém esclarecer que ambos, marido e mulher, misturavam o português com o espanhol, aumentando substancialmente o volume quando se dirigiam aos marroquinos, achando, como muito boa gente, que se falarmos mais alto, os estrangeiros ouvem melhor, donde se conclui que não nos entendemos, não é por falarmos línguas diferentes e sim por eles serem surdos.
O homem respondeu que não, que não podia regalar-lhe nada e quando virou costas, sem qualquer constrangimento, o António meteu a jarra no bolso, olhando para as nossas caras atónitas e dizendo:
- Vocês viram que eu pedi! Ele não mo deu, então…
Depois disto, comentei com o meu marido que ele merecia que o dentista lhe tivesse arrancado um dente! A sangue frio!

Atenção ao espaço entre a plataforma e o comboio

Na estação de metro de Marquês de Pombal ouve-se uma gravação ININTERRUPTAMENTE a dizer: ‘Atenção ao espaço entre a plataforma e o comboio’.
Há muitos anos atrás o meu pai arranjava o carro numa oficina, cujo dono, gordo como uma baleia, acendia os cigarros uns nos outros e deixava-os ficar a queimar, ao canto da boca. A bem da verdade, não me lembro de o ver de pé, só sentado. Ora, a gravação no metro lembra-me o monstruoso homem, uma vez que não há qualquer espaço entre a repetição da gravação, criando uma poluição sonora que faz dores de cabeça, de tal forma que, neste momento, não faz qualquer efeito, pois os clientes ouvem a informação como barulho de fundo, não a assimilando, ou seja, mesmo com o aviso repetido mil vezes ao longo do dia, não será por isso que se tem atenção ao buraco entre a carruagem e a plataforma porque a única coisa que se retira daquilo é barulho, nada mais.
Este é um exemplo em como a prevenção, quando mal feita, não serve para nada. Está ali, mas o excesso é de tal maneira agressivo auditivamente, que as pessoas entram na plataforma e dentro das suas cabeças aquilo é barulho a filtrar e não interiorizar.
Daqui também se tira outra conclusão: os responsáveis por esta campanha de prevenção não frequentam NUNCA o lugar que escolheram para a pôr em prática.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Inferições

Na minha demanda por um filtro de exaustor fui ao Braz & Braz, essa instituição secular que se rege pelo lema, O Braz & Braz tem, o que nem sempre se verifica ser verdade pois neste caso, não tinha. Fiquei a saber que a loja mudou de instalações, já em Abril, e agora está no Poço do Borratém, 150 metros mais adiante.
Na Baixa o calor fazia-se sentir com intensidade. Vi as esplanadas cheias de gente, na maioria turistas, e a entrada da Igreja de S. Domingos e o monumento ao massacre dos judeus em Lisboa estavam, como de costume, cheios de emigrantes, qual Belleville.
Mesmo quando vou com pressa, o que até nem era o caso, tento ver a cidade, apurá-la, senti-la. Se fecharmos os olhos naquele sítio ouvimos uma música que não vem de qualquer instrumento musical mas da multiplicidade de gargantas que se expressam em línguas diferentes, com mil sotaques para além das mil línguas, com risos ora calmos ora vibrantes.
Andava eu devagar a inspirar com calma aquela forma de maresia quando, da igreja de S. Domingos, vi saírem dois homens que, à primeira vista, não tinham ar de quem foi rezar: um com uma camisola verde com letras brancas onde se lia Argélie e calças de ganga, o outro com djellaba. Vi-os despedirem-se afectuosamente um do outro e continuarem por caminhos diferentes e questionei-me sobre o que os terá levado à igreja, a eles que pareciam muçulmanos.
Continuei eu também e, entrando no metro, pensei porque raio concluíra eu que eles não tinham ido rezar: pela roupa que vestiam? Por um deles trazer uma t-shirt, através da qual inferi que seria argelino, logo muçulmano? Por serem muito morenos com traços norte africanos? Claro que sim.
Imediatamente a seguir lembrei-me que estas inferições normalmente são erradas; basta ver a minha cara de hoje, de boa disposição, quando por dentro sinto uma ansiedade enorme que até me tira a fome, um mal-estar geral que não me deixa concentrar, uma angústia que me faz arder o peito.

