quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Obstinações

Vamos fazer uma conferência sobre Juan Bosch, o 43ª Presidente da República Dominicana, e de quem se comemorou o centenário de nascimento em 2009.
O fascínio por gente desconhecida manifestou-se mais uma vez. Confesso que nunca tinha ouvido deste nome, e ainda não folheei os seus livros que foram oferecidos à minha biblioteca.
Não me interessa verdadeiramente sobre o que escreveu... interessa-me que tenha escrito, pensado e levado a pensar.
Como Juan Bosch existem dezenas ou centenas de pessoas, vivas ou mortas que dedicaram a vida a empreender. Interessa-me que, não se sentindo bem, tenham tido força para mudar, não tenham desistido, fosse do que fosse. Porém, com o equilíbrio que traz a luz e não a cegueira da motivação pessoal que leva obstinadamente a maus caminhos.
Por outro lado, e aqui faço um parêntesis para ver bem a beleza da ambiguidade aparente das palavras ou das construções frásicas, fiquei a saber que morreu Orlando Zapata. Morreu de fome na sequência duma greve obstinada.
São duas obstinações onde o foro pessoal é secundarizado em prol de outros valores, mais amplos e abrangentes. Não encontro palavras certas para descrever alguém que morre em greve de fome, que faz dos últimos dias um pingar de água mole em pedra dura, que me lembra Gandhi que se deixava bater voluntariamente pois haviam de se cansar...
E se todos tivéssemos esta força, ou mesmo só parte dela? A pergunta é ingénua mas é legítima...

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

A Àgora

Numa tarde de calor a Paciência encontrou-se com a sua prima Prudência, a filha mais velha da Sabedoria. Cumprimentaram-se com um menear de cabeça e caminharam paciente e prudentemente em silêncio. Os seus passos levaram-nas à Àgora.
O espaço estava deserto pois o mercado tinha funcionado, como habitualmente, durante a manhã. Passado algum tempo viram alguns cidadãos marcarem presença, formando um semicírculo à volta de nada. Outros se lhes juntaram e apareceu também a Política de braço dado com a Oratória e a Retórica, um pouco atrás compondo as vestes.
Ia realizar-se uma Assembleia do Povo e a Àgora, pressentindo que ia ter um momento intimamente ligado à sua essência, ficou um pouco nervosa, encolheu-se e rapidamente se encheu de gente e de Artes.
Um dos homens destacou-se e começou a falar sobre o Conhecimento, com a Oratória por trás dele. Outro lhe respondeu com tão subtis argumentos que ninguém duvidava que, não só a Oratória, como também a Retórica, estavam a seu lado. Falava usando perguntas e questionava o ensino e a educação, afirmando que o conhecimento andava arredado de tudo e que o comportamentos dos jovens nunca os levaria a ascender à Sabedoria.
A Política ria-se, voando por cima das cabeças dos cidadãos.
A Àgora recolhia cada palavra, cada exaltação eloquente, cada intervenção, cada argumento. Ninguém dava por ela.
Os homens falaram e falaram e falaram. Reflectiram assim durante séculos, mas pouco concluíram.
Ao início da noite, quando todos já se tinham ido embora, a Paciência e a Prudência que tinham assistido a tudo de longe, despediram-se da Àgora e foram embora, para lugar incerto, sendo raro deixarem-se ver.
A Àgora, uma pegada do tempo na história da humanidade, hoje é recordada aos turistas e só os mais atentos se lembram dela.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Livros ao metro

Lembro-me quando se mediam os livros nas Bibliotecas. O objectivo era arrumarem-se por tamanhos, numa lógica de bibliotecas sem livre acesso, logo, com os assuntos misturados, juntando astronomia com literatura, não que não pudessem estar juntos, mas para poupar espaço.
Hoje continuam-se a medir os livros, como repositório de fazeres de outros tempos, sem justificação. Mas como as regras dizem que temos que os medir, como existe um espaço traço espaço na catalogação, impõe-se a régua e o mencionar os centímetros, prova que as coisas se fazem mecanicamente e que não se pára para pensar... porquê? Se o fizéssemos, provavelmente, uma das coisas que se deixariam de fazer era medir os livros e guardavamos metros de tempo para sorrir aos nossos utilizadores.
Por outro lado, se bem que contenha algum ridículo, não deixo de sorrir quando me pedem o livro amarelo, vermelho ou azul... É uma perspectiva que é comum a muita gente.
Pelo meu lado conheço os livros pelo tipo de papel, pela força da impressão ou pela letra. Há papéis que me emocionam, e se me pedirem para explicar esta afirmação levarei dias...













Fonte: http://www.sfgate.com/c/pictures/2004/11/18/dd_111604_bookstore.jpg
Obrigada à Ana Paula pelo envio desta imagem.

Em E

Enveredo no envelhecer
Envolve-me a epiderme de ébano
Equiparo o epílogo ao entardecer
Escrupulosa, escapo ao escândalo
Enquanto entro enraízo-me
Emito energia emergente
Eis o eixo do eclipse excêntrico

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

4 de Março de 2007

Caro Silvestre
Você desconcerta-me na forma mais positiva que posso imaginar… você é a pessoa mais saudavelmente diferente que conheci e estou grata por o ter “descoberto”, por me ter permitido entrar no seu círculo de amizade…diferente.
Descobrir é ir ao encontro do desconhecido.
Há quem o faça por natureza, e cada momento da sua vida assemelha-se a uma escalada, ao atravessar de um rio vigoroso, a uma caminhada ao sol. Mesmo que haja mais maneiras de lá chegar escolhe-se a que contém mais emoção, a que exige de nós mais fibra, não dando sossego ao corpo e à mente, mas alimentando a alma.
Outra forma de caminhar na vida é seguir os trilhos que outros já pisaram e avançar pelo conhecido.
Anda-se mais depressa, chega-se mais depressa. Onde? Ao topo, à glória, ao bom e ao mau e ao fim da vida também.
Quem anda depressa não vê tudo e o que vê não lhe é mostrado com clareza. Vêm com os olhos
Quem vai por onde ninguém ainda se atreveu, é dono, é senhor, é rico, é pessoa completa e cheia. São os que vêm com o coração.
Têm medo? Têm sim senhor; é o medo que os faz avançar. Morrem a meio de certas caminhadas. Morrem sim senhor, mas correram o risco que lhes soube melhor que anos de sossego por caminhos acimentados e alcatroados que nos levam depressa onde os outros querem, não exactamente onde nós queremos ou onde o acaso nos levaria.
Ah, sagrados cânones que nos orientam!
Ah, princípios éticos que nos regulamentam!
Ah, cabeça, tronco e membros do bom comportamento!
Ah, substância formal da boa convivência social!
Ah, teatro da vida, que passas anos sem nos dares um intervalo, sempre com a mesma peça em cena, repetindo o guarda roupa, falando eternamente a mesma língua, para espectadores sentados sempre no mesmo lugar.
As cenas já foram repetidas tantas vezes que todos já esqueceram que o próprio teatro é uma encenação e as deixas não são sentidas, alguém as escreveu para que outro alguém as diga.
O teatro é uma fé. Não sabemos porque acreditamos, não interessa perceber, não interessa dissecar, não interessa contradizer. Interessa contracenar. Já sabemos como vai continuar, conhecemos de cor o actor que vai entrar a seguir: vamos rir, mas o que nos apetecia era chorar? Se esperarmos um pouco, entrará outro actor que nos satisfará, mesmo que nesse preciso momento nos apetecesse mesmo rir. Mas não podemos. Porquê? Porque estamos a seguir o trilho que alguém construiu para nos facilitar a vida.
Pararemos para descansar, não quando estivermos cansados, mas quando encontrarmos o abrigo que foi construído para nos proteger. Lá dentro não faz frio, que nos engelharia as mãos, podemos tomar banho, para que não cheiremos mal…aos outros.
Podemos tirar as botas (da moda) e massajar os pés, para aliviar a caminhada que foi dura porque foi feita à pressa, para quê ir devagar se o caminho era tão bom, sempre ali debaixo dos nossos pés e nos permitia continuar com elegância para sermos os primeiros a chegar?
Os outros, os que andam mais devagar, os que escolheram os atalhos e trilhos pouco conhecidos e por explorar, quando chegam, chegam atrasados e o abrigo está cheio. Ficam lá fora. Conhecem a chuva e o vento, já viram vezes sem conta o arco Íris na lua, que outros nem sequer ouviram falar. Mas, também, a quem interessa o arco Íris da lua? O que se ganha ao ver-se um arco Íris na lua? Só pode ser uma aberração fruto da imaginação de um frustado, de um anormal, de um maníaco, de um obcecado.
Por vezes, alguns daqueles que conseguem chegar ao abrigo, acordam de noite com insónias e fumando um cigarro de sucesso, olham da janela bem calafetada a fogueira cujo fumo vai inquinar ainda mais os que a rodeiam. Sentem a tentação de sair, para saber se a noite está quente ou fria, o que conversam os anormais lá fora, mas não o fazem. Não seria correcto, perderiam o lugar no abrigo e pior ainda, sentir-se-iam a trair todos aqueles que elegantemente dormem à sombra da protecção do abrigo. No dia seguinte, estes olheiros, comentarão com os outros normais o mau aspecto da fogueira, a maneira concupiscente como os outros estavam deitados lá fora e, por meio de metáforas, darão a entender que até os ouviram peidar-se. Que horror!
E o teatro continua, sempre a ser interrompido pelos barulhos e pelos cheiros dos anormais.
Oh, neurónios indigentes que levam a boca a dizer obscenidades e a repetir impurezas e não se curam nunca.
Como podem ter esperança de entrar na peça? Mesmo tendo o papel de pedra da calçada, daria buraco.
Como poderão um dia, ser normais?
Será que não se apercebem que tudo tem uma altura e um momento certo na vida? Há horas para comer e beber, há momentos para agrafar papéis, há alturas para andar de bicicleta, há instantes para ver o por do sol, há minutos para nos pentearmos, etc. e por ai fora.
À força de quererem caminhar fora do empedrado, os anormais, muitas vezes fogem da vista do mundo. Perdem-se.
Coitados, na sua maioria são maníaco-depressivos, com obsessões que não lhes permitem ser normais. Nunca serão felizes. Coitados. São ridículos, teimosos em não quererem ler o guião da peça que deveriam estar a representar. Nunca sabem o que vai acontecer a seguir, que parvos!
Não pensam nas consequências e depois queixam-se. Querem coisas novas querem experiências, querem conversar sobre coisas sobre as quais não se conversa, querem emoções. O que querem é perder o controlo e não saberem nunca o que vai acontecer a seguir, isso sim!
Toda a gente gosta de aventura e mistério. Está previsto que assim seja, e para tal lê-se um livro ou vê-se um filme. Está no guião.
Em última análise estas pessoas, estas criaturas, são um perigo. Como se pode saber que não têm um efeito contagiante, que o seu interior não contém vírus e bactérias como por exemplo vontade de rir, impulsos sexuais incontroláveis, olhares penetrantes, ondas do mar, música por tocar, amanheceres acordados, uma camisola para dois, beijos a desconhecidos, livros emprestados lidos em voz alta, almoços só de vinho e outras barbaridades ainda mais bárbaras que não se podem descrever, porque são actos cometidos fora do tempo próprio, antes ou depois do momento em que estavam programados, absoluta e completamente fora do guião?!
Cada pessoa tem direito a encarnar um personagem e apenas um e tem como missão convencer-se que é esse personagem, de preferência um protagonista de qualquer coisa. Quanto mais depressa decorrer este processo de auto-convencimento, de auto-conhecimento, mais depressa se alcandora à felicidade!
Os anormais mudam de personagem constantemente. Para quê? Só dificultam a sua própria vida. Nem dão tempo a que eles próprios se conheçam e não respeitam a respeitabilidade dos outros, que se mantêm iguais a si próprios, coerentes, uniformes, ou seja, normais!
Aqueles anormais são loucos. Só podem ser.
O pior de tudo é que, por vezes, vestem a pele de uma personagem normal e confundem as pessoas efectivamente normais. Divertem-se a cometer estes crimes.
Como descobrir um deles? Facilmente: arquitectam conversas que nada têm a ver com a realidade, com o guião. Falam de coisas estapafúrdias, dizem o que pensam e o que sentem. Não têm sentido. Se virmos bem as coisas, nem existem. Afinal, não estão no guião.
Bem, agora é o momento de ir à casa de banho.
Camila

Será gula?

