sexta-feira, 30 de abril de 2010

Notícias do passado

Algures na nossa memória moram lembranças vividas ou relatos de alguém que nos contou que quando o correio chegava a aldeia apinhava-se para o receber e para o ouvir ler. Esticavam-se as orelhas ansiosas para as nossas notícias e curiosas para as alheias. Depois, depois vivia-se meses (e anos) com aquelas novidades, vindas de longe, longe de caminho e longe de tempo.
Ouvi uma vez uma história maravilhosa sobre uma rapariga que tinha ido trabalhar para longe da casa dos pais; escreviam-se mutuamente e, não havendo ainda selos, os ‘portes’ eram pagos pelo destinatário quando recebia a correspondência. Por falta de dinheiro arranjaram então diversos estratagemas para, sem ficarem com a correspondência que lhes era endereçada, saberem uns dos outros: com olhos lacrimelanjes a pequena pedia que, pelo menos, lhe lessem a carta mesmo que não lha entregassem, e corações mais bondosos, lá a satisfaziam; outras vezes, depois de ler a carta, afirmava que, afinal, não era para si! Outras ainda, faziam desenhos, facilmente perceptíveis, e depois de os verem já não aceitavam a correspondência.
Num mundo como hoje em que escrevo instantaneamente para qualquer parte do mundo não é concebível a angústia ou a impaciência pela demora de notícias e estes relatos de gente em afã por novidades parecem pertencer a outras dimensões quando, na verdade, são apenas de ontem.
A espera era materializada por vários momentos igualmente inquietos. Esperava-se. Haverá notícias hoje ou não? O chamamento dos nomes dos destinatários era acompanhado dum padecimento fruto do desconhecimento sobre se o nosso seria um dos eleitos ou não. Podia não ser e a espera continuava.
Quando havia um envelope ou um seu antecessor para nós, na grande maioria das vezes havia ainda que esperar que a chamada fosse terminada e ficava-se na fila para a leitura. Tudo, ou quase tudo, era comum. Se um recebia boas novas todos mostravam sorrisos de alegria; se eram tristes, solidarizavam-se irmamente. As notícias eram ribeiros onde nos era concedido refrescar, mesmo em propriedade alheia.
Lida a notícia faltava repeti-la a outros, reproduzi-la, fazê-la reviver e renascer no seu recapitular. A seguir vivia-se a indemnização da espera.

La Corunha, 31 de Maio de 2007

João
Sábado de manhã fui à praia. Já descalça e com os pés dentro de água, agarrei um bocado de tijolo e escrevi o teu nome seguido daquela palavra que não se pode dizer...
Depois atirei o tijolo ao mar. Não penses que a água do mar apagou rapidamente as letras que eu desenhei... primeiro porque eu não fiquei lá o tempo suficiente para ver as ondinhas de espuma apagarem as letras e depois porque elas não se vão apagar... vão entrar pelo mar adentro e permanecer lá para que possam servir de modelo e deixar que o pedaço de tijolo as volte as escrever, repetidamente, no fundo do mar, numa praia ali ao lado, numa outra lá do outro lado do mundo, ou em qualquer pedaço de areia cheio de gente ou inacessível, tão inacessível que só a força duma prova de amor lá chegará e que vai correr pelos oceanos, como eu gostaria de fazer e deixar marcas um pouco por todo o lado... para que quando eu um dia for a qualquer desses sítios, a areia já me conheça e me fale dum amor longínquo, nascido num jardim à beira mar plantado e cantado por um pedaço de tijolo em todas as praias deste mundo...
Se vires esta pessoa em quem eu tanto penso, diz-lhe que eu ando a fazer o mesmo na areia das praias, com o fumo dos cigarros, com a massa do esparguete, com a tinta das canetas, com os pingos da chuva, com as notas de música, com as nuvens do céu, com as marcas das botas, com as pontas dos dedos nos vidros embaciados, com as lágrimas que me escorrem pela cara, com os rodados dos pneus em estradas secundárias, com os raios de sol nas águas de qualquer mar ou rio, e que me sinto contente e feliz como uma criança em dia de Natal…
Camila

Em J

Jamais justificarei a jornada
Justo é o juvenil juízo
Jardins de jargões em juncos e jangadas
Jazem à janela já jubilados
Jogos jocosos de junho
Jeitos janotas jejuam o joio

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Dia D

Hoje foi um dos meus Dias D. Há-os de várias formas e feitios, mas este, algo me diz que não se repetirá. Quem me dera que algum dia chegue o dia em que dias como o dia de hoje sejam dias sem história.
Mas hoje fez-se História e com agá grande: pela primeira vez na vida comprei uma peça de roupa que me está... grande.
Já tive experiências com roupa justa, apertada, pequena, estreita e com quantos sinónimos se quiserem acrescentar. Já tive experiências com roupa minha que não parecia roupa minha. Já tive experiências com roupa que já tinha sido minha, mas que já não era por incompatibilidade de tamanho. Mas nunca, em tempo algum, se verificaram registos duma peça que ficasse larga.
A bem da verdade eu compro roupa sem a experimentar, é a olho, mas acerto (quase) sempre e se não acertar é porque fica apertada. C
É como as quantidades de açúcar ou farinha quando me decido (momentos únicos) a fazer um bolo, ou quando me deleito a cozinhar. Não sei o que é seguir uma receita e cria-me osteoporose estar ali a caminhar através de duzentas gramas de manteiga e três gemas de ovo, cujas claras terão que ser batidas em castelo até atingirem a consistência não sei do quê, às quais se juntam, depois e devagar mexendo bem, mais umas gramas exactamente medidas de diversos ingredientes. O problema é a paciência que me falta nestas coisas e se tenho que as realizar pois que seja depressa e é a olhómetro.
Medir espaços está na mesma categoria: por exemplo se for a diferença entre vinte e dois mil metros quadrados ainda vá que não vá, mas não arrisco em qualquer coisa que possa medir entre duzentos ou dois mil. É melhor ficar quieta, vou errar com garantida certeza.
Mas na roupa costumo acertar, embora raramente a experimente numa loja. Detesto lojas e compras, centros comerciais, filas em caixas e os cubículos para experimentar roupa são para mim uma espécie de instrumento de tortura medieval: fico apertada lá dentro, transpiro imenso, nem todos têm um cabide para pendurar nem que seja a mala, as cortinas são sempre pequenas ficando o rabo duma pessoa como uma espécie de cauda sempre à mostra, isto para não falar do constrangimento de sabermos outros na fila que estão todos a pensar Despacha-te! o que me enerva!
Além disso, gosto do mercado do Algueirão (Viva o mercado do Algueirão! Viva!) onde compro grande parte do meu guarda roupa.
Ontem (a compra foi ontem) não acertei no tamanho e hoje de manhã quando me vesti afivelei um enorme sorriso de conclusão: estou cerca de trezentas gramas mais magra! Bem, não exageremos, mas duzentas e cinquenta estou de certeza! Vou comemorar com um jantar especial...

Desmamem à vontade...

Venho no comboio a ler o jornal do vizinho do lado. Subsídios de desemprego misturam-se com desmames. Pergunto-me se alguém vai fazer alguma coisa nesse sentido, ou seja, vai desmamar quem se senta não à sombra da bananeira, mas sim às minhas custas, e de outros como eu que pagam mensalmente quantias que até não seriam exorbitantes se fossem bem empregues. Na sua maioria não são.

Erguem-se vozes contra o desemprego! Aqui del rei que não há trabalho, diz um, as coisas estão muito difíceis, acrescenta outro, cada vez mais, dirá quem esteja a ouvir.
E eu concordo. Mas só em parte. Há falta de emprego, é verdade, mas trabalho ainda vai havendo, acontece é que poucos o querem.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Ana Silvia Reynoso de Abud

Ana Silvia Reynoso de Abud é embaixadora da República Dominicana em Portugal mas podia ser o que bem lhe apetecesse. Perante pessoas como ela a vida fica em câmara lenta, dando-lhe espaço para qualquer manobra. Não é apressada mas sente-se-lhe uma energia interior rara. Nunca a vi sentada a uma secretária a despachar trabalho mas ouço-a falar. O seu vasto percurso académico só solidificou a mulher culta que se encontra quando conversamos com Ana Silvia e ficamos com a sensação que já nasceu assim. É como uma montanha que Deus depositou à beira dum sopé, parecendo que está li desde tempos imemoriais e há-de ficar, a sorrir, quando morrermos. Sempre a sorrir. Não se sabe a sua idade: ora é jovem, muito jovem, como o denuncia o brilho do seu olhar, ora é o acumular de experiências diplomáticas, políticas, interventivas, poéticas e ou literárias.
Ana Silvia é duma simplicidade atroz, duma envolvência contagiante, com uma voz que inspira confiança. É a imagem da amiga ou da avó que está sempre lá para nos ouvir e aconselhar, disponível e com tempo, como li que são as avós, que nunca têm pressa.
Ana Silvia é um coração em forma de pessoa que trás consigo as praias e o sol dominicanos, mas também a cultura do seu país.
Ana Silvia podia chamar-se Esperança pois o nome assenta-lhe como uma luva e todos nós sorriríamos ainda mais ao pronunciá-lo. Dá vontade de largar tudo e de ir trabalhar com Ana Silvia, pois temos uma certeza secreta que com ela ao lado atingiremos todos os objectivos propostos.

O escuteiro

Três faixas dão acesso ao semáforo. Aproximo-me na fila do meio. Paro no semáforo com dois carros à minha frente. A fila da esquerda regista quatro carros, a da direita outros quatro. Só a do meio tem apenas três.
Do passeio onde emergem os sinais saltam alguns escoteiros. Vendem canetas. Vou abrindo a carteira antes de chegarem ao pé de mim.
Calha-me um jovem que pára ao meu lado e me estende uma caneta amarela e diz:
- Um euro.
Nem mais uma palavra saiu da boca enquadrada naquela cara inexpressiva, de estátua. Calculando precisamente esse valor já tinha a moeda na mão e entrego-lha. Ele afasta-se sem emitir qualquer som, ao que eu reajo:
- Bom dia e obrigada para si também!
Ouço o que me pareceu um rosnar de bom dia, mas certezas só o que vi a seguir: ele plantou-se atrás do meu carro, no espaço calculado onde eventualmente outro fosse parar. Não se virou para o carro à esquerda nem correu para o carro à direita, ambos nas filas laterais atrás do meu.
O semáforo ficou verde. Ele correu para o passeio, com certeza a aguardar que alguém passasse, saísse do carro e lhe fosse pedir encarecidamente que lhe vendesse um caneta.