No elevador do meu prédio

Vivo no 4º e último andar dum prédio com elevador. Os meus vizinhos nunca, mas nunca mesmo se dignam chamar o elevador se percebem que vem de cima com pessoas lá dentro. E eu pergunto, porquê?
Ouço-os na escada, vou dentro do elevador e vejo os seus perfis através do vidro enquanto desço mas eles, sabendo que vem alguém, não mandam parar, preferindo esperar para o chamar novamente.
Este comportamento de bicho-do-mato obriga a gastar muita energia, como qualquer pessoa percebe e corta radicalmente qualquer conhecimento entre pessoas que vivem a dois metros de distância, mas que tudo fazem para não se verem. Eu não quero ser visita lá de casa nem que eles sejam da minha – cruzes, canhoto! – mas o mínimo da sociabilidade nunca fez mal a alguém, para não dizer que há mínimos de níveis de educação que deviam ser respeitados.
Quando se juntam duas pessoas à entrada do elevador no rés-do-chão a situação é diferente pois ninguém consegue evitar não subir juntamente com a vizinhança. Por norma a viagem faz-se em silêncio e de costas. Como sou sempre a última pois moro no andar mais acima ouço uns rosnares que tento decifrar como boa noite ou boa tarde, como for o caso, e respondo alto e bom som como se fossem velhos, senis e moucos:
- BOA TARDE PARA SI TAMBÉM.
Ou então:
- UMA MUITO BOA NOITE VIZINHO.
Normalmente assusto-os porque não estão à espera do elevar de voz, ainda por cima num espaço tão pequeno onde a minha voz ressoa e parece até fazer eco e eu divirto-me com esta pequena brincadeira.
Outra modalidade passa por, com voz normal e um enorme sorriso, começar uma lengalenga, deixando-os sem saber o que fazer ou dizer: se retribuírem, se deixarem a porta fechar, se segurarem na porta enquanto falo:
- Uma noite descansada para si vizinho e para todos lá em casa, até amanhã, se Deus quiser, ou quando nos voltarmos a encontrar.
Irrita-me que lhes custe cumprimentar as pessoas, com civilidade, que lhes custe fazerem sair da boca um simples e modesto bom dia.
Bem sei que o conceito de vizinho há muito que se perdeu nesta sociedade actual da pressa e da rapidez, mas a educação, que é feito dela?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Aniversário de casamento