Rapariga com brinco de pérola.

Fui conquistada por este livro na primeira linha. E isso não é fácil de acontecer.
A narração na primeira pessoa é (quase) sempre um aliciante, qualquer coisa que me puxa para dentro da acção e, mais ainda, das pessoas, o que foi plenamente conseguido. Sentir as dores e as alegrias dum personagem, cansarmo-nos com os seus cansaços, afoguearmo-nos com as suas ansiedades, tremermos com os seus medos, tiritarmos com o seu frio. Há uma proximidade maior do que através da mediação do narrador, cujo olhar não podemos ter a certeza de ser fiel.
É raro não dar uma olhadela ao final dum livro, ler as últimas linhas. Aqui não o fiz, queria lá chegar depressa, mas sem alterar o curso dos acontecimentos, sem fazer batota. Como quem quer dar uma nova volta no carrossel, antes de terminar a anterior. Tinha pressa em chegar ao fim para recomeçar a leitura, voltar a ouvir a água correr nos canais, a entrar no mercado, a visitar a casa dos pais de Griet ou a sentir pena pelas queimaduras nos braços do irmão. Não é a primeira vez que me apaixono por uma cidade ou um local depois duma leitura e sei que, de novo, esta me levará lá.
Terminei a leitura com a tristeza habitual de quem tem fome mas tem o frigorífico vazio. Depois disso agarrei Jim, o Sortudo, porque, tal como primeiro, custou 1 euro e vem por acréscimo com uma revista ou jornal que não me lembro qual é.
Vou perto da vigésima página e ainda não fui agarrada, nem sei se o serei. Recordo apenas o nome dum personagem e não me lembro onde se passa a acção. Leio por vício, como quem tem de comer.
Na minha mais recente mudança de casa voltei a encontrar um livro – O Código dos Woosters – que de vez em quando me aparecia pela frente desde há anos, mas nada me inclinava para o ler. Como as arrumações dos livros demoraram algum tempo, aquele livro foi ficando por ali até que o agarrei e lá o li. A leitura não era cansativa, tinha acção, tinha até momentos cómicos. Porém, passados três ou quatro meses da leitura, apenas me lembro que decidi que o leria e fi-lo. A cada dia não me recordava do que lera no dia anterior, mas continuava a avançar numa teimosia de o terminar. Será isto gula?
Comer mesmo sem fome, sentir-me obrigada a ler mesmo sem interesse? Pois não sei.
No caso do livro da Rapariga com brinco de pérola ainda tinha como bónus o facto de não haver gralhas e da tradução não demonstrar erros. Pode parecer infantilidade mas ninguém imagina como me sinto feliz quando isto acontece...
Apetece-me guardar o livro, escondê-lo, não o emprestar e, contudo, falar dele a toda a gente.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Em D

Damas dançam daltónicas
Danada desafinação
Desinibidos dons
Deserto desmaiado
Desintegrem-se as diligências
Diminuam-se os discursos
Dissipem-se as doutrinas
Dourada é a dúvida
Dádiva divina

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Já a seguir... Crónicas da mãe dum adolescente divorciada ou será melhor Crónicas da mãe dum adolescente orfão?

Sábado à noite o Duarte tem um jantar de aniversário de um amigo. Vou levá-lo e regresso a casa, a fazer horas para o ir buscar. Como o telefone dele tinha ficado sem bateria, trocamos os cartões e eu fico com o telemóvel dele que tem mais botões que o meu e mais mariquices que não percebo. Lá dou voltas à coisa e descubro material interessante...  Ligo ao pai e pergunto se quer ir comigo buscá-lo pois...
- Não, eu vou sozinho ou vais tu...
Perante isto... Boa noite senhor pai que se demite dessa missão e nem sequer pergunta... Porquê? Cada vez mais me convenço que ele é dos que pensam que ter um piano faz de nós pianistas... Ainda por cima tinham passado apenas 24 horas sobre uma conversa, que ficara a meio, e onde ele tinha dito:
- Não tinha consciência que fazia o meu filho assim infeliz...
Mas a consciência adormece novamente assim que ele se afasta de mim, a voz da consciência que ele não quer ouvir, não quer perceber e se recusa a interiorizar...
É engraçado como aqui há uns tempos eu juraria que ele nunca se comportaria desta forma e agora... agora vejo que se confirma a bananice, comum a tantos homens...
Homens que deixam a meio conversas sobre a felicidade, ou a infelicidade, dos próprios filhos, e que nada fazem para as terminar... porque será?
É porque têm muito trabalho e não podem fazer um intervalo? Não...
É porque o assunto é delicado? Pois claro...
É porque são pais só quando lhes apetece ou quando lhes dão margem para isso? Sim...
É porque são pessoas fracas, manipuláveis e pobres? Evidentemente...
É porque têm outras prioridades? Sem dúvida...
É porque sabem que erraram mas os únicos que erram e que podem ser chamados à atenção são os filhos, por serem pequenos? Evidentemente...

Cada filho é um mundo e há pais que não fazem a mais pálida ideia em que planeta estão... e pior ainda, que se recusam a abrir os olhos.
E assim, as minhas descobertas no telefone, a leitura de históricos de conversas que me puseram a chorar desalmadamente, uma fotografia amarrotada no meio dos livros... vão ser coisas que ficam comigo porque há pais que têm como prioridade os filhos dos outros.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - XIII