Alimentação Animal

No meio de dezenas (ou centenas...?) de publicações periódicas que aqui se recebem vem também a Alimentação Animal onde, confesso, nunca pego.
A vida no balcão da Biblioteca tem dias de muito movimento e outros lentos, como hoje, onde o calor aperta e nos amolece e onde se agarra na primeira revista para se passar o tempo. Foi assim que me chegou o exemplar do primeiro trimestre de 2010, trazido com um sorriso por quem lhe pegou aleatoriamente e reconheceu um dos autores dum artigo como meu familiar.
O artigo é ilustrado por figuras coloridas e com palavreado do género: via catabólica, leitões aos rácios, suplementação com aminoácidos, aminoácido limitante ou ainda, entre outros, Digestibilidade ileal estandardizada.
Enquanto escrevo vai ficando um rasto de sublinhados vermelhos nas palavras, indicando-me que não fazem parte do dicionário. Os editores, com tanta palavra cara, até se baralharam e escreveram mal o nome da empresa do autor do artigo.
Percebe-se facilmente porque razão esta revista em particular não me atrai, não sou dada a palavras difíceis.
Se reconheci a assinatura e a fotografia do meu cunhado que, obviamente, sabe dizer todos estes palavrões e di-los com ar sério, compenetrado e com propriedade, também reconheci a revisão do texto e as indicações bibliográficas.
L-valina: o novo aminoácido limitante, foi publicado num capítulo da revista na área da investigação e, mesmo sem perceber patavina do assunto, gostei de o saber publicado.
Parabéns ao meu cunhado.

terça-feira, 27 de abril de 2010

O próximo sábado

Sábado perspectiva-se um grande dia: vou ver os Iniciados da Académica da Amadora jogarem por volta da hora do almoço e à noite vou ver um espectáculo no Pavilhão Atlântico: Vila Moleza!
O que me encanta não é o espectáculo em si, cujo conteúdo nem sei bem qual é, apesar de já saber mais alguma coisa fruto das minhas vastas, intensas e profundas pesquisas na net, o que me encanta é a companhia!
Vou ver a Vila Moleza com o Manel e a Violeta (ex Pilar ou Pi, e a quem prometi passar a chamar Violeta uma vez que ela disse que gostava se chamar assim). Há dois dias vi o entusiasmo deles e verifiquei aquilo que já me tinha parecido há algum tempo: ela está mais queridinha comigo... porquê, não sei, talvez esteja mais crescida e já aprecie a minha companhia doutra forma.
A mim fazem-me falta, os dois, como se fossem dias de férias.

Revolt in the desert

O V. casa-se e eu é que sou presenteada! Aterrou-me outro T. E. Lawrence na secretária, desta vez Revolt in the desert. Fui avisada desta chegada pelo telefone há dias e, com voz de desculpa, ele falou-me da capa, que tinha algumas manchas e etecetera e não estava em tão boas condições como o anterior. Concluo que o V. não percebe nada de livros!
É bom ter um livro novo, eu que o diga, de preferência a cheirar a livro, e note-se que nem tudo o que cheira àquilo que é, é bom, veja-se o caso do borrego, tão apreciado, mas com os livros é diferente – com os livros é sempre diferente – o cheiro a virgem, a tinta, a papel, são tardes soalheiras de prazer. Porém, há uma fasquia de livros que, usados, valem por muitos dos novos.
Um romance pode chegar-me às mãos em invólucro novo, ou seja, em livro acabado de comprar, direitinho, imaculado de cheiros, grãos de areia, migalhas, papéis ou bilhetes de comboio. Algumas das suas páginas serão dobradas no canto, uma dobrazinha pequena, minúscula, que me facilite a vida quando quiser encontrar aquele parágrafo de novo, uma cábula em forma de dobra.
Uma biografia será, com elevada probabilidade, submetida a sublinhados. Um livro técnico com garantida certeza levará, para além dos sublinhados, palavras escritas nas margens, de lado, detalhes que me ocorrem, perguntas que ficam por ali. Um livro especial fica com memórias escritas nas entrelinhas, como se criasse um livro dentro de outro – o último foi Uma vida entre livros de José Mindlin, um garimpeiro de livros como ele se chamava, e que tive o prazer de conhecer pessoalmente na sua casa em São Paulo, pouco antes da sua morte em Fevereiro de 2010.
Entre várias outras categorias há os livros que me merecem devoção. Este que acabo de receber é um deles, não emprestável, é claro. Chamem-me o que quiserem, acusem-me de egoísmo, a ver se me importo. Podem mexer-lhe, lá em casa, mas acreditem que o facto de não virar costas um segundo não é coincidência, será propositado este controlo que já anuncio.
Um livro conta histórias ou estórias, nem que seja sobre equações ou física quântica. Mas este objecto eterno – estou convencida disso – vai muito para além das palavras que contém, atingindo o âmago dos que com ele estiveram e é por isso que os livros gastos e usados pesam a vida dos que por eles passaram. Agora imaginem um livro poderoso cujo conteúdo, palavras e espaços, é um marco na história do mundo, mas cuja edição não cheira a novo, mas antes revela páginas manchadas de tempo que passou, com invisíveis impressões digitais de desconhecidos, que fala(va)m línguas distintas mas igualmente desconhecidas para mim e que, cúmulo, é da autoria do meu aventureiro fetiche, sobre um assunto que me prende voluntariamente em qualquer solitária. É a diferença entre pão com manteiga para matar a fome e toucinho do céu para alimentar a gula. É a diferença entre um postal com uma imagem do mar e um mergulho.
Este livro contém ainda várias ilustrações, algumas delas feitas a partir de desenhos e que nos mostram visualmente alguns dos protagonistas deste épico da vida. Por fim termina com um mapa onde leves tracejados a vermelho nos dão a dimensão das viagens que envolvem a acção descrita. Um mapa... falarei dele, e doutros, em altura apropriada.
Mas, como quem chega ao fim dum livro e ainda tem como bónus um posfácio, eu tive como prémio um postal. Com um farol, é claro, a minha futura e eterna casa. E com um beijo do tamanho do mundo, subúrbios incluídos.

Fogo-fátuo

Ana Luísa S. (como é denominada na comunicação social) defendeu a sua tese de doutoramento na Universidade do Minho no final de 2009. Afinal, parece que não era sua e sim de Sérgio Masutti, da Universidade Federal de Santa Catarina, defendida nos idos de 2005.
O Reitor da Universidade do Minho afirmou que, caso se verifique o plágio, a tese será anulada e a senhora perderá, consequentemente, o grau de doutora. Ganhará juízo?
Um ladrão vulgar rouba uma carteira, ou seja o que for, e fará tudo para não voltar a ver a cara do dono do objecto roubado. Um plagiador é um ladrão com uma lata muito maior: encara sorridente o mundo, amputado de vergonha, declarando publicamente a propriedade daquilo que pilhou.
Um ladrão vulgar pode ser um artista e não faltam exemplos ao longo da história de gente que se assenhorou a algo que não era seu, de formas espantosas, que nos arrancam sorrisos. Um plagiador é um pobre de espírito que apenas sabe copiar. É um imitador que apenas merece as nossas gargalhadas de escárnio. É fraco, abusivo, desrespeitador. É uma figurilha que se esconde atrás dos outros para que não vejam a sua essência de queijo suíço já ratado!
O plagiador é um cobarde: nem sequer tenta, é muito mais fácil transcrever e ele avança com as suas medíocres capacidades, aliadas à sua estupidez natural que o leva a pensar que os outros são parvos. Vivem a ilusão que são alguém. Pensam que são doutores, quando não passam de côdea bolorenta.
Dizem três patacoadas dissimulando, com pretensa astúcia, uma ignorância que acaba por vir ao de cima. São uma impigem, um fogo-fátuo.
O plágio é uma atitude indecente e imoral, combatida com afinco, por investigadores sérios, e o acto praticado, para além de consubstanciar uma fraude e ser criminalmente punível, é vergonhoso e mostra uma profunda desonestidade intelectual.
O trabalho árduo de fazer um doutoramento não deve ser manchado por atitudes de jovem liceal com pressa em entregar um trabalho, e que não se incomoda com a nota, desde que seja suficiente para passar de ano.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Três sonhos e não eram de Natal

Na mesma semana tive três sonhos estranhos: num relatava o próprio sonho, que ia acontecendo um segundo antes da minha voz o descrever. Via-me em pano de fundo em cima à esquerda, com uma nuvem à volta, como aquelas fotografias de casamentos dos anos oitenta e noventa em que os noivos, ou um convidado especial, aparecem emoldurados por um coração de fumo colorido. Concluo que os ecrãs têm, de facto, um grande impacto na nossa cabeça: o meu sonho era formatado para ser visto num ecrã, não para ser visto ponto. Nem para ser lido.
Havia nele, no sonho, um triplo estar: eu estava no acontecimento, no sonho em si que não sei qual era; era a relatora do acontecimento, e eu outra vez a ver-me relatar. Bem, ainda havia eu a dormir, suponho.


No outro sonho, também havia dois eus e um deles reclamava com o outro pois não prestara atenção ao que sonhara. Então, coisa inusitada, o primeiro eu, qual Alfredo projeccionista, passava o sonho outra vez, dizendo com voz compreensiva e de perdão que estava bem, que tivesse calma que já o ia ver outra vez...
A recordação da acção deste sonho em concreto é tão precisa como a do primeiro: zero!

O último foi um desassossego e o único do qual me lembro da acção: os piercings do José Luís Peixoto falavam comigo todos ao mesmo tempo. Eu entrava no comboio da estação do Rossio e alcançava um Destak para me entreter na leitura das notícias que já tinham sido, pois era quase noite. O José Luís sentava-se em frente a mim e adormecia ainda no túnel do Rossio. Durante aqueles minutos na escuridão do túnel lia e ouvia um varrer de campo, como um rádio mal sintonizado, e quando o comboio desembocava em Campolide percebia que os piercings se mexiam transformando-lhe a cara em caretas ora cómicas ora assustadoras e o vago e indefinido barulho que ouvia eram as suas vozes. Fiquei estupefacta e cheia de medo até que um deles falou mais alto e pediu aos outros para se calarem. O medo passou a fascínio enquanto me sentia ridícula por olhar fixamente um homem a dormir. De boca aberta. O piercing disse que era o mais velho e perguntou-me se o entendia. Vi-me a abanar a cabeça afirmativamente e ele explicou que fazia aquela pergunta pois era português e nem toda a gente com quem já tinha falado falava a língua.
- Ele não acorda? – perguntei eu.
A resposta a esta pergunta foi um autêntico carrossel de movimento em que todos pareciam dar cambalhotas voltando a desfigurar-lhe o rosto, ou seja, um categórico não.
- Já falaram com outras pessoas? – perguntei eu evitando qualquer pronome pois não sabia como se tratavam os piercings, se por tu se por você.
O espanto não podia ser maior quando o piercing me disse que me deixasse de perguntas pois ele tinha uma coisa urgente para me dizer:
- Ajuda-nos a fugir...
Olhei o jornal meio amarrotado, de soslaio apreendi com o olhar um casal de namorados e um homem já entradote na idade, nos bancos do lado oposto àquele em que eu ia. O homem lia A Bola e os namorados liam-se um ao outro sem darem pela presença alheia. Não sei para que olhei para as pessoas, talvez para me certificar que não ia sozinha, que aquilo não era uma alucinação. Se eu tivesse sabido que era um sonho..., mas não sabia.
- Tens que nos ajudar a fugir – voltou a dizer o piercing.
- Mas como?
- Sei lá... pensa! Estamos aqui há uma eternidade, eu então já perdi a conta ao tempo e... – vendo a minha cara alucinada, talvez o esbugalhar dos meus olhos, o piercing enveredou por um discurso mais abrasivo – Escuta mulher: não estás a ter visões! Sou um piercing falador, aliás, somos piercings faladores! Entre estes que por aqui andam há quem fale outras línguas e todos te poderíamos contar estórias de fazer chorar as pedras da calçada, mas não temos tempo. Diz-lhe que vamos enferrujar, diz-lhe que ele vai apodrecer, diz-lhe o que queiras, faz o que queiras, mas ajuda-nos!
O comboio parou em Santa Cruz, o José Luís deu um salto no banco estremunhado, viu-me debruçada sobre ele, levantou-se e, antes de sair do comboio, disse-me, à laia de despedida e com cara de poucos amigos:
- Estavas a dizer algum segredo aos meus piercings?
Abriu-me os olhos e saiu. E eu acordei. No sofá da sala.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Dia do Livro, dia de muitas coisas, dia de tudo