Se me tivesse mantido casada o meu casamento hoje faria 19 anos, mas não chegou a atingir esta fase da entrada na idade adulta. Ficou-se pela adolescência.
Era muito nova quando decidi que, se me chegasse a casar, seria dia 1 de Setembro. Da mesma forma, imaginei o vestido que usaria – curto! – e assim foi. Foi um dia feliz, muito feliz. Estava calor, estávamos bonitos, por dentro. Por fora também, mas isso é secundário.
Como passo muito tempo sozinha, e farto-me de pensar nas coisas, magico no percurso que não chegou a existir, na diversidade de caminhos que se criaram, nas pessoas diferentes que cresceram em nós, que julgávamos conhecermo-nos e afinal constata-se que ninguém conhece alguém, nunca. Temos essa ilusão e queremos convencer-nos dessa certeza, mas ela não é verdadeira.
Dizem que amar é aceitar o outro com os seus defeitos e qualidades, amar-lhe as imperfeições, querer que o outro seja feliz, custe o que custar. Dizem também que o verdadeiro amor é sofrido, em silêncio. Será? Viverei eu o verdadeiro amor agora? Tenho que me rir, para não chorar.
As pessoas acreditam que há um testo para cada panela, que há alguém que encaixará connosco na perfeição, mas nós encaixávamos como um par de botas e uma antena. Mas por haver gatos que ensinam gaivotas a voar, por existirem pontes estranhas que podem ser tão distantes como as de Madison County, o par de botas dedicou-se eternamente à antena, criando um casamento esquisito. Qualquer cego veria que não podia ser eterno, o casamento, não a dedicação, o sentimento.
Ao longo dos anos de divórcio vi o pai do meu filho mudar, captar mais vida do que ao longo da vida comigo, como se, de repente, tivesse sintonizado a antena. O primeiro e mais natural pensamento é que era eu que, de alguma forma, o impedia de fazer certas coisas, agir e ter comportamentos diferentes. Empurro de imediato esse pensamento porque me lembro de lhe pedir vezes sem conta para fazermos certas coisas que ele nunca queria e agora faz. E eu fico com cara de parva. Depois penso que era a minha companhia em si, e que ele estava convencido que me amava, mas que, mais uma vez era uma ilusão, apenas um convencimento que, com o tempo, ele viu não ser verdade. Reflicto sobre tudo isto e não consigo perceber, embora haja margem de manobra na percepção popular, se der ouvidos aos ditos que afirmam que com a segunda eles fazem tudo o que não fizeram com a primeira, e mudam completamente. Não consigo deixar de pensar que a incapacidade passou por mim e recordo que numa ocasião o meu já ex-marido pediu-me o telemóvel para ver qualquer coisa e com tanta vista deu cabo dele; disse-lhe que teria que o substituir e ele deu-me um antigo dele próprio, esquecendo-se que as mensagens estavam gravadas no equipamento e não no cartão. Quando a caixa de mensagens ficou cheia tive que seleccionar as que queria apagar e foi ai que vi as mais lindas declarações de amor escritas pelo meu ex-marido à sua actual companheira (acho eu que eram para ela). Eu nunca ouvi tal coisa da boca dele, muito menos com aquele tom, ainda que me perguntem que raio de tom se consegue ler numa mensagem sms, mas eu garanto que sim. Apesar disso, vejo-o quase sempre com cara triste e pergunto-lhe (talvez com frequência a mais da conta) o que tem para andar assim. Não consigo afastar-me do bem estar dele e concluo que fizemos bem em separarmo-nos. Talvez chegue a essa conclusão por achar que ele está melhor assim, talvez chegue a essa conclusão para não me sentir muito mal. Não sei.
Por vezes penso – ou sonho acordada – que ele vem viver connosco. Mas depois lembro-me de mil pequenas coisas que separadas são pequeninas e juntas fazem um mundo, um mundo do qual eu saí. Depois penso que ele está diferente, mas tenho a sensatez de saber que ele está diferente com outras pessoas.
O amor gigantesco que ele dizia ter esfumou-se em meia dúzia de meses, vive no local onde sempre o ouvi apregoar que nunca viveria por ser terrível a mais da conta, deixa a namorada conduzir-lhe o carro sempre, coisa que eu só podia fazer se ele estivesse doente ou muito, muito, muito cansado, vai frequentemente a restaurantes, quando cada jantar com amigos antes era um suplício porque era um gasto de dinheiro inútil, tem e usa equipamento de caminhadas quando nem ao café ia comigo.
Há dois dias mandou um saco com roupa do filho que tinha ficado lá em casa por altura das férias. No meio veio um boné que encontrámos uma vez nas férias e que nunca usámos, mas era uma espécie de símbolo, aquele boné era a distância pendurada algures lá em casa, era a surpresa do inesperado, era as próprias férias consubstanciadas no acidental, era a imprevisibilidade da qual eu sempre tanto gostei.
Curiosamente não era o primeiro boné que tínhamos encontrado, houve outros, mas aquele guardamo-lo e há dois dias foi despejado. Talvez pela proximidade do aniversário, eu senti uma tristeza imensa.
Neste dia ele recebia sempre uma prenda e eu recebia o agradecimento dele, que já era bom, pois podia apenas ter a reclamação sobre o dinheiro que eu tinha gasto. Numa ocasião convidei os nossos pais e irmãs e fiz questão de irmos jantar fora. Ofereci-lhe uma mala de viagem verde, pequena para poder transportá-la dentro do avião. Na verdade, sentia-me como se fosse eu que ia com ele de cada vez que viajava, aquela mala era eu, eu consubstanciada num dos objectos do meu fetiche, eu a acompanhar o meu marido para onde ele fosse.
Não afirmo que todas estas coisas fossem ditas verbalmente, mas eram sentidas e eu achava que não havia a necessidade de as verbalizar, bastava conhecer-me. Mas, repetindo-me, nunca se conhecem as pessoas.
As desilusões são de parte a parte, sempre, mas eu continuo na minha linha de pensamento e de acção, e sempre preocupada com ele, às vezes tanto que me dano comigo própria! Fico furiosa quando o vejo com nódoas, com colarinhos já gastos e velhos, com gravatas desfiadas, magro demais. Não há ninguém com olhos na cara naquela casa? Outras vezes vejo-o com roupa de marca, que sei ser cara, e pergunto-me como terá ido parar àquele corpinho. Se eu comprasse uma coisa de marca para ele levava um raspanete e isso levava-me a mentir acerca do preço das coisas que lhe comprava e, quando comprava para mim, dizia que era do ano passado. As artimanhas de que é preciso fazermo-nos valer...
Há fotografias dele espalhadas lá em casa, porque ele continua a viver connosco, duma forma ou de outra. Porque há amores que são eternos.