Havia duas noites que dormia como queria e apesar disso tinha pesadelos. Talvez fosse do cheiro a mofo do colchão, palco de intensas aventuras de vários casais de pulgas e outros bicharocos que por lá decerto passaram, ou talvez fosse do facto de dormir acompanhada, pois tinha dormido com o filho, num encantamento que lhe parecia um sonho, ele ali ao seu lado, ela a mexer-lhe e a cheirar-lhe o cabelo.
O dia seguinte começou com uma sessão de cabeleireiro e manicura. Não que o seu cabelo desse para grandes penteados pois só o deixara crescer quando soube que sairia da prisão, mas uma lavagem por outras mãos e um shampoo aplicado com uma massagem, valiam pela vida. Depois entretiveram-se nas compras numa loja onde Paulinho também foi brindado com algumas peças de roupa, óculos de sol para os dois e um passeio a pé perto da praia onde costumava ir e onde constatou que em três anos pouco tinha mudado. O telemóvel do filho tocou várias vezes e, pela conversa, percebia que era o pai a querer saber da condenada.
- Em que estás a pensar mãe?
- O que fará a tua tia, o marido e os avós...
- Não sei... ao princípio ela teve bué discussões com o pai, gigantes, ‘tás a ver? E depois disso só a vi mais duas vezes. Disse-me que ia embora e que quando chegasse me escrevia a dizer exactamente onde estava, o que nunca aconteceu. Os avós convidaram-me também muitas vezes mas era o pai que me levava lá e ele ficava no carro e dizia-me para eu não me demorar. E depois foram-se embora e eu fiquei sozinho com o pai... e depois veio a Adelaide.
- Fala-me da Adelaide...
- Ela até é porreira... o pai conheceu-a numa viagem que fez e começaram a namorar poucos meses depois de tu teres sido pr...
O miúdo estacou com o ...esa na garganta pensando que magoava a mãe. Ela sorriu e disse-lhe que as palavras não interessavam nada e que, afinal ela tinha mesmo estado presa por isso, que outra coisa haveriam de dizer?
- Um dia contas-me mãe? Contas-me mesmo à séria como era lá dentro?
A mãe sentiu uma tristeza profunda e respondeu:
- No avião, boa? Teremos imensas horas para conversar. Prometo.
- Isso quer dizer que vamos? – perguntou Paulinho no auge da excitação.
- Sim, vamos – respondeu enquanto abraçava o filho e rezava interiormente para não estar a fazer, agora sim, a asneira da sua vida, agora sim, consciente e de livre vontade.
Sabia que as palavras de Francisco e a forma como as pronunciara, com o pronome carregado de desdém e de desprezo, a tinham influenciado na decisão. Ouvia ainda aquele ela, dito com altivez, como se se referisse a alguém que nem conhecia, quando estava a falar da mãe do filho. Além disso, pensara e repensara que a irmã devia ter tudo pensado e o X falou mais alto, sinal que podia confiar nela.
A cada minuto mais se convencia que havia um motivo muito forte para tudo aquilo e a irmã saberia que os riscos iriam valer a pena, caso contrário não lhe proporia aquela aventura louca.
Sim, iam ao Peru. Sim, iam em direcção das pessoas que mais amavam. Sim, iam em busca de respostas. Sim, iam confiar.
Depois de mais dúzias de recomendações via telefone o pai lá se preparou para viajar no dia seguinte bem cedo, atormentado como uma rocha onde as ondas batem sem cessar, assolado por maus agoiros que lhe vinham do conhecimento da sua – ainda – mulher, com queda para a aventura, com desejos de mudança, com vontade de correr riscos e tinha a certeza quase absoluta que ela era culpada da acusação que lhe fizeram pois vira naquela oportunidade, uma oportunidade de fazer qualquer coisa fora da sua rotina que tanto odiava.
De vez em quando era afogueado pela dúvida e quando colocava, ainda que longinquamente, a possibilidade de ela ter sido vítima das circunstâncias, logo se lembrava que ela sempre vivera com os pés na lua e talvez fosse influenciada pelo Peréz-Reverte e tivesse resolvido brincar às rainhas do sul, pois dificilmente distinguia a realidade das leituras que fazia, e ele sabia que aquela mania dos livros que ela e a irmã cultivavam não era de todo saudável e já lá diz o povo, nem tanto ao mar nem tanto à terra e agora que tinha uma vida sossegada, sem os temporais dela – e da família dela! – por perto, estava decidido a fazer tudo para que ela não a viesse perturbar. Daqui a uma semana regressaria para pôr tudo nos eixos, tanto mais que a escola começaria em breve e ela iria participar o menos possível na vida escolar do filho. Este pensamento provocou-lhe um sorriso pois lembrou-se subitamente que ela lhe tinha mencionado o facto de esperar um contacto para arranjar emprego e ele consolou-se pensando que seria bem longe de Lisboa e, já que ela gostava tanto de viajar, pois que fosse para a Sibéria e ele até ajudaria a pagar o bilhete!
Se ele sonhasse com os planos da mãe e do filho – Rosa e Luís – dava-lhe uma apoplexia que o deixaria morto.
- Mãe, vamos quando? Ainda vais ver a Luísa e a Lena?, perguntou o filho referindo-se às amigas mais chegadas da mãe.
- Não, elas não sabem que saí e é melhor que fiquem assim. Quantas menos pessoas contactarmos mais fácil será, até para não terem que mentir por nós. Vamos embora amanhã, o mais rápido possível.
- Como vamos para Madrid mãe? De avião?
- Não, de comboio. Assim os registos só terão informação duma Rosa e dum Luís a partir de Madrid.
- Mãe, vou já telefonar p’ró tal número a dizer que vamos amanhã e...
- Espera... não telefones do teu telemóvel, vamos aos Correios.
- Porquê? Os Correios estão fechados hoje...
- Porque é mais seguro... filho, tu já te apercebeste da dimensão daquilo que vamos fazer?
- Sim mãe, eu...
- Espera, deixa-me falar... bem sei que uma viagem ao Peru, é qualquer coisa muito atractiva, mas nós não vamos de férias, nós vamos clandestinamente, com nomes falsos – e aqui baixou a voz, como se pudessem estar a ser escutados – e nem sabemos quando voltamos, mas uma coisa é certa, o teu pai vai pôr a polícia do mundo inteiro atrás de nós... todos os cuidados são poucos e a tua tia dá-me todas as indicações para não confiar em ninguém.
- Tens razão mãe, tens razão... mas como temos que telefonar com 24 horas de antecedência, vamos ver a que horas são os comboios e vamos marcar tudo o mais depressa possível.
Abriu o computador portátil, entrou na página da CP e viu que o Lusitânia saia de Lisboa diariamente às 22.30 e chegava a Madrid às 8.58h.
- Mãe, só há comboios de noite, temos que dormir no comboio. Temos dinheiro, não podemos ir de táxi? Quanto será ir de táxi até Madrid?
- Nem pensar! Com toda a facilidade falavam para as empresas de táxis e em três tempos descobriam o taxista que nos levou a Madrid!
- Oh mãe e se tu pedisses à Lena? Ela não nos levava sem dizer nada?
- Levava filho, tenho a certeza, mas já te disse que é melhor não meter ninguém ao barulho... Olha, vê aí os aviões para Lima.
Paulo começou a pesquisar mas de repente disse:
- Mãe, não é melhor telefonar primeiro?
- Sim tens razão, mas não do teu telefone...
- Tenho uma ideia: vou comprar um cartão de telefone e ligamos desse número, o que achas?
Perante a anuência da mãe, Paulo saiu de casa e foi ao Centro Comercial fazer a compra. Ela ficou em casa agarrada às estantes à procura de algum exemplar do tal livro que a irmã lhe falara, O Ingénuo. Podia não ser nada, mas já agora, era melhor ter a certeza e, se tivesse o livro em casa, tanto melhor.
Paulo regressou com dois sacos com caixas de comida já pronta.
- Mãe, para não termos que sair de casa, comprei comer. Não sabia bem o que trazer e então optei por bacalhau com natas e entrecosto com arroz de feijão e uma sobremesa.
Sopa, feijão, arroz, frango, carne à jardineira e muito peixe frito, tinham sido a base da ementa dos últimos anos. Muita fruta onde as pêras eram rainhas e os pêros estavam sempre presentes, apesar dela teimar em pedir a todas que lhe chamassem maçãs porque vinham das macieiras e não dos pereiros. Sobremesas só no Natal, quando havia também bolo-rei, umas filhoses e mais nada. Espreitou o interior do saco, sorriu ao filho, foi buscar uma colher, destapou uma das tacinhas e comeu o tiramisu com prazer. O filho riu-se, fez o mesmo e só depois da sobremesa comida é que jantaram. No final da refeição, o rapaz disse:
- Mãe vou fazer o telefonema.
Trocou os cartões de telefone, ligou, deu as referências dos bilhetes e do outro lado disseram que tinham lugares já no dia seguinte no voo das 13 horas locais.
- Um momento por favor – pediu o rapaz e virou-se para a mãe
- Dizem que pode ser já amanhã, saímos à uma da tarde e chegamos lá à uma da manhã. O que achas?
- Amanhã? Mas ainda precisamos de chegar a Madrid e... olha, pede para confirmares daqui a bocado.
Paulo fez como a mãe lhe pedia e quando desligou o telefone disse:
- Mãe, ainda estamos a tempo de apanhar o comboio de hoje. Chegamos lá cedo e a horas de apanhar o avião! Na boa!
Sorrindo ficou à espera que a mãe comungasse do seu entusiasmo, e a mãe começou a fazer contas:
- Paulo, afinal para onde vai o pai? Nem fiquei a saber...
- Eles vão para a República Dominicana, o avião saí amanhã às 8 da manhã e chegam lá às 6 da tarde. Mãe, é perfeito, ‘tás a ver? Quando eles saírem daqui no avião já nós estamos em Madrid. Mãe...
A mãe tinha o coração aos saltos no peito, a respiração ofegante como se tivesse corrido e sentia-se desconcentrada com tanta informação.
- Que horas são? Perguntou devagar quase a medo.
- Sete e meia... apanhamos um táxi a vamos apanhar o comboio a Santa Apolónia. Mãe... se for assim, depois de amanhã estamos com a Tia Teresa...
A mãe suspirou e não conseguiu evitar começar a chorar. Ia mesmo? Ia mesmo levar o filho de acordo com as indicações da irmã? Sabia que no momento em que saísse de casa tudo seria irreversível. Ia ou não ia? Não podia pedir conselho ao filho pois já sabia o que ele ia responder. Meu Deus, ajuda-me, pensava com o coração a bater aceleradamente. E se as pistas das cartas fosse tudo imaginação da sua cabeça e não passassem duma loucura de quem acumulou saudades ao longo de três anos? A dúvida mantinha-se mas a confiança falou mais e disse:
- Está bem... mas vamos fazer as coisas com precaução. Liga já outra vez e pergunta se podemos de certeza ir amanhã a essa hora. Se pudermos, vamos apanhar dois táxis: eu apanho um ali em baixo à porta do centro comercial e tu apanhas outro ao pé da igreja, vais ter que ter paciência e vais a andar até lá e...
- Na boa mãe!
- Depois cada um compra o seu bilhete no comboio
- Mas mãe, assim não podemos ir juntos e são muitas horas e...
- Calma, podemos sim... eu já explico como. Vá, liga lá e confirma que eu vou ali arrumar umas coisas.
Paulo, utilizando o novo cartão que tinha comprado para o efeito, confirmou as marcações ao telefone, desligou e a mãe ouvi-o a falar novamente:
- Boa noite, eu estou atrasado para apanhar o Lusitânia e não tenho bilhete. Sabe dizer-me se ainda há lugares?
- ...
- Hã... não sei, um qualquer.
- ...
- E tenho que comprar o bilhete até que horas?
- ...
- Obrigada, boa noite.
- Mãe, têm bilhetes, disseram para comprarmos o mais depressa possível e perguntaram se era sentado ou com cama...
- Senta-te aqui e ouve-me com atenção: a Tia disse para não levarmos roupa por isso leva o essencial. Sais daqui, apanhas o táxi onde eu disse, sais em Santa Apolónia e compras um bilhete com cama, mas ida e volta, percebes? Eu faço o mesmo e compro outro e depois a meio da noite um de nós muda. Vamos embora.
- Ida e volta?
- Sim, assim levanta menos suspeitas, pedes a volta para daqui a dois dias.
Abraçaram-se e Paulo carregou o portátil na mochila e foi buscar outra mochila com roupa que tinha trazido da casa do pai e começou a tirar peças de roupa para fora.
- Levo as calças que tenho vestidas, mais duas t-shirt’s e dois boxeurs, achas bem?
- E o blusão de ganga que trazias.
- Sim, tásse bem mãe – respondeu com um sorriso de orelha a orelha.
A mãe meteu duas mudas de roupa interior, um casaco leve e um par de ténis que comprara no dia anterior. A calças eram novas e iam durar a jornada inteira tal como as do filho.
Fecharam a porta à chave e saíram agindo tal como tinham combinado. Porém, quando entrou no carro, pediu para ir em direcção à casa do marido. Escrevera-lhe um bilhete como se tivesse sido escrito uma semana depois, no dia da chegada de Francisco de férias, e meteu-o na caixa do correio da casa ao lado. Rezava para que o vizinho pensasse que tinha sido engano e o colocasse no sítio certo sem comentar o dia em que o tinha recebido. Como no dia seguinte se levantariam muito cedo era altamente improvável que o vizinho lho entregasse imediatamente. Assim, quando regressasse leria o bilhete que dizia sumariamente que tentara falar-lhe e que o telefone desligado não o permitira, comunicando-lhe também que iria ‘passear’ com o filho e logo que possível, dariam notícias.
Como tinha tido o cuidado de pedir ao taxista que parasse uma rua antes daquela onde Francisco morava, foi a pé até à outra rua, em sentido contrário e aí apanhou outro táxi em direcção a Santa Apolónia. Levava consigo quase 500 euros, um saco com meia dúzia de coisas, entre as quais as fotografias mas onde já não constava a de Francisco, e algo lhe dizia que se ia passar algum tempo até regressar de novo.
As viagens de táxi eram angustiantes como quase tudo desde que saíra da prisão. Pensava se apareceria alguma operação stop, se o táxi tinha um furo, tudo lhe passava pela cabeça e não perdia aquela sensação de estar a sonhar.
Quando chegou à estação agiu como combinado; não viu o filho mas pensou que ele devia andar por ali, cumprindo a combinação e não se aproximando; dirigiu-se à bilheteira e registou com agrado que havia fila na bilheteira. Óptimo, assim não seria notada.
Pediu uma cama e o homem perguntou-lhe em que classe, enumerando as disponíveis. Decidiu-se pela turística pensando que devia ser a que levava mais gente e era mais um passo para não darem por ela.
Viu que faltava um quarto para as dez, foi beber um café e comprou uma mão cheia de revistas, tal como viu fazer a outros passageiros. Tanto tempo sem ler coisas frescas, mesmo que fossem sobre o jet set nacional ou sobre as novelas que não via há séculos, criaram-lhe uma perspectiva agradável. Sentia uma euforia interior por poder fazer o que lhe apetecesse, mesmo que fossem coisas simples, como entrar num bar e pedir um café.
Não via Paulo em lugar algum e começou a ficar de tal forma nervosa que sentiu vontade de vomitar, uma vontade que não conseguiu controlar e dirigiu-se à casa de banho da estação. Quando ia a entrar, saiu um polícia, o que a deixou pálida de tal forma que o homem perguntou-lhe se se sentia bem. Respondeu que sim, mas que acabava de chegar e costumava enjoar no comboio. O homem deixou-a entrar na casa de banho, onde lavou a cara e imediatamente se sentiu melhor. O filho andava por ali e devia estar preocupado de não a ver. Olhou-se profundamente ao espelho e pensou Tu tens coragem para isto e para muito mais. Aguentas-te três anos naquele sítio, aguentas tudo. Não conheces o motivo pelo qual aqui estás nem porque vais fazer o que vais fazer, mas há uma razão forte e brevemente vais ficar a conhecê-la.
Saiu da casa de banho e dirigiu-se à gare. Continuava sem avistar o filho, mas entrou no comboio. Acabou por sair novamente pois a carruagem não era aquela e um dos revisores encaminhou-a para a carruagem certa. O comboio era enorme e levariam algum tempo a encontrar-se; ia deixar que começassem a andar e ia procurá-lo. Deitou-se na cama da pequena divisão que lhe serviria de quarto nessa noite e fechou os olhos, com o coração a bater descontroladamente e a sensação de náusea ainda presente. Acordou estremunhada com o revisor a bater-lhe à porta e a pedir-lhe o bilhete. Sentiu o andamento do comboio e perguntou:
- Onde estamos?
- A chegar ao Entrocamento.
E o Paulo? Onde estava? Teria perdido o comboio? Teria desistido? Sentiu um nó no estômago, mostrou o bilhete, e quando o revisor ia sair, baixou-se, apanhou um papel e perguntou:
- Isto é seu?
Tirou o papel das mãos do homem, que avançou de couchete em couchete e pensou que estava farta de cartas por baixo da porta. Quando leu sorriu.
Mãe
Quando acordares vai ter comigo ao bar do comboio. Só o apanhei na estação do Oriente pois assim nem sequer entrámos na mesma estação
Bjs