Hoje é Dia do Livro. Quantas vezes nos esquecemos que é também Dia dos Direitos de Autor... sem eles não haveria livros...
A iniciativa é da UNESCO e celebrada por todo o mundo.
Ao contrário do que tanta vez se diz, lê-se cada vez mais e o livro é uma espécie de sapato, sem o qual nos sentimos desconfortáveis e primitivos. Pode ser uma bota, uma sandália, um ténis, uma soca, uma sapatilha, o que for, mas faz-nos falta e sem ele não estamos completos.
O Dia do Livro é como o Dia do Pai, da Mãe ou o dia de Natal, é sempre e quando quisermos. Porquê 23 de Abril? A 23 de Abril morreram Cervantes e Shakespeare, e da Catalunha, onde foram dados os primeiros passos desta celebração, rapidamente se expandiu e se tornou oficial. Assim, celebra-se hoje o mundo, o passado, o presente e o futuro. Celebra-se a memória.

Na próxima terça feira vou estar com cinco jovens escritores chilenos - Gonzalo Garcés, Andrea Jeftanovic, Marcelo Leonart, Juan Pablo Meneses e Pablo Torche – cujo percurso tem sido semelhante e fazem a minha delícia e inveja. Um deles afirma que a escrita tem que reflectir a rua, e eu leio nesta afirmação que tem que retratar a vida, a vida que pulula nas ruas, as gentes, os anonimatos que mais não são do que a repetição de qualquer um de nós, gestos, comportamentos, reacções, palavras, sentimentos, estares, com as diferenças, poucas, que caracterizam as pessoas. Ele diz que nos últimos dez anos não tem feito mais nada a não ser viajar e escrever, escrever e viajar. E eu sinto inveja dele. Sinto que ali, naquelas palavras, está a minha essência perdida numa vida cujos contornos se perfilaram noutros caminhos.

Hoje é Dia do Livro e no Dia do Livro recebi (finalmente!) uma crítica a um trabalho meu: negativa! Pelo menos deram-se ao trabalho de me explicar porquê: até aqui recebi respostas a dizer que o plano editorial estava preenchido nos próximos seis anos (é verdade, eu guardo esta preciosidade...). A crítica é construtiva, bem feita, não desdenhosa e feita por mãos e olhos profissionais.
Continuo sempre desconfiada que os meus amigos são os maiores mentirosos do mundo ao incentivarem-me. Quando replico que não escrevo mal mas falta-me uma qualquer chama que ainda não se acendeu, argumentam que está acesa mas ainda não foi vista. Vai dar ao mesmo.

A dor de dentes inacreditável que me perseguiu desde o fim de semana passado era presságio de qualquer coisa e agora já sei do quê. Mas sobre ela falarei em capítulo dental. Ou dentário. Ou cariado, como as minhas perspectivas.

A solução: Benjamim Malaussène!

Ontem ouvi que mais alguém foi ilibado dum caso de corrupção activa ou qualquer coisa do género. Para Julho está marcada a leitura da sentença do Caso Casa Pia, que dura há mais de cinco anos. Pelo caminho vão nascendo como cogumelos outros casos do género que, talvez por causa da seca (?!), vão morrendo sem grande novidade.
A bem da verdade isto tem imensas semelhanças com a forma como vemos o Iraque: é mais bomba menos bomba, mais terrorista suicida menos terrorista suicida, um mercado arrasado, mais vinte ou trinta mortes, que nem sabemos quem são pois, agravado ao facto de ser mais do mesmo, aquela gente tem nomes impronunciáveis e ninguém quer saber.
Nos nossos tribunais o dinheiro que se gasta, o tempo que se perde, o papel que se usa, os computadores que se utilizam, os afastamentos do trabalho que se exigem, os falatórios que se proporcionam, as dúvidas que se criam, sei lá, tanta coisa... tudo seria resolvido se lessem Daniel Pennac e arranjassem um Benjamin Malaussène, cuja ocupação daria imenso jeito e resolveria himalaias de problemas.
O Sr. Benjamim Malaussène é... bode expiatório.
Não haverá a possibilidade de se criar este cargo e sempre que acontecer qualquer coisa chama-se esta, ou estas pessoas, e eles assumem as responsabilidades, com uma poupança universal que será decerto aplaudida?
Se assim for a Justiça mete prego a fundo na resolução de tantos casos que, como se vê, dão um trabalho desgraçado para se concluir sobre a inocência dos pobres coitados!
Com a contratação dum bode expiatório a Justiça passaria a ser rápida, os culpados seriam apontados e encarcerados num ápice com a consequente sensação de segurança e confiança para o cidadão! Foram presos, os malandros! Diremos nós muito mais sossegados. Já têm o que merecem, estes meliantes! Suspiraremos nós, cidadãos exemplares.
Além disso, o investimento seria baixo pois só receberiam enquanto estivessem na fila até serem chamados a exercer a sua função; assim que fossem presos (Bem feita!) deixavam de receber! É claro que esse valor seria transferido para outro que, entretanto, tomaria o lugar do anterior bode expiatório; mas não me vou adiantar pois acho que isso deve ser discutido pela Ordem dos Bodes Expiatórios ou pelos Sindicatos na área respectiva, cujo trabalho está muito facilitado pois não haverá grandes problemas com férias, higiene ou segurança no trabalho ou faltas injustificadas pois prevê-se que a fila, ao contrário da essência da maioria das filas, ande muito depressa.
Por outro lado, tenho a convicção que não faltarão candidatos para a função: ganham bem nos primeiros dias e a seguir vão para um estabelecimento prisional, mas com comida, bebida e roupa lavada, com tempo para se dedicarem a imensas actividades (ler, por exemplo!) que cá fora não lhes eram permitidas!
Já se pagam tantos subsídios para não se fazer nada, porque não avançar por este caminho? Continuávamos a pagar mas estávamos muito mais tranquilos, nem se compara, e os trapaças sempre podiam ir cultivando umas couves na prisão e, melhor ainda, inscreviam-se todos no Programa Operacional do Potencial Humano, vulgo POPH, ou nas Novas Oportunidades e assim, quando terminasse de cumprir a pena podiam candidatar-se de novo a bode expiatório mas, desta feita, para crimes onde fossem necessárias mais habilitações.
Pergunto-me porque é que nunca ninguém pensou nisto?

Judite de Sousa versus Herman José

Ontem vi a entrevista que a Judite de Sousa fez ao Herman José. Contra factos não há argumentos: o homem é uma referência do humor em Portugal, com bonecos criados ao longo de décadas que ficarão para sempre no nosso imaginário. Sempre lhe reconheci uma cultura geral vasta, sempre lhe constatei um deambular por várias línguas onde se movimenta completamente à vontade, (quase) sempre gostei de o ouvir cantar.
A entrevista teve a particularidade de ser conduzida com a familiaridade que o Tu proporciona, uma vez que são conhecidos de longa data. E como conhecidos de longa data que são a Judite de Sousa devia saber, como eu, que nem sequer sou conhecida dele, que o Herman José usa as palavras com propriedade, ou seja, sabe o que está a dizer.
E assim, tornou-se imensamente ridículo quando ele afirmou ser cartesiano, afirmando que o seu nome do meio podia ser Descartes, Herman Descartes José (sic), a Judite de Sousa ter acrescentado, como uma miúda numa sala de aula desejosa de mostrar que sabia a lição, com o braço estendido para que a setôra a chamasse ao quadro, que o primeiro nome do Descartes era René, e sorrindo acrescentou, como lhe isso lhe conferisse créditos, isso sei eu bem... (sic)
O Herman ficou uns décimos de segundo calado a olhar para ela, deu uma gargalhada e continuou a falar de forma a fazer esquecer o ridículo da situação.
Os segundos de silêncio, foram um silêncio de estupefacção para ele onde se lhe podia adivinhar o pensamento: E ela achava que eu não sabia...? E isso, neste contexto interessa para quê...? Perceberá ela que se eu tivesse dito René podia ser confundido com outro qualquer René, por exemplo o do ‘Allo, ‘Allo!? E ainda: Porque terá ficado ela tão contente de dar a conhecer aos portugueses que sabia que o Descartes se chamava René...?
Estas interrogações assolaram-me... Foi como se a Judite de Sousa se tivesse posto em pontas e tivesse feito um plié, esperando ganhar o prémio de sabichona.
Esquisito.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Em I

Inicio integralmente a invenção
Irreverente ideia identificada
Ideologia idolatrada imbuída de inconvenientes
Indignam-me impropérios iluminados
Iguais a idiomas impenetráveis
Imito Ícaro, imagino o impossível
Isolo importantes implicações
Inactiva, incluo o indivíduo
Incorporo isto, irreversível ilha

