Quando agimos em função de um princípio achamos que estamos a agir bem. Mas quando todos agem ao contrário, instala-se a dúvida. Ultrapassada a dúvida, mas mantendo-se a acção alheia, instala-se uma certa confusão. Falo de uma das coisas mais sagradas da existência humana, a amizade.
Entendo a amizade como uma plataforma mais íntima que o amor. Por um amigo faço tudo, tudo, tudo, tudo. E neste tudo cabem coisas boas e coisas menos boas, como por exemplo chamar a atenção quando considero que é preciso chamar à atenção. Mas as pessoas não gostam de ser chamadas à atenção, acham que estamos a violar limites, que estamos a entrar onde não somos chamados, que lhes impomos certas coisas, como a nossa opinião, e isso pode ser fatal para a amizade, a amizade de algumas pessoas, não a minha, que aguenta tudo.
Frequentemente ocultamos coisas que nos causam desconforto: uma atitude infeliz do filho perfeito, um comportamento do marido/esposa que nos envergonha ou humilha, um quotidiano de embaraço com a chefia porque não temos aquela coragem que apregoamos, enfim, mil coisas.
Acho eu que os amigos, aquela ou aquele mais especial, servem também como fuga ou escape a tudo o que nos constrange, padres que nos ouvem em confissão e que nós ouvimos, pagando na mesma moeda. Não resolvemos nada, mas podemos ajudar-nos mutuamente, dando ideias, fazendo o outro rir, partilhando seja o que for, tornando assim mais leve qualquer tipo de problema.
Já tive a minha dose de desilusões na vida na sequência de considerar que certas pessoas eram minhas amigas e afinal não eram, com afastamentos, e até (mesmo as coisas mais dramáticas têm aspectos cómicos!) com reivindicações do género eu dei-te tudo!, quando esse tudo se consubstanciava em meia dúzia de bens materiais que a pessoa em questão trazia gratuitamente da sua empresa, em forma de amostra. Claro que se esqueceu do que eu lhe dei, nomeadamente em termos de tempo e disponibilidade com os seus próprios filhos, mas isso não vale nada…
Diz-se que quem não se sente não é filho de boa gente. E eu senti-me este fim-de-semana. Senti-me profundamente infeliz pela parte de uma pessoa que tem um estatuto tão alto na minha vida, que nem tem nome…
Penso que não posso fazer mais por essa pessoa e nem entro em pormenores… mas conclui que quando damos tudo os outros sentem que para darmos tanto é porque temos ainda um mundo para partilhar, sem nunca perceberem que podemos dar… tirando da nossa própria boca.
Nunca me queixo de doenças, dores, más-disposições, nada. Quando o faço é porque é grave, já passaram meses sobre a descoberta da coisa em questão e já tenho os resultados dos exames e análises que fiz em surdina. Partilho, com grande dificuldade, e sempre com aquela estúpida – eu sei! – preocupação de não preocupar… e no dia seguinte a pessoa esqueceu-se…
O que fazemos? Rimos ou choramos? Chamamos a atenção ou deixamos passar? Fingimos que está tudo bem ou mostramos que quem não se sente não é filho de boa gente?
Recordo-me de numa ocasião trabalhar com um colega que arrastava uma gripe há meses. Era activista dos direitos humanos e todos os dias nos dizia que havia milhares de pessoas bem piores que ele. Finalmente decidiu-se a ir ao médico e disse-lhe que se sentia tão mal que se estava nas tintas para os refugiados e para a guerra do Iraque (a primeira!). O médico disse-lhe que estava no seu direito sentir-se mal, até porque estava a raiar uma pneumonia… e que se esquecesse daquela e de outras guerras, pois se queria um dia assistir à paz tinha que tratar da saúde para lá chegar.
Sinto-me assim… digo-o com toda a honestidade, a precisar de esquecer os outros, de pensar em mim, mas em simultâneo, a querer que pensem em mim. Não preciso que me façam nada, apenas que não se esqueçam que sou uma pessoa.