Suspirou de alívio. O filho estava no comboio. Agarrou na mala de mão e foi avançando à procura do bar. Avistou Paulo assim que entrou, mas verificou que ele estava acompanhado por um casal estrangeiro. Pediu um chá e uma torrada e, como todas as mesas estavam ocupadas, dirigiu-se à do filho e perguntou se se podia sentar ali. O rapaz fez o papel na perfeição, disse que sim e continuou de conversa com o casal de espanhóis. Finalmente lá se foram embora e ele disse que assim que entrara fora procurá-la, mas encontrara-a a dormir, motivo pelo qual se viera ali sentar e lhe deixara o bilhete.
- Já estou um bocado farta de bilhetes e de cartas. Ansiei por elas durante três anos e agora em dois dias recebo mais correspondência que o Pai Natal...
O filho riu-se da comparação e a mãe continuou:
- Paulo, estou muito nervosa... estaremos a fazer bem?
- Calma... está tudo bem e vai correr tudo bem... vamos deitar-nos e quando acordarmos estamos em Madrid.
A carruagem bar estava meio vazia e lá foram aos tombos até à cama dela.
- Não sei se vou conseguir dormir...
- Eu fico aqui até adormeceres mãe. Olha e amanhã quando chegarmos à estação?
Ela não parava de suspirar e sentiu novo aperto no peito: ainda nem tinha pensado nisso. A estação seria longe do aeroporto? Bem, tinha ouvido dizer que o aeroporto de Lisboa era o mais próximo do centro da cidade de todas as capitais da Europa logo, partindo do princípio que a estação seria no centro da cidade, o aeroporto não devia ser perto da estação.
- Fazemos da mesma maneira: cada um apanha um táxi diferente e encontramo-nos lá.
- Olha eu estive a perguntar aqueles dois como ia para o aeroporto e eles disseram que de metro não chega a meia hora. Tu podias ir de táxi e eu de metro, o que achas?
- De metro? E se te perdes? Se há um atraso, uma avaria, sei lá...
- Mãe, não vamos pensar nisso... mas eu acho melhor. Olha outra coisa, nos passaportes diz que somos brasileiros, não era melhor começarmos a treinar?
Enquanto dizia isto imitava o sotaque brasileiro e conseguiu arrancar um sorriso à mãe. Combinaram tratar-se desde já pelos novos nomes, embora ela tivesse reticências sobre a utilização do sotaque.
Paulo ficou com a mãe até ela adormecer e só depois se foi deitar.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - XII

Minha querida Irmã

Finalmente és livre de novo. Nem imaginas a nossa alegria...
Lamentamos não vos poder ver já, mas vamos fazer os possíveis para ir ao teu encontro em breve.

À medida que lia estas palavras ia chorando pela emoção da carta em si e a constatação que não se iriam encontrar tão depressa criou-lhe uma amargo na boca que a obrigou a baixar o tom de voz da leitura. Mas onde estaria esta gente que não aparecia, pensava ela com alguma raiva de permeio, continuando a ler.

Tudo isto parece saído da pena do nosso adorado Robin Cook.
Já viste as fotografias dos teus sobrinhos? Mandei duas ao Paulinho, pois ele também não os conhece. Devemos-te uma explicação sobre o motivo do nosso afastamento do Francisco. Não te vou esconder nada: ele nunca acreditou na tua inocência e garanto-te que só não trouxemos o Paulinho porque ele é pai dele e não deixou. Mas agora tudo será diferente, embora ainda tenhamos que ser filhos dum Deus menor. Por favor não faças nada que possa prejudicar-te e mantêm-te sossegada e calma. Adorávamos presenciar o teu reencontro com o Paulinho, que deve estar enorme e já não deve brincar com o Pinóquio nem gostar de ler estórias do Zé Carioca.
Não posso deixar de te dizer que descobri uma pérola!
Provavelmente já a manuseaste e já te deu as mesmas delícias que me tem dado e iguais ou semelhantes gargalhadas. Chama-se O Ingénuo e vem da pena de Voltaire logo, é coisa recente, dada à estampa com certeza absoluta durante estas tuas ‘férias’, aproveitando a tua ausência... não tem mais que meia dúzia de páginas e conta uma história fabulosa onde cada palavra se identifica com crítica social e grita bem alto, como um xis na janela.
Não me alongo mais, desejo que o nosso reencontro seja em breve para te ver e te abraçar.
Conforta-te a ler a Bíblia e recebe beijos de muito amor e confiança de todos nós.
T.