Júlia querida

Júlia querida

Pedes-me que te fale das crises do séc. XIV, como um mal benéfico, mas duma forma invulgar. Cá vai o texto prometido.
O século XIV foi primorosamente recheado de crises. Supostamente, a abundância apenas se revelou nas fomes, nas pestes e nas guerras.
Parecendo ter sido um século negro, numa segunda análise, ou numa primeira mais aprofundada, verifica-se que assim não foi.
Se tivermos em conta que as guerras podem ser actos de amor e sendo este, normalmente, associado à cor branca bem como à abundância de sentimento, que exala por todos os poros, deixando o coração ora aos saltos, ora como morto, passando por espasmos não explicados por ciência alguma, privando as pessoas de sentirem necessidades básicas, como vontade de beber ou comer, sentindo falta de algo, que não pedaços de comida normal e tradicional, da que normalmente se serve à mesa e hoje em dia se come de talheres, mas na altura se comia à mão, logo, concluiremos que fome, não havia!
Se não havia fome, uma das causas possíveis da morte e logo associada às pestes, estas, são, na maioria dos casos, uma invenção que foi criando corpo ao longo dos séculos e desde o XIV até agora já lá vão seis completos, o que é muito tempo para se acumularem pormenores para se criar uma irrealidade tida, nos nossos dias, como verdade absoluta e que de facto, não é.
A palavra peste pode querer dizer muita coisa, porém, é universalmente aceite que é sinónimo de algo que se espalha com facilidade. Ora haverá sentimento mais solidário e contagiante que o amor, profundamente incutido nas guerras de que se falou no parágrafo anterior? Podemos então concluir que o amor bailava nos salões abertos dos castelos e ao ar livre que servia de tecto a camponeses e “citadinos” como uma peste, ou seja, como algo a que ninguém ficava imune.
As guerras: sobre elas já se disse, e repetiu, que eram – e continuam a ser –actos de amor. Matava-se por amor. Haverá modo mais nobre e superior de morrer do que por uma causa de amor? Nunca em tempo algum e muito menos no século XIV!
O ‘mal benéfico’ entronca com tudo o que se acabou de dizer: independentemente de, nas guerras e por amor, morrerem mais homens que mulheres, aqueles continuavam em vantagem numérica, constituindo pois um problema arranjar mulheres para todos os homens e assim, enquanto se tentava colmatar esta questão matando alguns dos pretensores, com o avançar do tempo e Renascimento a dentro, constatando-se que a questão não fora inteiramente resolvida, tornou-se necessário criar um sistema aberto de partilha do cerne de toda esta problemática e dinâmica: o amor.
E é assim que entramos no Renascimento e por ele caminhamos, acompanhados pela mais requintada prostituição que, ordeiramente, dividia as os dias e as horas pelos nobres guerreiros, saciados de matar para poderem usufruir de mais horas na companhia das requisitadas damas.
Havia, entretanto, alguns problemas com o abastecimento de víveres aos quartos onde proliferava o amor, mote, como já se disse, de todo este panorama. Porquê? Porque alguns camponeses tinham sido alvo da peste – do amor, se bem se recordam – e dirigiam-se para as cidades em busca de morrer ou matar, deixando os campos vazios e inabitados. Disto pode constituir exemplo, ainda hoje, o Alentejo.
Pareceu-me que querias brincar com alguém… espero ter acertado.
Recebe os meus beijos
Camila

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Os amores da minha vida

A minha vida tem muitos amores.
Desde logo o Kilimanjaro, um amor platónico, à distância, não correspondido como o são os grandes, os verdadeiros amores.
O mar, os desertos de areia, o riso, o longe, os sotaques, um ou outro planeta, navios e embarcações, palavras, o pai do meu filho, o sol, livros, muitos livros, a lua, as gargalhadas do meu filho, dar, música, o passado e o futuro, férias e algumas pessoas, fazem parte do meu universo de amores.
Um deles vai casar no sábado.
Soube da notícia sem poder dar asas à alegria: tenho a cara inchada da dor de dentes, quase nem pude falar. Sempre achei que o noivo era um poço de amor sem que verdadeiramente alguém tivesse alcance para se banhar nele. Estou feliz porque espero que ele atinja a calma que sempre o vi procurar, a entrega que tem para dar, a essência que tem para partilhar, numa divisão que se multiplica e não se esgota nunca.
Este homem grande e sorridente – mas que dá uns tabefes se certos brutos lhe aparecerem para frente – tem-me feito sentir em casa desde sempre na companhia dele. Quando está ausente delicia-me com o poder da escrita, da descrição, da envolvência do longe. Para mim é um fascínio. E esse fascínio ajudou-me na mudança de casa, ri comigo no cinema, discute autores e ideias, oferece-me livros, traz-me ventos de mudança permanentemente. Como se a minha vida tivesse uma janela sempre aberta por onde entra o sol quente e o vento libertador, à vez e em simultâneo em forma de Amigo.

Ó-lá! (entoação telefónica...)

Ó-lá! (entoação telefónica...)
Rapaz, tu és um rufia! E dos piores... Não te serves dos punhos, mas dos dedos enquanto veículo de descarga do que te vem de um qualquer órgão, do qual só há esse exemplar, e que se consubstancia numa mistura de coração e consciência, cuja residência deve ser ali p'ros lados da tua cabeça! Atiras pedradas e nem escolhes as pedras... tudo te serve: ora pensamentos alheios, ora próprios, reflexões, sentimentos, alvoroços, carinhos, preocupações,... e partes janelas e grades com a força duma tempestade, com a energia dum tornado, com a subtileza dum céu ao entardecer que de rosadíssimo passa a negro e nos aparece adjectivado como um ovo, estrelado e delicioso. Disse e reafirmo... és um rufia e dos piores: não foges! Ficas ali à espera de resposta, pronto a atacar novamente e usas nomes de pessoas, datas, feitos históricos, políticos, citações e, crime dos crimes - não duvido que um dia serás punido por tal acto - usas a poesia... Mais ainda, como num qualquer filme de ficção científica, entras na cabeça das pessoas e reordenas os gostos, as preferências, obrigas os comuns mortais a rirem-se quando assim o entendes, a chorarem com as tuas palavras que, como a mais pura heroína, faz brilhar os olhos de quem a espera ansiosamente e a quer tomar de vez não temendo overdoses... Oh, ser perigoso, que andas incólume por esse mundo a distribuir poesia desta forma, como se de uma nova forma de crack se trate, para me deixar agarrada... Não, não me desmintas, não te atrevas! Sem qualquer pudor, ages em diversas frentes... e atinges o teu alvo na língua minha pátria, buscando línguas nórdicas, caminhando pelo francês, avançando pelo espanhol, expondo o inglês... nada te pára... agora suspeito a verdade sobre a lua nova... és tu o ladrão daquela bola branca que volta e meia deixa de nos iluminar... deves roubá-la para a dar ao teu anjo... nem quero imaginar o que essa pobre não passará em tormentos ao lado duma pessoa como tu... sim, imagino-te a oferecer-lhe uma ramo de flores... mas o que terá ela que dar em troca... vejo-a transformada em coração, toda ela um enorme coração, para se te dar como forma de te retribuir, cavaleiro errante, principalmente depois dos teus comícios, de onde sais nu, depois de te teres dado a todos e a ninguém, e ela, a pobre que mesmo que não o seja, passará a sê-lo, pois vejo-a a dizer-te que quer ser o cachecol que te abrigará dos ventos frios, as luvas que te aquecerão as mãos, as botas que não deixarão o frio maltratar-te, o casaco que te aconchegará, que quer permanentemente abraçar-te a ti que, mesmo quando ela dorme sente-te a velar por ela... como te pagará ela a segurança que tu lhe demonstras, a confiança que lhe fazes nascer que, antevejo, soltas do teu íntimo como uma música através da qual ela avança como se fosse um grão de pólen que sabe que vai poisar no sitio certo... Mas tu, não contente, oh, insaciável!, não te ficas por ela... falas em lealdade de companheiros, em confiança, saudade de amigos... a todos tens presos e amarrados como um feixe de vime, não te esqueces de ninguém como um fiel de armazém tem o seu inventário sempre em ordem... Como um vagabundo, saltas de terra em terra, miscelânea de caminhos que transportas contigo e proteges do frio glacial com essa tua força de pessoa inteira, com os teus olhos humanistas, com o teu sorriso de miúdo, com a tua cabeça universal, com as tuas mãos audazes, com o teu sentido de justiça e o teu coração corajoso. Pedes-me ajuda, a mim, para te elucidar sobre questões deste nosso mundo que dizes não entender... como poderei algum dia, nesta vida ou com experiência acumulada de muitas, dizer-te o que não sabes, a ti, camponês que matas a fome com música e deliras com sons que em ti encontram sagrado refúgio... a ti, marinheiro, que procuras sempre navegar em águas do bem estar alheio e que tudo fazes para transformar as tempestades do alto mar em lagos lisos e sem perigo onde os outros possam navegar... a ti, pessoa insatisfeita, que procuras o verdadeiro conhecimento, não desprezando a possibilidade de o encontrares numa qualquer pedra de qualquer calçada e que te rebelas contra a imbecilidade... a ti, filho, que falas dos teus pais como a árvore que deu fruto e abençoado seja o que nasce e não renega a sua origem, antes pelo contrário, a ilumina sempre e sempre e sempre... a ti, ser social, que te insurges contra a miséria humana, nas suas mais variadas formas e que enobreces a igualdade entre as pessoas... a ti, amigo, que partilhas, que não esqueces, que dás, que ofereces... a ti, que pulsas inteiriço quando vês o mundo com os olhos de deus, suportado por uma asa que te leva com o invisível vento para dentro de ti próprio, para ressurgires renovado e em paz... a ti, enamorado, que quando escreves sobre o teu amor, nota-se um moldar diferente das letras, como se aparecessem mais devagar, como se sorrissem, na tentativa de prolongar a lembrança, principalmente quando estás longe dela, como o mergulhador lembra e quer o oxigénio puro, para o alimentar e sente-se apenas sobreviver com o ar artificial que lhe pesa nas costas... a ti, pai, que apesar de viveres com dúvidas e medos fazes da esperança uma força maior... Não, não te posso elucidar a ti, Idiota maior, dum mundo de idiotas em vias de extinção, espécimes raros. Se depender de mim, e eu trabalharei afincadamente nesse sentido, instituir-se-á um movimento a favor da preservação de gente como tu, animais irrequietos, rufias que agem na mentalidade instalada e cancerosa, guerreiros que buscam um graal tantas vezes deitado ao lixo por quem se arroga tudo saber e que se comprazem em escarnecer dos demais...
Recebe uma onda gigante de abraços e beijos
Camila

Em H

Humilde honra habitas a harmonia
Hidratas o hiato habilmente
Hesitas entre o Homem e a harpa
Hospedeira de hecatombes de hinos
Harém de humores
Hemisfério de halogénio
Herdeira de haveres
Hélice heróica
Hibrídas hierárquias
História hipotética

terça-feira, 20 de abril de 2010

Saúde Senhor…

Saúde Senhor…
Não me arrisco a dizer o nome pois posso enganar-me… Jota Ferreira ou Salvador Dali…? Que grande bigodaça e que ar de imortalidade aparece quando abrimos a página da internet com os teus quadros!
Não nego: fiquei agarrada ao primeiro, do lado esquerdo… para dizer a verdade, deve ser das poucas coisas que me faz ter um sentimento dúbio, para não dizer contraditório: as touradas. Vistas de longe… são actos bárbaros… ao perto, são momentos de emoção, de valentia, de coragem, de encontro entre um animal enorme e uma pessoa – normalmente um homem – que ali está em pé de igualdade, perante um dos bichos que mais admiro e que acho duma beleza extraordinária… um touro.
Não aprecio touradas à portuguesa, embora veja com alguma frequência… a minha irmã e o meu cunhado foram forcados e sou prima do que já foi o mais novo toureiro português, e que deixou a escola por incompatibilidade de horários com a escola normal…foi pena.
Gostei da tua apresentação na página da net e sensibilizou-me principalmente falares da tua avó! Ser mãe é ser-se abençoada, mas ser avó deve ser uma coisa inexplicável…é como ver realizar um sonho de criança, pois a boneca que alguém nos oferece, tem vida, mexe-se, surpreende-nos, faz aumentar o nosso amor de cada vez que está doente, ou nos dá uma alegria, cresce… ama-nos também… eu tenho um amor muito grande pelos meus avós e sempre que vou ao Alentejo, visito-os no cemitério. O meu filho acompanha-me e sem que eu algum dia lhe tivesse dito alguma coisa, beija as fotografias deles. Parece uma heresia, mas garanto-te que não é… eu rio-me sempre no cemitério, pois a minha avó escolheu o local para ser enterrada e fica mesmo a meio do cemitério, bem ao sol, que ela tanto adorava… e tenho lá uma tia que, por vezes, me acompanha nesta minha pequena peregrinação e diz sempre que o local foi mal escolhido, pois estão ali à torreira… farto-me de rir.
Compreendo a minha tia, mas compreendo melhor a escolha da minha avó.
Os meus avós foram pessoas muito importantes na minha vida e o meu avô, que aprendeu a ler em adulto, era das pessoas mais cultas e ajuizadas que conheci. A minha avó nunca aprendeu a ler, mas guardava livros como, por exemplo, uma velha edição do Grande Industrial, que nós lhe líamos e ela pedia para passarmos as passagens onde se falava doutra coisa que não fossem os dois romances paralelos que a história contém… morreu estava eu em Bruxelas e não assisti ao funeral. Ninguém me disse, pois estava grávida de cinco meses e não quiseram assustar-me, sabendo da ligação que eu tinha com ela. Soube na semana seguinte e, quase em simultâneo, morreu o meu cão, que me fazia companhia e era meu amigo e com quem eu diariamente falava e tinha uma secreta esperança que ele me respondesse… não te consigo explicar… e eu dei entrada no hospital com sintomas de aborto. Depois sonhava que o Pepe estava com os avós e com certeza estaria bem – até falava com eles o que nunca fizera comigo – e concentrei-me na enorme ervilha que tinha na barriga e em como um dia lhe iria contar quem tinham sido os meus avós.
Bem…peço imensa desculpa…desviei-me do assunto principal: os teus quadros. Não preciso de dizer que te invejo: tenho sempre inveja de quem faz coisas que eu seria incapaz de fazer e como tenho dois pintores na família, uma já com nome no mercado e também representada em várias colecções particulares… estou habituada a que brinquem comigo e me chamem ignorante com todas as letras. Numa ocasião, ela ganhou um prémio cá em Lisboa – vivem em Gaia – e convidou-nos para assistirmos à entrega do prémio, numa sessão solene, tipo comunhão… e nós lá fomos e ficámos ao lado do Rui, o marido dela. Nós simplesmente não sabíamos qual era o quadro da minha prima, pois havia vários premiados e eu olhei para uma tela negra com riscos dourados e disse ao Rui que aquele me metia medo e não gostava dele e, já imaginas, era o quadro dela, o que tinha ganho o primeiro prémio, foi uma vergonha. O meu marido aprecia pintura e por isso vamos a exposições. Eu, nem por isso… apenas me entusiasmei quando o meu filho tentou fazer uma cópia do Guernica, depois de ter visto o original em Madrid…será que o garoto vai ser um novo Picasso…? E então, foi como nos desenhos animados…os meus olhos transformaram-se em cifrões… desculpa, tenho que me rir…
Fica-te com as minhas gargalhadas e recebe um abraço
Camila

A rapariga que não gostava de livros com as capas dobradas - XV

Quando acordou olhou pela janelas e viu nuvens, nada mais. A hospedeira deu conta que tinha acordado e, com um sorriso enorme, chegou-se a ela e perguntou-lhe se queria comer alguma coisa, pois já tinham servido uma primeira refeição mas ela estava a dormir e não a incomodaram. - Si, por favor.
- Y para beber, ¿quieres algo?
- Agua.
A hospedeira voltou com um tabuleiro com pequenos espaços ocupados por coisas com ar apetitoso.
- Aquí tines una sopa caliente, que te va a gustar.
- Gracias.
O tabuleiro só tinha em comum o nome com os tabuleiros a que estava habituada. Os recipientes eram de louça e continham, para além da sopa, um pequeno prato com carne assada e puré de maçã e outro com um bolo. Havia ainda um pão de reduzidas dimensões, manteiga, um triângulo de queijo e um chocolate. Olhou para o lado de soslaio, viu que o filho dormia e sentindo uma fome imensa atacou os pratos com vagar, saboreando cada coisa com calma. A refeição, apesar de parca, deu-lhe um ânimo de tal forma que chamou a hospedeira e pediu vinho, que lhe foi trazido de imediato. Terminou de comer, guardou o chocolate, pediu um café e teve pena de não puder fumar um cigarro. Levantou-se e foi sentar-se ao lado do filho que, como ela, viajava sozinho numa fila.
- Olá Luís Vargas Rivera.
O filho abriu os olhos, sorriu-lhe, endireitou-se, espreguiçou-se e deu-lhe um beijo.
- Olá Rosa Maria Gamarra de la Torre
Falaram baixo e riram-se os dois do seu segredo.
- Dormiste bem mãe? Explicas-me porque entraste aqui com cara de enterro?
- Quando saí da casa de banho... o pai ia a passar e...
- O quê? – os olhos de Paulo abriram-se desmesuradamente.
- Não me viu por uma unha negra. Pensei que não conseguia entrar no avião, pensei que desmaiava, sei lá o que pensei... ai que susto tão grande...
- Mas como? Ele disse-me ao telefone que já ia p’ró hotel
- Disse-te, disse-te, fez uma conversa natural, não te disse que ia naquele preciso momento e ali andava ele, com um homem do aeroporto, à procura das malas.
- Mas tens a certeza que não te viu, não é?
- Claro! Se me tivesse visto tinha vindo ter comigo.
- Mas que cena mãe, foi até à última... olha, lembrei-me duma coisa que podia arranjar problemas mas já tratei do assunto.
- Outra coisa? O quê?
- Temos que controlar as horas porque vamos estar 12 horas aqui metidos no avião, certo? Então eu tive uma ideia: falei p’ró David e disse-lhe...
- Ai meu Deus, não tínhamos combinado não dizer nada a ninguém?
- Mãe, mas íamos ter problemas e eu já resolvi tudo, escuta-me. Falei p’ró David por sms enquanto estava na fila, e acredita mãe o David nem morto lhe arrancam uma palavra.
- Sim, e disseste-lhe o quê?
- Disse que precisava dum favor e que não podia ser incomodado durante um dia inteiro e por isso ia reencaminhar o meu telefone p’ro telefone dele. Se o pai ligasse, e é assim, ele sabe das minhas cenas com o pai por isso não estranhou, ele que dissesse que eu tinha lá estado e me tinha esquecido do telefone. Amanhã retiro o reencaminhamento e falo com o pai, o que achas?
- Está bem, foi bem pensado. Quem é o David?
- É um grande amigo mãe, mesmo à séria! Confiamos tudo um ao outro. E acredita que ele não vai fazer perguntas.
Sentiu que o nervoso miudinho regressava pois, se não tinha pensado naquilo, se calhar havia outras coisas em que não pensara e que podiam ser graves. Isto para não falar que estava em liberdade condicional, tinha raptado o filho e fugido do país com nomes e passaportes falsos. Estes pensamentos tomaram conta dela de tal forma que a angústia lhe provocou dores de estômago.
- Mãe, dói-te o estômago porque não comias à horas e agora comeste e isso acontece. ‘tá tudo bem, ‘tá tudo bem...
Fez um esboço de sorriso para mostrar ao filho que sim, que estava tudo bem e contou-lhe da carta que tinha ido pôr em casa do pai, antes de apanharem o Lusitânia.
- Porque não me contaste no comboio?
- Esqueci-me, é tanta coisa que me esqueci, mas agora sabes, sinto-me muito melhor e a verdade é que estamos a sobrevoar o Atlântico por isso, já nada importa. Dentro de poucas horas vamos conhecer o Sr. Manuel Vega, que algo me diz é o motorista deles!
- Motorista? Achas que eles têm motorista?
- Sei lá filho, já não sei nada...
- Mãe, de repente tive uma ideia- disse o rapaz com os olhos a brilhar - E se esse tal Manuel Vega é o Robin ou o avô? Afinal, nós temos outros nomes e faria todo o sentido, não achas?
Falavam baixo, em sussurros e a mãe riu-se com a ideia.
- Sim, pode ser. O avô João passa a ser o Avô Manuel e a avó, como se chamará?
- Avó Rosita!
Riram-se ambos e ela sentia-se literalmente nas nuvens, o nervoso miudinho tinha passado, parecia que a altura a que iam tinha feito dissipar as preocupações e a angústia, que não a abandonara desde que saíra da prisão e constatara que não havia quem quer que fosse à sua espera.
- Então mãe, é agora que me vais contar como foi?
- Que queres que te diga... não me envolvi em zaragatas, não fui maltratada, não fui violada, nada disso. Apenas tinha dores incalculáveis de saudades de ti, da Tia Teresa, dos avós e...
- ... e do pai, não é mãe?
- Sim e do pai, mas...
- Esquece o pai, esquece-o, pensa no Santiago e na Elena que vamos encontrar dentro de... – e olhando para o relógio acrescentou - ... de seis horas! Tenho tantas saudades do avô João...
- Vamos matá-las, já falta pouco...
- Mas vá lá mãe, conta como foi, tu prometeste...
A mãe desligou a pequena televisão encaixada no banco da frente que passava um filme com actores cujas caras ela não reconheceu. Virou-se para o filho e descreveu-lhe aqueles três anos tentando ser equilibrada, não dando ênfase ao suplício que vivera, mas também sem aligeirar as angústias e os medos, e os vários momentos delicados que passara. Falou das guardas, das outras reclusas, dos livros, da inveja que sentia daquelas que trabalhavam no horto da prisão, que andavam com a cara bronzeada e podiam encarar o sol de frente, encadeando-se com ele, molhando-se à chuva, sentindo o vento na cara e mexendo na terra. Contou como em Tires trabalhara na lavandaria e já podia andar em espaços ao ar livre e como se fartara de chorar a primeira vez que isso acontecera. Falou-lhe de Damiana e de Cremilde, contando em pormenor as descrições de São Tomé. Ouviu o filho rir com as historietas da Pinta, da Niña e da Santa Maria e com os ditos das ciganas. Contou-lhe os Natais e como as prisioneiras mudam naquela altura do ano a quem ninguém é imune, como se chorava na noite de Natal, em que eram deitadas lágrimas diferentes das dos outros dias, mais tristes e carregadas de maior solidão. Contou-lhe como os sorrisos no Natal eram mais verdadeiros e elas se aproximavam mais umas das outras, fingindo todas interiormente, que cada uma é o familiar com que queriam na verdade passar a Consoada. Deixou as lágrimas correr livremente e descreveu as conversas onde os filhos tinham lugar de protagonista e como se sentiam mais próximas nesses momentos. Fez o rapaz chorar quando ouviu a descrição da raiva que sentia ao ver as outras receber cartas e como ela mergulhava na leitura de qualquer livro tentando convencer-se que aquilo era a sua carta, que alguém tinha escrito aquele livro para si e só para si.
Foram interrompidos pela hospedeira que lhes perguntou se queriam comer alguma coisa e Paulo pediu um chocolate e ela um café.
- Tenho que ler o tal livro, O Ingénuo, para ver se descubro alguma coisa...
- Deixa isso mãe... não te canses
- Como assim? Tenho que o ler! – e disse isto e foi-se sentar no seu lugar abrindo o livro. Rapidamente se sentiu ensonada com as andanças do Hurão e pôs o livro de lado, indo sentar-se novamente ao lado de Paulo, encostada a ele, em silêncio a saboreá-lo, como se tentasse recuperar anos perdidos absorvendo-lhe o cheiro.
Acabou por adormecer novamente e sonhou com o reencontro com Teresa e os pais. Foi acordada pelo aviso a pedir para porem os cintos. Apercebendo-se que estavam a chegar a Lima sentiu o coração na boca, sentando-se no seu lugar e olhando o filho em silêncio. O olhar era-lhe retribuído por Paulo, como a dizer-lhe que tivesse calma; era um olhar sorridente.
Aterraram no Aeroporto Internacional Jorge Chávez cansados mas com uma ansiedade enorme. Estavam no Peru.
Quando finalmente saíram do aeroporto e conheceram Manuel Vega, que os esperava de acordo com as instruções da irmã, este fez-lhes cumprimentos como se fossem velhos conhecidos; tentou corresponder mas não conseguiu pensar em mais nada senão na sua família que abraçaria rapidamente. Pensava ela.
Com receio que o pai tivesse tentado falar-lhes durante o voo, telefonaram-lhe, com uma voz calma e natural, e ouviram-no recomendar que o filho não se voltasse a esquecer do telefone em casa do David: o esquema tinha funcionado. Mas a seguir ouviram-no perguntar porque raio estavam a ligar às cinco da manhã, pois eram exactamente essas horas em Portugal! Paulo explicou que percebera que se tinha esquecido do telefone e que o fora buscar; acabava de sair da casa do David e sentiu obrigação de ligar imediatamente para o pai, sabendo que estaria levantado, precisamente por causa da diferença horária. O rapaz ainda conseguiu calar o pai, dizendo-lhe que era preso por ter cão e por não ter, pois se não lhe ligava, o pai zangava-se e agora que ele lhe falava, zangava-se na mesma.
- Em que ficamos pai?
A voz era séria mas o ar era brincalhão. Com despedidas e juras de se portar bem e de telefonar se precisasse de alguma coisa, finalmente lá desligaram. Mãe e filho ficaram a olhar um para o outro a pensarem em simultâneo que se o pai os soubesse em Lima onde acabavam de entrar com passaportes falsos lhe daria um ataque e combinaram deixar o relógio do Paulinho com a hora de Lisboa para ligarem ao pai de vez em quando, a horas decentes. Para isso marcaram um lembrete no telemóvel que os ajudaria a não se esquecer dos telefonemas nos próximos dias e esperavam estar em casa dois ou três dias depois do pai regressar.
Manuel Vega dirigi-os a um jipe enorme com ar de ter participado na segunda guerra mundial e perante o olhar de Paulinho que dizia que não andariam dois quilómetros naquela sucata, Manuel sorriu e pediu confiança no carro, num espanhol da América do Sul, avisando que o hábito não faz o frade e informou que iriam andar cerca de trezentos quilómetros para nordeste em direcção a Huánuco.
- Trezentos quilómetros? Meu Deus...
O desespero da mãe contrastava mais uma vez com a calma do filho e foi Paulo que a ajudou a subir para o carro enquanto cantava qualquer coisa desconhecida para a mãe, mas que mostrava a alegria e excitação do rapaz por ir onde nunca fora nem sonhara ir.
Chegaram a Huánuco mais mortos que vivos depois duma viagem barulhenta e tormentosa durante a qual Manuel Vega pouco ou nada disse contrastando com a familiaridade com que os recebera. Optaram por não lhe fazer perguntas pois não sabiam o que a família lhe teria dito sobre eles e, se bem que as perguntas fossem muitas e a vontade de as fazer enorme, acharam por bem ouvir o que Manuel lhes dissesse mas não perguntarem nada, embora ardessem por dentro de ansiedade. Questionaram-se por diversas vezes se a família morava em Huánuco e perceberam que a resposta era negativa quando se dirigiram-se para o Aeroporto de Huánuco e Manuel os encaminhou para uma pequena avioneta, onde mãe e filho esperaram sentados, oscilando entre o deslumbre do encantamento da situação e toda a aventura que viviam, e com uma certa apreensão sobre o lugar onde estavam e para onde iriam. Ela levara consigo as cartas da irmã e lia repetidamente... com um xis na janela, na tentativa de se acalmar. Afinal, onde morava a sua irmã?