Ainda não tinha terminado a leitura da carta e rebentou num pranto enorme, acumulado, misturado de saudades incríveis e de uma enorme confusão. A carta era estranhíssima mas o facto da irmã ter mencionado um qualquer livro que lera mostrava-lhe que para ela tudo era como antes e que nada mudara. À memória vieram-lhe momentos que até à leitura da carta lhe pareciam ter acontecido há várias eternidades e agora, de repente, pareciam ter sido ontem, de cumplicidade com aquela irmã, que lhe manifestava o seu amor daquela forma. Por outro lado, não sabia o que pensar da irrealidade de tudo aquilo, era da sua cabeça ou havia uma carta secreta dentro daquela carta, escrita com palavras cujo sentido só ela entendia?
O filho abraçava-a e ela não conseguiu esconder-lhe o que pensava e depois de ter limpo as lágrimas novamente disse:
- Esta é a carta mais estranha… para começar, nós detestávamos Robin Cook, ao contrário do que ela diz, ou seja, primeira mentira. Depois, nova referência aos filhos dum Deus menor, o que quer dizer que me está a mandar ficar calada. Depois, o Pinóquio e o Zé Carioca… dois mentirosos inveterados…
- Mãe, as coisas que tu vês numa simples carta… e que mais?
- Para finalizar, isto se não me está a escapar nada, o xis na janela, que significa que eu devo confiar… mas confiar em quê e em quem?
- Não sei mãe… acho isto tudo muito estranho…
- Escreve claramente para eu ficar sossegada e depois enche a carta de pistas que me indiciam mentiras! Mas a tua tia estará bem de saúde…? – disse, enquanto lhe passava pela cabeça que a irmã pudesse ter enlouquecido – Até me pede para ler a Bíblia!
- E esse outro livro de que ela fala?
- O Ingénuo? Não sei o que é...
- Teremos isso cá em casa mãe? Se calhar quer-te dizer qualquer coisa... tens a certeza que não o leste?
- Absoluta! Por uma simples razão, é que se eu o tivesse lido, ela lembrava-se; mas tens razão, lá dentro pode estar qualquer coisa, mas agora deixa-me reler isto tudo outra vez.
Enquanto se voltava a sentar no sofá poeirento o filho levantou-se como se o assento não aguentasse duas pessoas ao mesmo tempo e quando um se sentasse o outro tinha que se pôr automaticamente em pé. Dirigiu-se a uma das estantes e perguntou com pressa na voz:
- Mãe, temos uma Bíblia cá em casa, certo? Onde está?
- Onde está… onde está? – respondeu a mãe levantando-se novamente e começando à procura da Bíblia pois mesmo sem terem dito nada, ambos pensaram o mesmo, e foi com uma enorme excitação que tiraram o grosso volume encadernado a castanho duma das prateleiras e nem queriam acreditar quando viram cair de dentro dele um envelope.
Rasgaram-no apressadamente e ficaram estupefactos ao encontrarem dois passaportes com nomes falsos – ao lado das suas fotografias estavam os nomes de Rosa e Luís, de naturalidade brasileira - indicações para ir até Madrid, aí apanhar um avião e não levar bagagem. O cartão com estas recomendações era de pequenas dimensões e estava escrito a computador. Por cima tinha uma fita-cola transparente a fazer um xis.
Agora não tinha dúvidas, a sua irmã, a sua família toda tinham enlouquecido! Teriam ficado tão perturbados com a sua prisão que tinham perdido o juízo? Mas que loucura era aquela? Ela tinha saído da prisão no dia anterior e já lhe tinham posto em casa um passaporte falso? E o filho? O Paulinho era menor… mas estavam todos malucos, ou quê?
Paulo andava atrás dela a acalmá-la mas parecia não ter qualquer efeito tranquilizante sobre a mãe que, ora ria ou chorava, lamentando a sua pouca sorte.
- Querem matar-me do coração? Será isso? – os olhos quase lhe saltavam das órbitas com o espanto de tudo aquilo – Eu que resisti a três anos de cadeia, agora saí para isto…?
-Mãe, mãe olha só… – dizia o filho com um dos passaportes na mão – nasci em 1992! Sou maior! Este passaporte diz que tenho 18 anos!
Mas a mãe não o queria ouvir, era emoção de mais para um dia só, o pequeno almoço do dia anterior fora tomado numa prisão, tinha saído dela pela porta principal com cumprimentos das guardas e desejos de boa sorte, soubera que o mundo que deixara cá fora estava virado do avesso e agora ainda isto? Que raio de brincadeira de mau gosto vinha a ser toda esta história?
As cartas dirigidas ao filho cheias de pistas, a carta dirigida a si própria – e metida debaixo da porta! – cheia de sinais de mentiras! Os documentos falsos e as indicações para fugir do país, raptando o seu próprio filho? Mas onde estava aquela gente com a cabeça? Saberiam o que era estar-se preso? Porque razão lhe indicavam que agisse de forma a voltar para a cadeia? Eram demasiadas perguntas sem resposta, isto sem falar do facto indiscutível que estavam a ser vigiados ou seguidos, caso contrário como lhe eram entregues as cartas e como lhe tinham posto o envelope dentro da sua própria Bíblia? Ela é que fora presa, acusada de ter traficado droga, mas aqueles comportamentos eram dignos duns mafiosos quaisquer! Em que se teria metido a sua família?
Estava tão absorvida por toda aquela loucura que quando o telemóvel do filho tocou, deu um grito e dois passos atrás, assustada.
- Calma mãe… é só o telefone – tranquilizou-a o filho.
- Olá pai
- …
-Sim, está tudo óptimo… levantámo-nos agora
- …
- Não pai… eu fico aqui com a mãe.
- …
- Pai, ouve-me por favor… eu não vou de férias contigo, vou ficar aqui com a mãe – e levantando a voz acrescentou – e não vamos discutir pai, por favor, hoje não…
- …
- Tá pai… tá… daqui a pouco vou a casa
- …
- ‘pa ti também.
O rapaz desligou e abraçou a mãe.
- Mãe, acho que a tia quer que tu deixes a carta aqui para se alguém a ler, pensar que ela te aconselha a fazer tudo direitinho… não achas?
- Paulo… não acho nada… diante disto tudo estou incapaz de achar seja o que for…
- Olha, vamos comer, sim? – disse-lhe o filho para a acalmar -Vamos a uma pastelaria nova que abriu há uns meses e tem uns pães com chouriço divinais. Vamos esquecer esta história toda por uma hora, mãe…
A mãe nem conseguia sentir o bem estar com que sonhara que seria a primeira noite fora da prisão, sem barulhos, sem toques para o pequeno almoço, sem guardas e sem tabuleiros e louça de metal. Sentia que tinha sido pisada por uma manada de elefantes e achava impossível esquecer fosse o que fosse, porém a fome falou mais alto. Antes de saírem ainda pensaram o que fazer com as cartas e com os passaportes, manifestando uma certa inquietude pelo facto de alguém ali ter entrado, pois era óbvio que isso tinha acontecido e, à falta duma ideia melhor puseram tudo na mochila de Paulo e levaram-na com eles.
Não se cansava de pensar na referência ao xis na janela, sinal indiscutível que devia confiar, e que vinha dos tempos em que viam os Ficheiros Secretos, bem como a necessidade de segredo absoluto, dada pela indicação dos filhos dum Deus menor, cuja acção se centra numa rapariga muda.
A sua saída da prisão coincidira com as férias escolares e passou-lhe pela cabeça agarrar no filho e meter-se no avião, sem dizer nada ao – ainda – marido. Depois pensou que viriam atrás dela uma vez que o filho era menor e que passaria o resto da vida na prisão, não, não, não, não podia embarcar naquela loucura, tinha que seguir as indicações expressas na carta, esquecendo as entrelinhas, os passaportes e tudo o resto. Por outro lado, a sua família era tudo para ela e a ideia duma aventura assim, de mão beijada, não deixava de a atrair, tanto mais que o filho não se calara um segundo incentivando-a a aceitar.
- Mãe, é fácil... o pai vai agora de férias e eu fico contigo... quando ele for embora, nós também vamos e tu podes dizer que lhe telefonaste e ele nunca atendeu.
- Tu estás tão doido como a tua tia, o teu tio e os teus avós!- respondeu-lhe ela, abrindo-lhe os olhos pela primeira vez.
- Mãe, tu própria viste as pistas que ela te deixou, leste as cartas dentro das cartas… por favor, deve ser qualquer coisa muito importante… temos que ir… mãe…
- Vamos dizer ao teu pai que ficas comigo esta semana. Não quero falar daqueles doidos agora.
Paulo ouviu então mil pedidos e recomendações de segredo absoluto sobre tudo aquilo, mesmo ao amigo mais próximo que ele jurou cumprir.
Enquanto o filho falava ao telefone com um amigos, e antes ainda de ir a casa do pai buscar roupa e reafirmar que não viajaria no dia seguinte com a sua nova família, ela deteve-se a pensar como é que a irmã, cuja última actividade que lhe conhecera era entregar correio numa agência de publicidade, tinha dinheiro para estas coisas, e que contactos mantinha para mandar fazer, por exemplo, passaportes falsos. O que teria acontecido em três anos que ela ainda não sabia?
Era sábado. Durante três anos pouca importância tiveram os dias da semana, à excepção de domingo onde, quem queria ouvia missa. Foi com o filho e ficou a saber onde era a casa nova de Francisco, que reagiu tal como ela esperava: fez um pé de guerra à porta da sua nova bela casa, onde não lhe foi franqueada a entrada, insistindo que o filho não ficaria com ela, nunca na vida, e ela pensou que iria novamente para a prisão, não por passar droga mas por homicídio do próprio marido.
Paulo berrou e gritou e ameaçou com mil argumentos incluindo que fugiria na primeira oportunidade se o pai não o deixasse ficar com a mãe.
- Uma noite, uma noite só e já lhe fizeste a cabeça, não foi?
Francisco destilava raiva e olhava-a com os olhos semicerrados.
– Pai, a mãe não...
- Cala-te! Já disse que vens comigo e não ouço nem mais uma palavra.
- Paulo, vai a casa por favor e deixa-me falar a sós com o pai por favor.
O rapaz olhou os dois com as lágrimas a rebentarem-lhe pela cara abaixo, ainda hesitou, abriu e fechou a boca, mas lá deu meia volta e deixo-os sós.
- Francisco, eu sei que tu... – começou ela.
- Tu não sabes nada! Tu não sonhas o que é que eu passei nestes anos, eu e o Paulo! Tu não imaginas o que foi lidar com as pessoas, com mil perguntas, com sorrisos fingidos a dizerem ‘Coitadinho’, por ironia, aquela palavra que tu odeias! Tu não sabes nada...
- Francisco, posso falar?
- Não, não podes... acabaste de sair da prisão, ele é teu filho, é verdade, mas não vais ficar com ele, nem hoje nem em tempo algum. Olha bem para ti... não tens trabalho, a tua família abandonou-te, não tens do que viver, vais fazer o quê? Escrever um livro sobre a vida na prisão e esperar que renda e viver disso? O meu filho vai comigo de férias como estava planeado e se tu gostas dele, se amas o teu filho, o bom senso diz-te para fazeres como eu digo, pois sabes que eu tenho razão.
As lágrimas corriam-lhe pela cara misturando a tristeza com a confusão de sentimentos, emolduradas por uma gigantesca desilusão.
- Francisco, tu sabes o que foram para mim esta longa sucessão de meses? Tu consegues ter uma pálida ideia ao menos? Não consegues, tu...
- Deixa-te de...
- Não te interrompi! Ouve-me agora a mim e não mais teremos que falar! Não quero nada de ti, nada! Mas o Paulo é meu filho e tem 16 anos... se formos a tribunal, o meu bom comportamento vai ser tido em consideração e vai prevalecer porque eu sou mãe! Vão perguntar-lhe com quem é que ele quer ficar... eu vou estar empregada, sim porque eu vou começar a procurar hoje já e ainda há pessoas boas que me darão emprego, e ele vai dizer que quer ficar comigo! E ainda há outra razão para ele ficar comigo: ele sabe e acredita do fundo do coração na verdade: eu sou inocente, coisa que tu nunca questionas-te porque me deste logo a sentença, ainda antes do juiz! Por isso Francisco, se não queres uma guerra para a vida, e eu faço-ta até depois da eternidade, deixa o Paulo ficar comigo! Deixa o Paulo escolher!
O marido não a olhava de frente, cerrava os dentes na direcção do infinito, com vontade de lhe bater. Se fora declarada culpada, é porque havia motivos para isso e agora, depois das dificuldades que ele tinha tido durante aqueles anos, a educar e a tomar conta do filho, como é obrigação dos pais, ela aparecia e estragava tudo? Por outro lado, ele sabia da teimosia dela quando metia uma coisa na cabeça e os mesmos anos que ele vivera só com o filho, a tentar domar-lhe o espírito rebelde, parecido com a mãe, sempre com respostas na ponta da língua como se o pai fosse culpado de eles estarem na situação em que estavam, ela tivera tempo para pensar o que faria se isto acontecesse. Além disso, o filho, só para o chatear, era bem capaz de fugir de casa ou fazer disparates ainda maiores. A sentir uma raiva enorme, mas sem querer ceder, disse:
- Deixa-me falar com a Adelaide, que...
- Com quem? Tu estás bêbado? A vida do meu filho não é discutida com outras pessoas sem ser o pai ou mãe! Decide-te aqui e agora!
- Vê como falas... enquanto estavas a cumprir aquilo que o tribunal determinou – e Francisco carregava e a arrastava as palavras para as fazer doer ainda mais – ela ajudou-me e muito e ajudou o Paulo... se ele te contar a verdade, já que dizes que ele acredita na verdade, ele vai-to contar.
- Não digo o contrário, apenas te reafirmo que ninguém decide por nós e por ele: só nos três.
Ficaram em silêncio uns momentos, Francisco virou-se de costas, fechou os punhos e baixou a cabeça. Olhou na direcção da sua casa e viu Paulo encostado à ombreira, à espera do fim da conversa entre os pais. Acenou-lhe com um braço, fazendo-lhe sinal para que se aproximasse e disse:
- Paulo, ouve e não me interrompas: ficas com a tua mãe mas quando eu voltar, vamos ao tribunal e eu vou pedir para ficares comigo e...
- Mas pai eu...
- ESCUTA-ME! Se queres ficar em Portugal esta semana é assim e eu confio em ti para cumprires este acordo quando eu vier. Vamos esperar que a tua mãe encontre trabalho, que estabilize a vida dela e depois, depois logo se vê novamente... entretanto já tens dezoito anos e depois então decides o que...
- Pai! Vou esperar dois anos?
- Ou é assim ou... – Francisco levantara a voz e ela decidiu intervir.
- Ouçam-me –e virando-se para o filho – Paulo, vamos fazer assim como o pai diz, vamos passar esta semana juntos, vamos conversar os dois e voltamos a falar com o pai quando ele vier. Está bem assim para todos?
Para Francisco não estava nada bem, mas lá condescendeu deixar o filho com a suposta passadora de droga, exigindo mil garantias e expondo repetidamente o desgosto e a vergonha por que tinha passado por culpa dela, bem como a serenidade da sua vida actual, coisa que ele não ia permitir que uma ex-presidiária lhe roubasse. Ela ainda se riu interiormente e pensou que fora presa sim, mas nunca acusada de roubo e que mesmo que lhe roubasse alguma serenidade, ele tinha-a para dar e vender, pensou tudo isto, mas nada disse, com receio de que ele voltasse atrás na sua decisão e estragasse os planos todos. Calou-se com um nó gigante na garganta ajudado pelos papéis que ele lhe entregava e onde pedia o divórcio.
- Queres que assine já?
O silêncio dele dizia-lhe que podia ler e que os esperava assinados quando regressasse uma semana depois, duma viagem que ela adivinhava guiada por alguém com um bandeirinha na mão, ou um chapéu de chuva, dependendo do tempo e do lugar para onde iam, com o rebanhinho todo atrás em ordeira filinha.
Despediram-se com a ligeireza fria duns adeuses rosnados e Paulo disse ao pai:
- Eu ligo mais tarde...
- Não, não ligas, tu ficas aqui comigo o dia de hoje! Temos que conversar os dois sozinhos sobre a lavagem ao cérebro que ela te vai fazer.
Ouviu aquilo e sentiu perder a força dos braços. A onda de lágrimas que quis invadir-lhe os olhos foi travada por uma onda enorme de revolta e de humilhação. Beijou o filho em silêncio e afastou-se a passos largos em direcção a casa, sem vontade de visitar fosse quem fosse.
Francisco passou o resto do dia com o filho a orientá-lo sobre o que devia fazer na sua ausência e a acautelá-lo sobre a mãe pois as pessoas quando saem da prisão vêm com certos vícios, paranóias e manias. Garantiu-lhe que teria o telefone ligado 30 horas por dia e exigiu-lhe que lhe ligasse à menor coisa, para além do telefonema diário que ele próprio faria para o telemóvel do filho. Adelaide, a sua companheira, ainda tentou demover Paulinho, falando-lhe da maravilhosa estância de férias para onde iriam e prometendo-lhe comprar este mundo e o outro, tendo obtido tanto sucesso como um palhaço num cemitério. Jantaram cedo e Paulo conseguiu que o pai o levasse a casa da mãe, onde esta o esperava com maior ansiedade do que tinha sentido para sair da prisão.
Nessa noite, o filho chorou intensamente e contou-lhe que houve momentos muito difíceis e que logo no primeiro ano tinha passado na escola graças a uma professora que o ajudara muito pois, caso contrário, teria chumbado. A mãe ia acariciando-lhe a cabeça de forma terna e dizendo-lhe que tudo fazia parte do passado. Mas o miúdo tinha uma pergunta, entre muitas, que o queimava:
- Mãe… achas que ficaste com as culpas de alguém que tu conheces?
- Não sei... não sei nada... e agora não quero saber, não quero pensar nisso... na prisão não há muito tempo para pensar ao contrário do que te possa parecer... temos tarefas distribuídas e chegava ao fim do dia cansada... só com tempo para pensar em ti, mais nada. Alguém da agência falou convosco?
- A D. Elizabete é quem telefona sempre... manda beijinhos e diz-me que se precisar de alguma coisa que lhe diga.
- Ai a D. Elizabete...
- Mãe, ela até me dá prendas nos anos e no Natal e eu... bem, eu até pensei que ela...
- Ela o quê? – quis saber a mãe
- Bem, eu até pensei que ela fazia isto como uma forma de... uma forma de se desculpar...
- Oh filho, não acredito nisso- disse ela percebendo o raciocínio do filho. – A D. Elizabete não está metida em nada, além disso, ela sempre te deu prendas no Natal e nos anos, verdade?
Conversaram ainda por bastante tempo, vendo e revendo as fotografias de Santiago e Elena, tiradas num fundo com cenário de árvores e floresta, tão bonito que parecia verdadeiro. Finalmente, o filho adormeceu e ela sentou-se a fumar, com as palavras de Francisco dirigindo-se ao filho a ecoarem-lhe na cabeça “Temos que conversar os dois sozinhos sobre a lavagem ao cérebro que ela te vai fazer” e imaginando a conversa que teriam tido sobra a qual o rapaz nada dissera. Olhou a papelada que a irmã lhe enviara. Um envelope com mil euros, um cartão com o nome de alguém que os esperaria no aeroporto – Manuel Vega – e dois bilhetes de avião para Lima, a partir de Madrid, sem data marcada. Vinha também a recomendação da necessidade de telefonar para determinado número a informar que viajariam com, pelo menos 24 horas de antecedência.
Lima. Então eles estavam mesmo no Peru.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - XI

Paulinho querido
Nunca esqueças que mesmo em dias carregados de nuvens, o sol está lá atrás sempre presente, não nos abandona e mesmo que não o vejamos ele dá-nos vida. São palavras da tua mãe, deves tê-las ouvido muitas vezes, e tens que acreditar nelas. Por mais bêbeda que esteja a casinha, o resultado final vai ser feliz.