Leiria

Tenho um dia inteiro livre pela frente em Leiria pois o jogo é só às sete da tarde.
Antes de sair do hotel pergunto onde é a Biblioteca Pública. A resposta é pronta e imediata, mostrando que a recepcionista sabe perfeitamente onde fica.
Caminho até lá e vou perguntando a diversas pessoas para apurar da envolvência de cada um com aquele espaço. Cinco perguntas, cinco respostas iguais o que me leva a pensar que a Biblioteca faz parte da vida da cidade.
Vou ao Turismo, frente a uma agradável Praça de Goa, Damão e Diu, (na imagem) com a água como elemento central que não se realça pois ainda não parou de chover; dão-me um mapa e verifico na legenda que o número 1 corresponde à Biblioteca!
Porém, juntamente com o Moinho de Papel do Lis (que nome lindo), a Igreja do Covento de Santo Agostinho, o Mercado e os Jardins e Miradouros, não tem indicação do telefone, ao contrário do resto das igrejas, hotéis, agências de viagens, castelos, paços, museus (o Museu do Sporting, na lista, vem antes do Museu da Imagem em Movimento e do Núcleo Museológico dos Bombeiros [e nem se menciona o Museu Escolar, mesmo ficando fora do mapa, devia estar lá]). No fim da lista há ainda um grupo de telefones úteis, onde a Biblioteca não consta e, pormenor, consta o Mercado, mas... sem telefone...
O que podemos concluir? Que não tinham o telefone do Mercado? Que se esqueceram? Que não é útil? (Então o que faz aqui?) Que é útil mas que se espera que ninguém precise dele...?
Não há, igualmente, qualquer indicação de horários, nem da Biblioteca nem de nada.

Fiquei com pena de não estar em Leiria dia 24 de Abril: de tarde, no Teatro Miguel Franco vai haver um workshop de ... Barulheira!
Não fazendo a mais pálida ideia do que seja imagino um acontecimento diferente e se for qualquer coisa terminada em ... quico que não seja anárquico, seria uma grande decepção.

Andando pelas ruas descubro duas livrarias, sem grande atractivo e, como o vício é maior que tudo, pergunto pela Bertrand. Informam-me que fica num centro comercial novo e que ir até lá só de carro pois os autocarros que fazem aquele percurso só funcionam ao sábado de manhã (!?) e são quase duas da tarde. Não desisto e ponho-me a caminho a pé, mas a chuva corta-me os passos, forte, intensa e inibidora.
Páro algures a meio, bebo um café e como meia empada (a dor de dentes não me deixa comer a outra meia) e o almoço está feito.
Espero que a chuva passe para voltar ao hotel: preciso de medicamentos, para além dum incómodo (que daria muitos dias baixa a algumas pessoas que conheço) que me dá uma bota em contacto com a meia (odeio meias...grrrr) me fez uma ferida no pé. As botas devem ter-se ressentido da volta: hotel, ruas estreitas, mercado ao ar livre, biblioteca, Bertrand (só meio caminho), para além dos dias antes em Coimbra onde não calcei outra coisa.
Verifico que há quase cinco horas que estou a andar. A chuva não passa, aprisionando-me num café com vista para uma casa amarela parcialmente tapada por um tapume de obras. Os leirienses estão recolhidos para o almoço de sábado. Nesta pequena prisão colectiva e temporária começo a ouvir os outros, os poucos que ali estão, dizendo que se vão embora. Também eu, quero lá saber da chuva.
Passa gente com chapéus de chuva, todos com ar de turista. O meu descansa no quarto do hotel, em direcção do qual me aventuro com água a bater-me na cara. As dores falam mais alto e passo o resto da tarde no quarto.

Hotel São Luís

Chego a Leiria ao fim do dia com a promessa de ir ver o jogo do Duarte. São quase oito da noite o jogo é às nove, vou ao hotel deixar a mala e vou para o pavilhão. Enquanto ia pensando nisto o táxi pára à porta do hotel. Pago e olho para a porta: só vejo andaimes. Digo ao táxista que não é ali e ele afirma que sim, indo-se embora.
Entro e vejo um homem sentado a uma pequena mesa com um telefone, uma fotocopiadora e um armário ao lado, onde estão uma cafeteira e um ferro de engomar. O resto é vazio, em obras, com pó, muito pó. Ouve-se música indiana, da nacionalidade do recepcionista.
Pergunto-lhe se o hotel está mesmo a funcionar, que fiz uma reserva mas ninguém me disse que estava em obras. O homem diz-me que não há problema que os quartos foram todos remodelados e só falta a recepção, que está quase.
Sem grande vontade de ali ficar, mas com pressa, lá aceito a chave e subo ao terceiro andar. Verifico que o quarto não tem qualquer semelhança com a última vez que lá estive e não há vestígios da ferrugem na banheira, nem da própria banheira, pois agora só há duche, que para mim dá na mesma.
Largo a maleta, peço um táxi a vou a correr para o Pavilhão da Gândara ver a equipa do meu filho perder e ele ser expulso duas vezes temporariamente e uma terceira de vez. Paciência, amanhã será melhor.

Três a um...

Dão-me boleia até Coimbra A onde, a correr, apanho um Comboio para Coimbra B. A corrida não foi estafante pois tive espaço para pensar agora vou incomodar toda a gente com a maleta de viagem.
Quando ponho o pé no primeiro degrau ponho os olhos também nos passageiros que já estão no interior do comboio: parecia um congresso de malas ou, mais modernamente, uma mob de malas. Todos tinham uma e eram na sua maioria maiores que a minha. Mentalmente chamo-me nomes feios: Estou em Coimbra! Esta malta vai para casa passar o fim de semana...
Chegamos a Coimbra B e na saída com as ditas maletas a quererem ultrapassar-se umas às outras, um rapaz novinho diz-me:
- É pá desculpa.
Fui nitidamente confundida com uma aluna o que me encheu o ego.
Como a estação está em obras e há tapumes em todo o lado o que aumenta a distância entre os percursos e baralha tudo, vou à bilheteira perguntar em que linha é o comboio para Leiria.
- É na linha sete minha senhora.
Raio do homem! Qual minha senhora qual quê? Resmungo-lhe um agradecimento e caminho em direcção à linha sete.
Acendo um cigarro e fico ali a ver as pessoas passar – quase todas com malas – ou seja, fico a exercer um dos meus desportos favoritos: observar quem passa.
De repente, alguém corre – a puxar uma mala! – e quando passa por mim choca com a minha própria mala derrubando-a, e que num ápice levanta, continua a correr enquanto grita:
- Desculpe sêtora!
Por momentos deixei o pensamento em silêncio. Estava dois a um...
Entro no comboio e sento-me à janela, pensando quantas estações serão até Leiria. Avisto o revisor que se encaminha na minha direcção:
- Boa tarde, por favor, daqui a Leiria são quantas estações?
- Então... deixe-me ver... Alfornelos, Verride, Louriçal, Monte Real e Leiria... são cinco.
- Obrigada.
- De nada minha senhora.
Bolas! Três a um... não há nada a fazer...

Órgão e violino

Depois dum dia de trabalhos intensivo, com muitos oradores e todos interessantes, com comunicações a pedirem perguntas e comentários, fomos levados até à capela de S. Miguel, a capela da Universidade de Coimbra.
Lá fora troveja. Lá dentro santos, anjos, virtudes e meia dúzia de pessoas ouvem e regalam-se com o som duma belíssima peça barroca, o órgão da capela, acompanhado ao violino. Sinto-me pairar com os assopros de tubos e palhetas enquanto o órgão se depura na sua essência e o violino chegava ao mais íntimo de nós, como uma TAC.
A música é qualquer coisa inexplicável e a forma como toma conta de nós é pura. Queremos ficar apenas a ouvir mas não se consegue atingir essa exterioridade porque a música faz-nos pertencer àquele momento.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Chorar e vender lenços

Vou começar pelo fim, na minha ordem de intenções que tinha um plano que, como geralmente acontece ao futuro dos planos, vai por água abaixo. Com tanta coisa que tinha para contar vou directa ao vulcão.
No sábado e agora mesmo vi duas reportagens iguaizinhas, igualitas, gémeas! Hoje na TVi (acho eu) e no sábado na CNN. O centro das reportagens era a atitude dos táxistas face ao fecho dos aeroportos: um táxista inglês dizia God bless Iceland e um táxista português (gordo e barrigudo e isto não é nada contra os gordos porque eu própria sou gorda) afirmava que alguns táxistas lhe estavam a tirar o pão... e logo a ele, ali na fila, esperando talvez que os turistas caíssem de paraquedas em cima do seu táxi... De repente achei que era islandesa, daquelas que não percebem nada de português...
Entrevistaram também um homem brasileiro que afirmou estar a levar pessoas a Madrid ou onde lhe pedissem em carro particular... é claro que também foi condenado pelo barrigudo...
Em tempos de crise (esta é uma das minhas frases feitas favoritas) as pessoas dividem-se em dois grupos: os que choram e os que aproveitam para vender lenços. Pergunto eu, qual islandesa que não percebe nem o nome Camões: não devíamos estar todos a querer vender lenços...? Mas há mais: aparentemente, e é só aparentemente pois não quero chamar mentiroso seja a quem for, as empresas de aluguer de automóveis já estão a ter prejuízos tramados, enormes, volumosos, de acordo com as palavras de alguém do sector que, com cara de caso, ou melhor, com cara de drama, afirmou que os turistas ingleses e alemães não têm vindo, não têm alugado carros e a coisa está muito, muito, muito feia para o lado deles... Gostava de saber quantos alugueres é que efectivamente foram perdidos pois não consigo ver nada além duma rampa de lançamento para um qualquer subsídio, que deve haver, pois há subsídios para tudo... bem, para tudo não há, mas faz muita falta um para paciência com certa gente que vê na (bela) frase lá de cima uma oportunidade, mas uma oportunidade ao contrário, como bem sabem fazer muitos portugueses: aproveitar o nada para conseguir alguma coisa...

quarta-feira, 14 de abril de 2010

O pequeno almoço dos pombos

Os deuses acharam que me diverti demais ontem à tarde e quando cheguei ao carro a bateria tinha-se ressentido do alarme ter estado horas a tocar, de modo que não funcionou. Como já era tarde, chovia e estava cansada, aceitei a boleia até à porta de casa e só hoje de manhã, bem cedo, é que liguei ao seguro.
Fiz o telefonema ainda em casa, informei onde estava o carro e caminhei até lá devagar, coisa que, em dia de semana, é raro ter ocasião para fazer. A meio do caminho o telefone tocou e eu parei para atender: era o homem do reboque a querer saber exactamente onde estava o carro. Enquanto dava a explicação, parada, vi que à minha volta havia um bando de pombos e que eu estava precisamente no meio, em cima, no centro da sua refeição. Acudiu-me logo à ideia alguém em pé na minha mesa da cozinha onde almoço e janto...
Dezenas de pedacinhos de pão – bocados de pão para os pombos, pedacinhos para mim, migalhas para o Gulliver ou para o Adamastor– tinham sido atirados, suponho eu, duma qualquer janela para alimentar as aves cinzentas – e feias, acho eu, sem que elas tenham culpa, mas sem que essa inocência lhes dê beleza. E eu ali parada a assistir à refeição que decorria à minha volta, quando ouço:
- Tem medo dos pombos? Eu enxoto-os!
E antes que eu pudesse responder, o bom samaritano enxotou-os dando pontapés no ar. Respondi que não tinha medo apenas tinha ficado parada a observá-los, pois estavam a comer. O homem grunhiu um ah e foi embora, talvez pensando que eu devia consultar um médico, conclusão a que cheguei através da cara dele que, de certeza, mentalmente, me arranjou várias ocupações úteis que bem podiam substituir o ver pombos a comer no meio da rua.

Em G

Giro a galope grávida de guerra
Guilhotino os graus gravando a galáxia
Gaguejando na gaiola
Ganho ganas de galgar as gargalhadas de gangrena
Gargarejo em gárgulas geladas
Giesta gretada, garota grisalha

Silvestre

Silvestre

Achei espantoso o que me disse: cometer uma traição para confirmar a minha fidelidade à nossa amizade! É original, no mínimo…
Eu, que sou um poço de sensibilidade, tenho alguma inteligência, o que não é de espantar, pois em terra de cegos…, não sou feliz, castro a minha intelectualidade dentro do meu silêncio onde muito poucos entram, gosto de provocar e mais do que saber fazê-lo, tenho dias em que fico incontrolável, encarno personagens que não são minhas, finjo ser quem não sou, visto peles que não se me adequam, tenho um universo de meiguice mas consigo transportar cá para dentro cenários de terror, sou saudavelmente louca e desprendida, nasci no berço da aventura e procuro desesperadamente as minhas raízes, enfim, tenho muitos mares nunca dantes navegados e não se sabe se algum dia serão navegáveis, sequer, quanto mais conhecidos e explorados.
Eu, que tenho orgasmos a ouvir andamentos acelerados de música clássica, um dia encontro-o. Nasce uma amizade. Terá sido assim?
Ou terá sido um encontro tipo matéria e anti matéria, mas ao contrário? Em vez de sermos iguais por fora, mas molecular e atomicamente perfeitamente inversos, somos díspares no exterior e iguaizinhos por dentro? Consegue imaginar-se aos trinta e quatro anos, na vertente de mulher? Sou eu.
Tenho esta sensação espantosa que me revejo no futuro, como se isto fosse possível…
Só assim eu teria a capacidade de perdoar que tenho…perdoo-me a mim própria!
Você só gostava de casar comigo porque casaria consigo e nós somos os nossos melhores amigos, os nossos melhores amantes, quem nos conhece melhor, temos os nossos pensamentos como confidentes, os nossos sorrisos como nossos cúmplices, aturamos as nossas manias e vícios: a pessoa que eu escolheria para viver comigo era eu!
Então, quando a matéria encontra a anti matéria, nasce a consciência, vestida de amizade. E cresce e desenvolve-se e complementa-se. Um fala, o outro ouve e é como se se ouvisse a si próprio. Não precisa de dizer nada. Comungam. Por vezes fazem de advogado do diabo um do outro. Não passam informação um ao outro, já a sabem, podem é não ter consciência dela. Quando a recebem não precisam de arranjar um novo espaço para a guardar, apenas têm que a encaixar no espaço que reservaram. Quando? Mistérios do tempo, do espaço, do real e do virtual, da ciência e da fé. Enfim, da amizade.
Como me enganei… como pude ser tão burra?
Camila Ribeiro

25 anos depois

25 anos depois reencontrei o meu amigo de infância A. Foi ontem durante o lançamento do livro Praça do Comércio. A cara dele está igual, muitos cabelos brancos, mais que eu. O que também está igual é o sorriso, apesar da vida não lhe ter sorrido como merecia, como todas as pessoas merecem.
Combinámos encontrarmo-nos pois uma hora de conversa não é nada quando passou um quarto de século desde o último encontro. Rimos muito ontem, relembrando as peripécias de quando éramos catraios e fazíamos todo o tipo de disparates... e eu fiquei muito feliz com este reencontro.
Mas como se isso não bastasse, como se a companhia gargalheante da I. e da L. não chegassem, como se o facto de estar sentada ao lado do A. a sorrir não fosse suficiente, o meu próprio sorriso ainda se alargou mais quando o telefone tocou e ouvi o V. dizer-me que seguiu em correio outra ‘coisa’ do T. E. Lawrence, por quem nutro paixão inexplicável. Ou seja, foi um final de tarde perfeito: boa disposição, amigos a gargalhar, notícias e vozes do Norte da Europa... isto depois do lançamento do livro até não ter corrido mal... o que mais se pode querer, numa tarde de chuva?