- Olha isso aí... não percebo o que isso quer dizer...
- A casinha bêbeda? – perguntou a mãe a quem as lágrimas caiam pela cara baixo.
- Sim. Isso quer dizer o quê?
- Espera que já te explico...

A tua mãe está inocente e nem que demoremos vinte anos vamos provar isso. Sabes que queremos muito estar contigo mas agora não é possível. O teu pai gosta muito de ti e tens que o perdoar quando ele se arrepender de não ter acreditado na tua mãe.
É importante que dês a ler o que te mando à tua mãe logo que ela esteja contigo.
Não te esqueças de comer um pãozinho de leite todos os dias e...

- Oh mãe... eu nem gosto de pão-de-leite! E ela sabe isso... – interrompeu o rapaz.
- Espera filho – respondeu a mãe, para quem aquilo fazia sentido e continuou:
Não te esqueças de comer um pãozinho de leite todos os dias e estuda muito, bem sabes que a escola é a coisa mais importante.
Recebe beijos e abraços muito fortes de todos nós e rios não poluídos de saudades
TT

- Atão mãe...?
- Espera... dá-me outra... explico tudo no fim – disse-lhe a mãe ainda digerindo o TT de Tia Teresa e adoçando a ponta dos dedos sob a fonte arial, mas imaginando a caligrafia redonda e perfeita da irmã.

Paulinho querido
Ou será só Paulo? Deves estar enorme...mas garanto-te uma coisa, não estás maior do que as saudades que temos de ti...
Esperamos que a escola vá bem e que te apliques, sabes como isso é importante para o futuro e como a tua mãe deve pensar nisso. O tempo vai passar depressa e brevemente estaremos juntos de novo. Adorava saber que leituras fazes, se já leste Júlio Verne e se o trauteias.

- Mãe... quem é que trauteia Júlio Verne?
A mãe não conseguiu evitar uma gargalhada e continuou:

Deves ler também autores estrangeiros e aconselho-te as Vinhas da Ira, dum autor americano chamado John Steinbeck. Como é um bocado pesado podes compensar vendo um filme divertido, por exemplo o Beijo Francês. Garanto-te que te vais rir.
A fotografia que enviamos é do Santiago, teu primo, com quem esperamos que tu te dês muito bem.
Os avós mandam galáxias de beijos e nós também.
TT

Paulo estendeu-lhe outra dizendo:
- A seguir foi esta.

Querido Paulinho
(vais ser sempre Paulinho até aos 100 anos)
Já namoras? Deves estar um rapaz fantástico e andar por aí a partir os corações das miúdas lá da escola, temos a certeza! Imagino-te como se fosses uma maravilha do mundo, a mais alta, a mais cultivada, a melhor. Todos os dias abrimos os braços como se fossem asas de desejos, para te abraçar e damos graças por faltar cada vez menos tempo para nos voltarmos a ver e temos a certeza que a ânsia da tua mãe por fazer o mesmo é enorme e calorosa, como o continente africano de que ela tanto gosta. Por falar nisto, já viste um filme que se chama África Minha? Tem paisagens encantadoras e conta uma história muito bonita. Não percas a oportunidade e vê-o e quando estiveres com a tua mãe conversam sobre ele.
Tem força Paulinho, que isto está quase a acabar e vamos encontrarmo-nos em breve.
Triliões de beijos e saudades
TT

Demoraram imenso tempo a ler dez cartas, pois ela leu algumas três e quatro vezes, a pensar se não lhe estaria a escapar nada, viram as fotografias de Santiago e Elena dezenas de vezes e quando terminaram, o rapaz pediu-lhe irrequieto:
- Vá lá mãe...
- O pai leu as cartas? – perguntou a mãe inquisitiva.
- Sim, leu tudo.
- E tu disseste que não percebias algumas coisas?
- Ele também não percebeu! Disse que a Tia Teresa tinha parvoíces destas e que devia pensar que eu já tinha vinte anos para perceber certas coisas...
- Como te hei-de explicar isto... – começou a mãe indecisa e trémula, de pé, a andar dum lado ao outro da sala– quando a tua tia disse para mas dares a ler era porque, na verdade, estas cartas são para mim e estão cheias de pistas!
- Pistas? Pistas de quê? - o rosto do rapaz iluminou-se.
- Ela dá-me informações através das cartas, ora vamos ver: a casinha bêbeda é dum livro, cujo nome não me lembro, e conta a história de duas irmãs separadas.
- Vocês!
- Sim, nós. O pãozinho de leite é doutro livro que se chama O Mistério do Jogo das Paciências e...
- E quer dizer o quê? Que tenhas paciência? - perguntou o jovem impaciente.
- Calma... sim... pode ter várias interpretações: para eu ter paciência, que há aqui um mistério qualquer e...
- Há isso há, estou a ver que sim...
- ...e também pode fazer referência a um jogo... mas não estou a ver qual... nós jogávamos tanta coisa… cartas, trivial, personagem incógnito… espera… - e a mãe de repente sorriu – é isso!
- Isso o quê mãe? – perguntava-lhe o filho ansioso.
- Personagem incógnito! Eles estão incógnitos em qualquer sítio, só pode ser isso!
- Incógnitos?? Porquê??
- Isso também eu queria saber, mas nós chegamos lá… se ela nos manda estas pistas é porque não pode falar, percebes? Mas ela quer dizer-nos alguma coisa…
- E o Júlio Verne trauteado? Quer dizer o quê?
A mãe continuava a andar dum lado para o outro com as cartas meias amarrotadas na mão a fazer raciocínios.
- Ela não se refere a um livro e sim a uma série da televisão com muitos anos e que era baseada num livro do Júlio Verne: Dois Anos em Férias! E eu passava a vida a trautear a música!
- Sim, mas quer dizer o quê? – perguntava Paulinho entusiasmado e acrescentando: - Eu tenho o livro, se soubesse já o tinha lido...
- Não sei bem... pode referir-se à minha ausência... mas ela sabia que eu adorava aquela história... e eu não adorei a minha estada na prisão... – ia dizendo a mãe mais para ela própria do que para o filho enquanto ia caminhando pela sala em volta dum sofá cheio de pó e a cheirar a mofo, e relia passagens das cartas.
- Leste As Vinhas da Ira? - perguntou a rir.
- Não... li aí dez páginas mas aquilo não me entusiasmou... mas vi o tal filme e achei giro...
- A ideia não era fazeres nem uma coisa nem outra, mas ela quer-me dizer qualquer coisa ligada a vinhas, uvas, vinho...
- Ah pois era... no filme ele tinha umas vinhas na França!
- Isso mesmo! Só não percebo a razão de tanto segredo... mas havemos de descobrir... há aqui mais coisas... maravilha do mundo mais alta e cultivada... vês? Outra referência a culturas e depois fala em África Minha... - e voltando-se para o filho – viste o filme?
- Sim, ela tinha uma herdade em África! – disse Paulinho entusiasmado.
- I had a farm in Africa... – repetiu a mãe com os olhos marejados e acrescentou – tenho quase a certeza que a tua tia também tem uma... de quê e onde... não sei... e o motivo deste secretismo todo também me escapa...
- Mãe, a maravilha do mundo mais alta é no Peru... a tia estará no Peru?
A mãe encantou-se com o raciocínio do filho e com a respiração afogueada e o pensamento a grande velocidade disse que era uma possibilidade.
- Ainda há aqui qualquer coisa... – disse a mãe – ou então sou eu que já estou a ter visões...
- O quê, o quê? – quis saber o rapaz.
- Asas do Desejo... isto não é inocente... Asas do Desejo é o nome dum filme que conta a história dum anjo que voltou a ser homem...
- E...? – quis saber o filho.
- E... não sei bem... fala de regresso, é evidente. Dum anjo... que não devo ser eu... e não estou a ver quem é... bem, agora esquece...
- Atão e agora como lhes dizes que já saíste? Como é que eles vão saber que já leste as cartas e já decifraste essas pistas todas? Não temos um telefone para lhes ligar!
- Paulinho... algo me diz que eles já sabem e agora não podemos fazer mais nada. Só esperar...
Conversaram o resto do dia com muito carinho pelo meio, falaram do pai, de Adelaide a sua companheira, dos amigos, da escola, de jogos de computador, de futebol enquanto ela ia pensando o que fazer para descobrir a família e dava voltas sem fim à cabeça imaginando a razão de todo aquele mistério que se mantinha indecifrável.
Foi um dia e noite longos, com um intervalo para jantarem num restaurante familiar perto da sua casa, sempre com muito para dizer e adormeceram já de madrugada com ela a dizer-lhe que no dia seguinte iriam visitar duas das suas amigas.
Mas na manhã seguinte algo lhe mudou os planos e quando se levantaram viram um envelope que alguém metera por baixo da porta. Não tinha remetente mas o filho garantiu-lhe que era dos tios e dos avós.
Foi com enorme emoção que constatou o que já suspeitava, que eles sabiam que ela estava em liberdade. Abriu a carta lentamente como quem quer fazer durar o momento que antecede a felicidade.

Cáceres e Lisboa

Em Junho de 2005 participei numa conferência em Cáceres. As janelas dos prédios estavam literalmente inundadas de bandeiras e cartazes todos iguais. A cidade engalanava-se assim no âmbito do processo de candidatura a Capital Europeia da Cultura... em 2016!
Fiquei impressionada com aquele empenho, aquela dedicação e aquele planeamento. Sentia-se que o assunto era recorrente em conversas, era querido das pessoas e todos queriam um lugar naquela procissão de glorificação da cultura, seja ela qual for, entendida e vista como for.
Faço a transposição para a candidatura de Lisboa a Capital Mundial do Livro e verifico que em 2010 nem as datas anunciadas coincidem, uns dizem 2012 e outros 2013!
Ninguém fala do assunto, não há envolvimento público e se houver privado deve ser às escondidas...
Verifica-se uma enorme falta de vontade, excepção feita aos promotores e a meia dúzia de gatos, passo a expressão.
Imagino que se a Cidade de Cáceres não ganhar isso é um pormenor: já se conseguiu muito com a envolvência duma cidade inteira, com a perspectiva e a expectativa; já se exaltaram as vontades e se pôs a cidade a mexer e, o que é mais curioso, é que, em conversa, fiquei a saber que ainda acham pouco...
(Ler notícia da candidatura no Público)

12 de Fevereiro de 2007

Mana querida

Acabo de comprar a revista de viagens! Adivinhas o que lá vem? Outra carta minha!
Aqui ta envio, para em seguida me telefonares…
“Há algum tempo que suspeito que Deus é vosso prisioneiro.
Agora tenho a certeza e disso quero dar notícia pública! Têm que ser publicamente acusados! Enganam-se se pensam que não estou atenta… aos poucos, desde há tempos para cá, introduzem pinturas em vez de fotografias em reportagens feitas com mão divina, para as quais vocês fabricam a autoria. São pinturas de sonhos, daqueles sonhos coloridos e doces, onde tudo é pintado com pincéis feitos de nuvens… são pinturas de cenários de filmes e não da realidade… sim, não me queiram convencer que AQUILO existe…
Por um qualquer processo, com certeza também com recurso às tecnologias disponíveis, vocês cometem ilegalidades do tamanho do mundo… roubam sonhos íntimos de cada um de nós, comuns cidadãos, e usam-nos sem apelo nem agravo, fazendo-nos crer que existem mundos que não existem… quem poderia cometer tal acto, senão a própria mão de Deus? Que pintou um local, a que aí chamaram Provença, e cujas imagens nos aparecem como se fossem fotografias… mas não são… Muito me agradaria saber como fazem: transportam-se para outros mundos paralelos ao nosso com recurso à física quântica? Ou são mesmo telas pintadas por Deus, de paisagens onde só a Sua imaginação tem acesso?
Provença…? Onde diabo fica a Provença? Na França? Mas a França não é aquele sitio onde está uma torre que se pode subir, com um nome dum francês que também andou por aqui, em Portugal?… ah, a França é muito grande? Fraca argumentação para quem tem em seu poder o poder de fazer o que vocês fazem… e contudo, não posso deixar de o dizer, é tudo tão real, parece mesmo de verdade, as casas, as pessoas, as cores, a mescla de tudo e o texto muitíssimo bem alinhavado, como uma renda, um bordado divino…
É na mistura do conjunto que se percebe que tudo não passa duma ilusão! Não há falhas, buracos a serem preenchidos: as flores são perfeitas, o ocre das casas faz-nos sentir calor, o verde da água dá-nos frescura, as escarpas e os desfiladeiros obrigam-nos a sentir o vento, olhamos o circo romano e ouvimos gritos de centuriões, os arcos da abadia trazem-nos a calma que leva à reflexão…
Como puderam pensar que iam passar despercebidos? Como puderam pensar que todos iam olhar para o vosso trabalho e considerá-lo obra vossa, única e exclusivamente? Como puderam inventar locais que ainda não foram descobertos pelo Homem? Como puderam alcandorar-se a aprisionar Deus e a dar-lhe tarefas como escrever ou pintar… agora percebo o porquê de tanta gente andar com esta Bíblia nas mãos…”
Tua irmã do coração
Camila

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - X

O filho, agora com 16 anos, estava de férias escolares e proporcionou-lhe um reencontro quente e cheio de urgência de abraços e partilha de lágrimas. Jurou-lhe que estava inocente e que tinha sido vítima duma grande injustiça. Disse-lhe que estava desempregada mas que havia de se desenrascar. Que desejava acima de tudo que ele a amasse e que passasse algum tempo com ela. Que queria saber de tudo o que lhe tinha acontecido durante a sua ausência e carregava nele o olhar de desejo de perdão pela distância e calou-se surpreendida quando o rapaz lhe agarrou nos ombros e a abanou, obrigando-a a olhá-lo nos olhos e disse:
- Mãe, não acredito que tenhas feito nada daquilo.
- ...e não fiz... mas ninguém acredita em mim.
- Eu acredito mãe, e a tia também e a avó e o avô...
A menção à sua família provocou-lhe um suspiro que parecia electrizado e a fez acordar:
- Paulo, afinal onde estão eles? O teu pai nem me deixou espaço para lhe perguntar... os teus avós estão bem? Não me mintas por favor...
- Para dizer a verdade, não sei – o tom de voz era triste e afastou o olhar do da mãe - Não os vejo à bué, acho que vivem na Alemanha… escrevem-me de vez em quando, mas nunca mais os vi e não lhes posso escrever porque as cartas deles não têm remetente...
- O quê? Nunca mais os viste desde quando? Abandonaram-te? E as cartas não têm selos de correio? E carimbos? E olha...
- Mãe, calma... Não têm nada! Acho que eles pedem a alguém para os pôr na caixa do correio! Isto faz-me muita confusão, mas o pai diz que é melhor assim. Passado p’raí dois ou três meses de tu teres sido... sabes, presa, eles convidaram-me para jantar na casa dos avós e a Tia Teresa fartou-se de chorar e de me beijar e de me dizer que eu nunca a esquecesse e eu não percebi porque era aquilo. Depois disse-me que ia voltar à Alemanha com o Robin e até combinámos que ela me vinha buscar nas férias e...
- E foste à Alemanha filho? – perguntou tentando mostrar um sorriso.
- Não mãe... eles nunca vieram e passado algum tempo os avós foram ter comigo à escola e disseram que iam ter com ela e foi uma cena esquisita e...
Paulo começou a chorar e a mãe chorou com ele, enquanto pensava Que raio de coisa é que se passa aqui? Que não me fossem buscar à prisão é uma coisa, mas abandonarem assim o neto e o sobrinho...
Não, decididamente havia muita coisa a explicar.
- Paulo, querido, preciso que me contes tudo o que te lembrares. Este comportamento não é normal... e o teu pai o que dizia?
- Mãe, sabes como é o pai... achou bem o afastamento e ficou todo contente quando a Tia se foi embora. Houve sessões de gritos entre nós porque ele não queria que eu visitasse os avós porque eles iam estar sempre a falar em ti e o pai dizia que isso não era bom para mim... quando eles também se foram embora, pronto, ficámos só nós os dois... e ela.
A referência era clara à companheira do pai. Para o acalmar, a mãe, embora com dúvidas de convicção, disse-lhe:
- Não te preocupes... vamos encontrá-los.
Era-lhe difícil acreditar que a sua família tivesse desaparecido do mapa por vontade própria, mas cortarem relações com o sobrinho e neto, era outra coisa diferente que ela não compreendia. Havia ali um mistério qualquer muito estranho mas como não queria preocupar o filho e desejava acima de tudo aproveitar aquele reencontro, decidiu pôr o assunto de lado, pelo menos temporariamente e passaram o resto do dia a conversar enquanto iam dando um jeito à casa, suja como um castelo abandonado na Idade Média.
Por duas vezes o telefone do filho tocou e, das duas vezes, ela ouviu-o dizer a rir:
- Não posso falar, ‘tou com uma miúda...
Tudo era motivo de mais beijos e novos abraços, e risos e lágrimas. O filho estava enorme, alto como ela nunca imaginara, já tinha barba e uma voz que em nada se parecia com a vozinha do garoto que ela deixara há três anos com o pai. Fazia-lhe festas na cara e nas mãos sem se cansar e obrigou-o a dar inúmeras voltas para que o pudesse ver bem visto, sempre com interjeições de espanto e de admiração. O rapaz foi pondo-a a par do que acontecera no mundo durante a sua ausência: cataclismos naturais, guerras, eleições, mortes na família, etc. Algumas das coisas ela sabia pois as companheiras iam tendo informações através das visitas, coisa que a ela sempre fora negada. Paulo fez-lhe imensas perguntas sobre a prisão às quais ela respondeu de tal forma que ele lhe retorquiu:
- Algo me diz que tu estás a fazer um relato ‘vida é bela’...
Perante o olhar surpreendido da mãe, ele acrescentou:
- Mãe, lembras-te do filme ‘A Vida é Bela’? Aquele filme é uma treta... quem já tenha estado num campo de concentração sabe isso... não se vê ali lixo, nem ratos, nem nada... eles andam vestidos normalmente, nem sequer estão rasgados... e tudo o que me estás a contar eu já vi em filmes...
- E tu por acaso já viste algum campo de concentração para falares assim?
- Sim, já vi... fui com a escola e estive quinze dias num intercâmbio com uma escola polaca, perto de Cracóvia... tu terias adorado ir... sabes, nem todos quiseram entrar e o setôr que nos levou disse que quem não quisesse, não tinha que entrar. Mas eu fui porque sabia que tu ias gostar que eu visitasse o campo e pensasse em tudo o que vi.
A mãe não conseguiu esconder as lágrimas, abraçou aquele rapaz enorme que nem parecia o seu filho e com quem estava em dívida de afectos, especialmente beijos e abraços.
Deu-lhe razão e explicou-lhe que não era fácil falar daqueles momentos e pediu-lhe que ele lhe falasse do que acontecera logo a seguir à sua prisão. Ouviu o filho descrever-lhe a mágoa dos avós quando ela fora presa, a angústia do pai e a raiva que ele próprio sentira por saber sempre que a mãe tinha sido injustamente encarcerada. Disse-lhe que a tia Teresa escrevera cartas sem parar a pedir uma excepção para a visitar, coisa que nunca lhe fora concedida. Contou-lhe como ultrapassara a sua dor, com palavras e olhares que em nada se adequavam a um rapaz de 16 anos e a mãe leu nessa conversa que ele há muito se tinha tornado adulto pelas circunstâncias da vida.
Falou-lhe das amigas dela que ainda o procuravam e em como sempre lhe davam força e o animavam insistindo na sua inocência. Garantiu-lhe que elas não sabiam que ela saíra, caso contrário teriam dito alguma coisa e a mãe respondeu-lhe que era melhor assim, pois precisava de algum tempo para se adaptar e não queria visitas com a casa assim. Pediu-lhe para, na primeira oportunidade, lhe dar a ler as cartas que recebera da família e foi com imensa alegria que ouviu o filho dizer que as trouxera, pois a tia mencionara que era importante que ele lhas desse.
Retirou-as da mochila, estendeu-lhas e ela viu que estavam atadas com uma fita de cabelo que em tempos lhe pertencera. Começou a choramingar e limpou a cara quando o filho lhe disse:
- Mãe, há aí coisas que não percebo nada...
- Não percebes? Como assim?
- Começa a ler que eu digo-te...
A mãe começou a ler alto mas logo na primeira linha fungou e afastou as lágrimas. Aquilo fora escrito pela sua irmã e ela tinha a certeza que havia um motivo bem forte para todo aquele, aparente, abandono. A explicação residia ali, naquelas páginas e assim que as lesse tudo seria desvendado.
Passou as cartas ao filho e pediu:
- Lê tu, por favor.
O rapaz agarrou nos papéis e começou a ler.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A rapariga que não gostava de livros com capas dobradas - IX