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Direitos Humanos

Entro no metro a meio duma conversa entre duas mulheres, sonora como um comício.
A branca diz à preta (as cores são aqui usadas para as distinguir pois não sei os nomes delas e dizer uma disse ou a outra respondeu, ou então a da esquerda disse, e a da direita respondeu, não dá ideia de qual é qual, além do mais numerá-las parece-me uma visão nazista, de modo que optei por esta versão colorida) que o tempo da exploração já acabou, se bem que o 25 de Abril não fosse o que sempre se disse que era, uma balela, é que é e o que foi o 25 de Abril, onde se prometeu muito e não se fez nada.
A preta falava baixo, sussurrando, com receio, talvez, de quê, nem ela sabia. A branca pedia-lhe os contactos, que lhe ia arranjar emprego num trabalho menos estafante, com mais condições, dignidade e humanidade, pois aquilo a que ela, a preta, era sujeita, não era humano. Mas é fixo, respondia a preta. Mas é desumano, ripostava a branca e os direitos humanos existem para alguma coisa. É ou não é?
A minha viagem durou duas estações e não tive tempo de ouvir se alguém respondeu, se Deus, que está em todo o lado, respondeu, se a preta respondeu, se os passageiros da frente, igualmente a ouvir a conversa, responderam.
Terá resposta esta pergunta?

Verão Azul

Ontem morreu o Chanquete. É a segunda vez que assisto à morte dele e é a segunda vez que choro como uma... Madalena...
As viagens fiz eu pela mão dum pescador com toda a paciência e sapiência do mundo para crianças como eu. Eu era uma das amiga dele. Eu sou amiga dele.
A morte do Chanquete é o fim das férias da vida, o início duma nova etapa, duma nova aprendizagem. Estava lá tudo e o Chanquete era o pilar daquela casa, com a Dorada como telhado, um telhado feito porto de abrigo para chuvas e ventos mas também para curar angústias e tristezas.
Nesta primavera, muitas primaveras e verões depois de me ter aventurado nas férias alheias que também eram minhas, com muitas décadas de anos decorridas, continuo a sentir-me uma daquelas crianças, como se tivesse ficado presa naquele Verão Azul para sempre. A lamechice que se poderá associar a este comportamento é verdadeira, assumida e a pura da verdade. Recordo as tardes de sábado quando as ruas ficavam desertas pois íamos todos ver o  Tito, a Bea, o Javi, o Pancho, o Piraña, o Quique, a Desi, a Julia e, claro, o Chanquete, como se fossemos tomar uma dose duma droga qualquer que nos deixava com o olhar longínquo e o coração a mergulhar nas águas do sul de Espanha.
Mesmo que não choremos a morte do pescador, quem consegue segurar as lágrimas a ouvir a bela sevilhana do adeus, por entre lágrimas de amigos?

Algo se muere en el alma
cuando un amigo se va.

Cuando un amigo se va
algo se muere en el alma
cuando un amigo se va
algo se muere en el alma

Cuando un amigo se va
y va dejando una huella
que no se puede borrar
y va dejando una huella
que no se puede borrar.

No te vayas todavía,
no te vayas por favor
no te vayas todavía
que hasta la guitarra mía
llora cuando dice adiós.

Un pañuelo de silencio
a la hora de partir.

A la hora de partir.
un pañuelo de silencio
a la hora de partir.
un pañuelo de silencio
a la hora de partir.

A la hora de partir
porque hay palabras que hieren
y no se deben decir
porque hay palabras que hieren
y no se deben decir

No te vayas todavía,
no te vayas por favor.
no te vayas todavía
que hasta la guitarra mía
llora cuando dice adiós
El barco se hace pequeño
cuando se aleja en el mar.

Cuando se aleja en el mar.
el barco se hace pequeño
cuando se aleja en el mar.
el barco se hace pequeño
cuando se aleja en el mar

Cuando se aleja en el mar
y cuando se va perdiendo
qué grande es la soledad.
y cuando se va perdiendo
qué grande es la soledad.
No te vayas todavía,
no te vayas por favor.
no te vayas todavía
que hasta la guitarra mía
llora cuando dice adiós
Ese vacío que deja
el amigo que se va.
El amigo que se va.
ese vacío que deja
el amigo que se va.
ese vacío que deja
el amigo que se va.

El amigo que se va
es como un pozo sin fondo
que no se vuelve a llenar.
es como un pozo sin fondo
que no se vuelve a llenar
No te vayas todavía,
no te vayas por favor.
no te vayas todavía
que hasta la guitarra mía
llora cuando dice adiós


http://www.youtube.com/watch?v=cgnCwKwAYJ8

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Éle de livro, licor e leitura

Conta-me o V. que se partiu uma garrafa de licor e melou prái 15 livros que iam na mala de vizinhança com a garrafa. Bem... isto dá pano para mangas...
Podemos lamber os livros ou ler o licor... (linda conjugação de éles... [pensei em escrever bela, mas optei por linda para aumentar os éles...]).
Se o licor secar bem, imagino eu, os livros ficarão com uma película cristali... cristalizadora não, pois dá-me ideia que pararam no tempo; cristalina também não, obviamente; falta-me um fim para a meia palavra cristali...
Bem, ficarão com ar anizado, que mais tarde nos permitirá raspar o que antes foi líquido e solidificou e liquidificará novamente se lambermos os dedos! Nessa altura saberemos dizer do que era o licor? Espero bem que sim... e que nos traga recordações de onde o trouxemos e das pessoas que lá estavam e do tempo que fazia e das saudades com que ficámos.
Mais ainda, os livros ficarão com um cheiro doce como só os licores deixam, um cheiro tropical, logo quente, que nos trará à memória mais lembranças, momentos, palavras, musicalidade de gestos e...
Provavelmente o V. terá que comprar novos livros, mas saberá sempre que são outros e não aqueles, que se perderam em viagens com uma garrafa de licor por caminhos inesperados. E haverá coisa melhor que esta...?

À saída do comboio

Diariamente encontro pessoas teimosas. Principalmente entre os meus companheiros de comboio e, embora não troque uma palavra com eles, sei que são teimosos. Ou serão apressados? Se forem apressados, são também teimosos. E burros.
As portas do comboio abrem-se mediante pressão num manípulo, ao contrário das do metro que abrem automaticamente. Ainda o comboio vem no túnel e já há quem prima os dedos no manípulo, como se o facto de fazerem muita força antecipasse a abertura das portas.
A verdade é que o comboio emite um sinal, a partir do qual se conseguem abrir as portas, mas ninguém parece ouvi-lo ou relacioná-lo com a abertura das portas.
Hoje contabilizei mais de 60 segundos entre o momento em que um rapazito na casa dos vinte, de óculos enormes, roupa escura e poupa na cabeça enleada de gel, punha o dedo no manípulo e o toque de abertura das portas... a energia que o pobre gastou desnecessariamente, para ali a fazer força, como se isso apressasse a porta, mas só aquela, pois ele devia ter mais pressa que os outros passageiros todos. Ou então era mais teimoso ou mais burro. Ou mais parvo.
Mediante estes comportamentos dá-me um gozo especial ficar mesmo ao pé da porta mas sem tocar no manípulo e observar a ansiedade dos demais e ler-lhes o pensamento: Esta parva não abre a porta, será que pensa que ela se abre sozinha?
E ali fico descontraidamente até dar o toque de saída. Já aconteceu uma vez um homem meter um braço pelo intervalo da chuva e tentar chegar ao manípulo, como se eu fosse uma retardada que não sabia que era preciso fazer força ali... olhei-o sem me mexer dando espaço aos seus pensamentos onde me chamava vários nomes feios.
Saio sempre a sorrir do comboio.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Hoje

Tenho pressa e estou ansiosa. Para quê, não sei. Apetece-me muita coisa, mas não estar enclausurada neste gabinete onde a luz do sol é uma promessa lá ao fundo em janela que nem é minha e apenas vislumbro. Animou-me o mapa para marcar as férias... anima-me sempre, é garantido.
Estou impaciente e apressada. Antevejo o trabalho da semana como sólido e gratificante, com mais um lançamento pelo meio.
A perspectiva de sair daqui na semana que vem também me alegra...
Hoje combinei encontrar-me ao fim do dia com a M. Mas, por bons motivos, ela não veio... avisou-me pela manhã, eu a sair do banho, pingando em cima do telefone e a voz dela lá do outro lado, calma e brincalhona, como só ela sabe ser, mesmo em alturas de crise. Eu admiro muito a M. e tenho muito orgulho em chamar-lhe minha amiga. A minha admiração por ela vai a pontos de, recebendo eu uma menagem dela, ler, com espanto, que queria a minha ajuda e conselho... senti-me num pódio. Bem sei que converso com imensa gente e lhes dou conselhos, diariamente, mais espaçadamente, não interessa, mas a M. esteve sempre lá tão acima de tudo... apesar dos problemas dela, quantas vezes comentávamos, entre outras amigas, como ela tinha um espírito onde tudo fazia ricochete e nada mostrava o abalo que sentia, sim, porque tinha que sentir, afinal ela é humana. Mas talvez por ela saber sempre o que dizer e aconselhar e orientar, nunca pensei que ela pudesse estar daquele lado...
Sinto-me muitíssima grata por esta amizade...

domingo, 4 de abril de 2010

Filmes a 3D e... Filmes a 3D

Lembro-me do Monstro da Lagoa Verde (acho que era assim o nome). Foi o meu primeiro filme a 3D, na televisão. Na verdade não vi nada, apenas manchas verdes que se moviam e que eu pressuponho que seriam o monstro, verde, pois negra era a lagoa...
Agora filmes a 3D são banais, cada vez há mais e ainda esta semana vi a Alice, com cogumelos gigantes que se metiam na nossa boca e uma plateia de intelectuais, se acharmos que usar óculos dá ar de intelectual.
Porém, hoje vi outro filme a 3D e posso afirmar que foi completamente diferente de todos os outros, mesmo os vistos recentemente: Como treinar o teu próprio dragão. Se o título não for este não anda longe.
Ainda o filme não tinha começado, durante a publicidade da Vodafone, chovem pipocas que são 'apanhadas' aos gritos pela plateia, numa onda de alegria contagiante. Depois os dragões voam, as amizades nascem e a paz desce à Terra no meio de braços estendidos, de perguntas feitas em voz alta com a particularidade da plateia parecer um bando de cientistas que experimenta algo novo que, eventualmente, faça mal à vista e, então, protege-se com óculos...
A meio surgem vontades irreprimíveis de ir à casa de banho para xixis urgentes e lá perdemos não sabemos bem o quê, noutros tempos eriam garrafas de coca-cola a cair dos céus, agora são lutas com dragões.
Digo a um dos meus cientistas que não se mexa enquanto eu levo o outro à casa de banho, nem que um dos dragões salte do ecrãn! Ele nem me ouve de tão concentrado que está, nem sei se se apercebeu que nós saímos, pois ficou surpreendido quando nos viu reentrar... Ainda perguntei o que tinha perdido mas ele não sabia até onde eu tinha visto. De vez em quando ela dizia-me que era a menina protagonista de história, não fosse eu ter-me esquecido que ela mo tinha afirmado dez minutos antes... e a seguir atribuia personagens a cada um de nós, comigo a mandá-la calar...
Sempre gostei de dragões, e hoje fiquei a gostar ainda mais.