Pensou que teria um ataque de coração antes de sair da prisão na manhã seguinte. Acordada há horas, sem conseguir comer devido à ansiedade, vestiu as suas roupas, meteu os únicos pertences, as fotografias, no cano das botas e foi chamada ao Director da prisão que lhe entregou uma carta proveniente de Santa Cruz e que a fez rebentar em pranto.
Era um postal mal alinhavado de Damiana desejando-lhe as maiores felicidades do mundo e pedindo-lhe que não a esquecesse. O director explicou que a carta estava com ele desde a sua transferência, mas que a reclusa pedira para lhe ser entregue na sua última manhã na prisão. A medo, mais da resposta do que de fazer a pergunta, quis saber:
- Por acaso, não tem mais cartas para mim...? Da minha família..?
- Lamento, não há mais nada, a não ser um conselho, que espero que acate: mantenha-se na sua vida sem fazer disparates. Como sabe, vai sair condicionalmente e ao menor desvio volta a fazer-nos companhia. Você é mãe e tem o direito e o dever de desempenhar esse papel, mas não esqueça que o dinheiro não é tudo na vida...
Ela percebeu onde o homem queria chegar e, com um arrepio na coluna, reviu mentalmente o seu julgamento e a acusação de tráfico de droga. Com um sorriso triste disse:
- Bem sei que não me acredita mas...
- Sim, você está inocente. Calcula as vezes que ouço essa afirmação? Nem lhe passa pela cabeça... agora, inocente ou culpada, vai sair em liberdade e está nas suas mãos ficar lá fora ou regressar para o interior destes portões. Felicidades.
Saiu a pensar que se fosse culpada teria recebido dinheiro e onde estava esse dinheiro, alguém o descobrira nesses três anos?
A guarda que a acompanhou ao gabinete do director, e que assistia à conversa, mantinha o ar de compaixão. Chamava-se Lina e tinha, na adolescência, sido acusada de roubo. Depois de se provar a sua inocência concorrera para guarda prisional e, num processo que até foi noticiado na comunicação social, por ser tão nova e ter sido antes acusada dum crime, conseguira o lugar. Era uma mulher que se dera bem com ela no primeiro momento em que se viram e que ela, interiormente, sabia ser uma pessoa que acreditava na sua inocência.
Lina levou-a para fora do gabinete do director e desejou-lhe as maiores felicidades na vida. Sorriu-lhe em forma de agradecimento, não conseguindo falar, com a voz embargada e dominada pelo pensamento que, lá fora, a poucos metros, estava a sua família, quem sabe há quanto tempo, há quantas horas perdidas, para a resgatar do inferno. Mas aquilo que tinha como certo afinal não correspondia à realidade.
Quando saiu da prisão ninguém a esperava à porta o que a fez sentir uma tristeza maior do que a que sentira quando fora presa. Ter-se-iam esquecido ou estariam atrasados? Ou pior ainda, pensariam que ela era culpada e não a queriam ver? Em três anos pensa-se muito e alguma coisa devia ter acontecido para não estarem ali em romaria. Voltou a pensar nos pais e na casa que tinham posto à venda e sentiu uma mistura de sentimentos e emoções que a confundiam. Estava livre, mas presa à beira daquele portão. O que fazer?
Cansada de esperar, começou a caminhar e viu uma paragem de camionetas com duas mulheres sentadas no banco. Ficou ali à espera não sabia bem de quê, com a secreta esperança que, de repente, ia parar ali um carro com a sua família onde todos falariam ao mesmo tempo dizendo que tinham tido um furo ou qualquer coisa do género que os tinha atrasado. Mas a camioneta chegou primeiro e ela apanhou-a em direcção a Oeiras.
Sentada na parte traseira, pela primeira vez, pensou que estava em liberdade, e vendo a paisagem a correr pela janela, apesar da enorme desilusão, conseguiu sorrir.
Saiu junto à estação de comboios e apanhou um em direcção a Lisboa, já decidida a procurar o marido no emprego, com urgência de notícias do filho. Enquanto o comboio avançava foi ficando com um misto de euforia por se aperceber cada vez mais que estava em liberdade, mas aumentava-lhe em simultâneo o nó no estômago, convencida cada vez mais que uma desgraça horrível tinha acontecido:
- Porque não foram buscar-me? Nem o meu marido, nem o meu filho?
Chegada ao Cais do Sodré, com quase duas horas de liberdade, foi a pé em direcção ao Terreiro do Paço, devagar, a gozar o ar livre e a pensar que podia mudar de passeio se bem lhe apetecesse. Subiu a Rua Augusta não detectando grandes diferenças daquilo que se lembrava e desembocou na Praça do Rossio. Avançou em direcção à Avenida da Liberdade onde o marido trabalhava, ou melhor, achava ela que trabalhava pois depois da saída sem vivalma à porta da prisão, estava a preparar-se para tudo.
Porém, não havia preparação para o choque que sentiu quando viu o olhar frio e distante do marido a olhá-la e, num reencontro cruel, em vinte minutos descobriu que o marido vivia com outra mulher numa nova casa, a irmã estava casada e tinha dois filhos, os pais haviam vendido a casa e tinham-se todos mudado, e o filho estava óptimo, ia com o pai de férias dentro de três dias e dispensava ensinamentos sobre como funcionava uma prisão.
Ela que tinha ali chegado com o coração nas mãos, pois sentia que, apesar de tudo, amava o marido, sentiu-se afogar, sem ar suficiente a entrar-lhe nos pulmões. Ela que tinha pensado dias, meses e anos no reencontro e que, sabendo que não seria uma fonte de calor, pois a maneira de ser do marido não o deixava agir com emoção, mas esperava umas boas-vindas um pouco mais emotivas, um abraço, um beijo, e algumas perguntas, Como te sentes? Trataram-te bem? Tivemos muitas saudades... e, principalmente, Acreditamos em ti, sabemos que foste presa injustamente... não ouviu nada disto.
Os meses de clausura deram-lhe a calma necessária para não ripostar às provocação e foi com olhar firme e sem admitir cenas que reclamou a presença do filho, que conseguiu finalmente, por entre as negas do marido, que lá lhe garantiu que ele se encontraria com a mãe.
Conhecia o marido, a sua frieza e a sua distância, porém, decididamente, aquele não era o Francisco a quem fora arrancada naquela tarde e mais parecia um qualquer guarda de Santa Cruz do Bispo, cuja profissão o obriga a ser duro e inflexível, sem qualquer lugar para emoções. Aos olhos dela e naquele momento, Francisco não parecia humano, mas antes alguém que parecia tirar prazer da sua dor e não ficou nada espantada por constatar que ele a via como culpada.
- Onde vais viver? – perguntou-lhe o marido em jeito de despedida.
- Eu tenho uma casa e tenho intenção de voltar para lá.
- Temos muito de conversar como deves imaginar… quero vender essa casa, mas podes lá ficar por agora… eu vou falar com o Paulo e ele vai lá ter contigo. Por favor, presta atenção ao que lhe contas da tua estadia…hã… da tua ausência. Tens dinheiro?
- Pouco – respondeu pensando no que já tinha gasto da quantia que lhe deram na prisão para os gastos mais imediatos.
- Muito bem, aqui tens 50 euros, para qualquer coisa que precises e de certeza que receberás a tua parte depois da venda da casa e não te preocupes que eu pago as despesas do divórcio.
Assentiu, agarrou a nota e viu o marido a voltar-lhe as costas. Dirigiu-se a uma paragem de autocarros, desejando que a linha não tivesse sofrido alterações e ainda passasse perto da sua casa, constatando que de facto assim era.
Francisco nem lhe tinha feito uma só pergunta pessoal, se estava bem ou não estava, nem tão pouco sobre a sua eventual inocência, prova de que ele estava convencido da sua culpa.
Em pouco mais de meia hora estava diante do prédio onde habitara mais de dez anos, subiu ao primeiro andar direito devagar, como antes quando carregava os sacos de compras pelas escadas acima, abriu a porta com a chave que o – ainda – marido fora buscar ao seu novo BMW e que ainda mantinha o porta chaves com a imagem do Bom Jesus de Braga que compraram não se lembrava quantos anos antes, e entrou nas três assoalhadas que mantinham as janelas fechadas.
Entrou lentamente, não a medo, mas tentando proteger o seu coração que batia com cada vez mais força à vista de tanta coisa familiar e percebeu imediatamente que no quarto do filho faltava imensa coisa, o seu estava na mesma e a sala também e recordou com enorme nitidez a última manhã em que ali tinha acordado, em que ali tinha tomado banho e se tinha vestido, em que ali tinha tomado o pequeno almoço, a mesma manhã do dia em que sentira abater-se sobre si a tragédia, a dor e a indignação da injustiça. Correu os estores e relembrou a entrada do filho naquela casa, acabado de sair da maternidade, para um quarto decorado pela sua própria irmã, cheio de coisas fofas como nuvens no final dum dia de Verão; lembrou-se duma festa de aniversário surpresa que fizera ao marido, numa noite de chuva em que vários amigos o esperavam na escuridão da casa e em como o surpreenderam quando ele estava a tirar os sapatos completamente encharcados e em como se tinham sentido próximos um do outro quando se deitaram depois da casa se ter esvaziado de gente aos poucos e ao longo da noite.
Agora, ali sentada no sofá cheio de pó e a cheirar a mofo, pensou que não estranhara o comportamento do marido e não se surpreendeu consigo própria pois, de certa forma, esperava-o, na medida em que sabia que ele nunca a amara, apenas e tão só se habituara a ela e não lhe estava no sangue mudar fosse o que fosse por sua iniciativa; concluiu que lhe fizera um favor dando-lhe margem lícita para ele a deixar e não se admirou por ele ter arranjado companhia pois não era homem para viver sozinho com as suas inseguranças, e enquanto estes pensamentos lhe ocorriam de forma serena sem dramas nem ciúmes, sentou-se no sofá e ficou a olhar para as prateleiras cheias de livros, cheias de pó e cheias de si própria, tentando saber se ainda se lembrava onde estava o quê, pois cada título tinha um lugar só seu, graças a uma arrumação cuja organização só ela sabia, e tão depressa se encontravam todos os títulos dum determinado autor, como logo ao lado, estavam vários autores misturados, por serem da mesma editora, assim como coexistiam lado a lado na prateleira porque eram do mesmo assunto, mas fosse como fosse tudo tinha uma razão de ser na cabeça dela e, enquanto ali estava sentada e olhava as lombadas, iam-lhe passando as mais variadas coisas pela mente, histórias misturadas com biografias, romances com livros técnicos, livros infantis com poesia e sem qualquer preocupação deixou as lágrimas correrem-lhe pela cara, e ali ficou até que tocaram à campaínha.

Meu caro Silvestre

Meu caro Silvestre
Entrei pronta a ouvir, Olá, tá boa? E a responder, mais ou menos, tenho estado doente, e a ouvir de volta então o que lhe aconteceu, seguido da explicação, com poucos pormenores, que isto de doenças é sempre chato…
Entrei e não aconteceu nada disto. Pensava que estava a entrar num vão de escada e estava a entrar numa gruta iluminada por um sorriso de criança. Um sorriso de criança que me esperava para se mostrar, que ansiava dar-se, que aguardava o momento de contar, como uma criança conta a um crescido que já sabe desenhar argolas e pontes que, juntas, fazem letras ou como uma criança conta a um amiguinho que tem um brinquedo novo, fonte da sua alegria e origem da luz que emana do olhar. Ah, o olhar, sempre esse traidor…
Tendo constituído uma surpresa, não o foi. Aquele seu gabinete é um ninho de surpresas.
O Silvestre, como uma criança chamada aos trabalhos de casa, teve que sair à pressa. Porém, não o fez sem partilhar, rapidamente, a sua excitação, quase algum nervosismo, atrevo-me mesmo, a usar a palavra ‘insegurança’. Aqui, definitivamente, a surpresa. Ele nunca, nunca, até agora, tinha deixado vislumbrar esta – e aqui, falta-me a palavra adequada – imagem, pode ser esta palavra.
O alquimista, inventor, melhor, criador de ouro colorido, que deposita nas mãos nos outros (não será melhor dizer nos ouvidos…?), sem pedir em troca, sem exigir, ali estava ele, apressado, a derrubar os papéis, mostrando ansiedade, aquela ansiedade boa, que antecede algo, com a certeza que vai ser bom, cumprindo o ritual da espera, esperando que ela termine mas, em simultâneo, querendo que se prolongue, ao sabor da imaginação, banhada pela água do Atlântico, onde o ser que dele se apoderou, navega.
Você lembrou-me um extraterrestre a procurar o amor e, temendo encontrá-lo e que se desfaça como um castelo de areia na praia, vibra, admirando-lhe as torres, as muralhas, mesmo que esburacadas e, rezando para que o mar calmo permaneça, deixa a turbulência dentro de si, sem dela dar mostras, embora um laivo de insegurança tenha surgido como um farol de um carro rápido a alta velocidade.
Será medo? Medo de algum dia encontrar o que procura?
Se for medo, terá que ser doloroso, porque o alívio, compensará a intensidade da dor.
Às vezes vale a pena doer…
Sinta-se abraçado pela sua amiga
Camila