terça-feira, 31 de agosto de 2010

A minha veia policial em acção 2

Há dias questionei-me sobre uma peça com poucos centímetros de tecido, sem marca conhecida e na montra duma loja banal, à porta da qual passam pessoas com rendimentos baixos, custar 563 euros.
Pois ontem à tarde verifiquei que o vestido verde já lá não estava – terá sido comprado...? – e a manequim exibia um modelo branco com folhas castanhas, que tem irmãos e primos em qualquer loja chinesa, mas com uma diferença: custava, antes de estar em saldo, 890 euros. Não, não me enganei, não, não vi mal, até ia acompanhada por uma amiga a quem fiz questão de pedir que visse também e lá estava, 890 euros.
Tendo em conta o estado da nação eu tenho que trazer comer de casa e vendo estas coisas tento não me desiquilibrar, que é como quem diz, não arranjar desacatos, comigo própria, entenda-se bem, que sou pessoa pacífica. Que tipo de desacatos? Não me pôr a pensar em demasia nos exageros que vejo à minha volta, não entrar em depressão, continuar a saber fazer magias com o dinheiro, manter uma cara alegre e bem disposta, essas coisinhas pequeninas.
Por vezes é-me difícil arranjar palavras para descrever certas situações, esta é uma delas. E é por isso que continuo a pensar que algures nos bastidores daquela loja, e doutras como ela, se esconde qualquer coisa, e os preços estão nos manequins não para informarem os potenciais clientes mas para os afastarem o mais possível!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Em Itália com o Manel

É inevitável que fale da viagem a Itália. Não por ter sido a Itália, onde já estive mais vezes, não por ter sido a deslocação principal das férias, mas porque fui com o meu sobrinho de sete anos. A Itália não voltará a ser a mesma.

O meu filho já tem outras aspirações e quando lhe pergunto onde quer ir nas férias, deixando o planeta aberto e, apesar de não ter condição financeira para tal, mas como sempre o ensinei e motivei a sonhar espero destinos como Zanzibar, Nova Zelândia ou Madagásgar, mas ele responde que está a pensar ir uns dias acampar em Porto Côvo!
Faça-se a sua vontade. Com 16 anos recém mas bem feitos, tem a benção materna para ir com os amigos. Porém, é hora de cumprir promessas feitas em anos anteriores: levar o meu sobrinho de férias comigo, promessa que quero cumprir desde o ano passado.
Sei que o Manel me adora mesmo a dormir e sei que ir de férias comigo é uma aventura, logo estavam reunidos os ingredientes para dias inesquecíveis. Viajei várias vezes com o meu filho ainda criança e já adolescente, o que me foi dando um treino que não se consegue de outra forma, treino de agradar, de fazer as coisas diferentes, de deixar andar ao sabor de cada momento, vivendo cada instante com intensidade. Não tenho qualquer espécie de horários, organizo as minhas próprias deslocações não dependendo seja de quem for, faço o que me apetece ou o que vejo apetecer a quem está comigo, como só quando tenho fome e se for uma refeição de gelados, será perfeita. Consigo saber onde querem ir só observando o olhar e sei contar histórias. São famosos os pedidos do meu filho quando insistia que lhe contasse histórias do intigamente. Qualquer pessoa pode ser protagonista destes relatos, mas de preferência que sejam pessoas da família, que tornem os relatos e as descrições mais próximas dele. Passou-se o mesmo com o Manel, incansável nos pedidos de mais e mais histórias, ou anedotas, quando eu alegava que não me lembrava de mais nenhuma, ele estava por tudo.
Meia dúzia de noites antes da decisão final telefonei-lhe e disse que estava a fazer um trabalho para o qual precisava de saber a opinião de crianças minhas conhecidas sobre quais os locais onde gostavam de ir e pedi que me dissesse os cinco sítios da sua eleição: Nova Iorque, Veneza, Egipto, Barcelona e Buenos Aires. Com a resposta na mão, pedi-lhe que passasse o telefone aos pais, expliquei a pergunta e pedi que o deixassem ir comigo a um destes locais. Disseram que sim e eu senti-me como se acabasse de pedir alguém em casamento e estivesse noiva. A partir daí foi um crescendo de emoção e felicidade, antecipando as reacções dele, o olhar curioso e verdadeiramente interessado, a sua falta de cansaço e antecipando principalmente a repetição duma palavra que eu sabia ir ser dita mil vezes a cada dia: Quica. É assim que ele me trata, desde sempre e eu via-me a satisfazer-lhe um grande desejo e ouvindo em simultâneo aquela palavra que, quando dita por ele, parece um feitiço.
Já em Roma perguntei-lhe a razão de tanto querer ir a Veneza e ele explicou que vê com frequência uma série animada – Little Einsteins – e que um dos episódios, passado em Veneza, o tinha fascinado tanto que, a partir daí, pensava nisso todos os dias.
Mas começando pelo princípio: convenci o Manel que íamos passar uns dias a Coimbra, os dois sozinhos, com a cumplicidade do resto da família, que sabia qual era o nosso destino. Ele acreditou tal como o meu filho acreditara em tempos que íamos ver os castelos da Alemanha, pois fazíamos escala em Frankfurt, quando na verdade íamos à Jordânia e ele se deliciou com Petra. Convencemos o Manel que íamos de comboio, motivo pelo qual os pais dele nos iam dar boleia até à estação do Oriente, alegando que era muito mais divertido ir de comboio a ver a paisagem, mentira que se manteve até à chegada ao aeroporto, onde ele declarou que estava muito confuso, mas com um enorme sorriso nos lábios.
Fizemos escala em Madrid e quando finalmente chegámos ao hotel Magic em Roma, colado com a estação Termini, ao qual ele atribuiu menos duas estrelas, dada a elegância e facilidades do conjunto de quartos a que chamavam hotel, ele teve a primeira manifestação de soberba felicidade, abraçando-me com toda a força duns braços de sete anos e disse:
- Ai Quica, estou tão feliz, tão feliz, tão feliz, que nem imaginas! Gosto tanto de ti!
Fez-me chorar, é claro, o que se repetiu por diversas vezes durante esses dias, embora as lágrimas fossem sobretudo de riso, daquele riso que me alimenta e me dá prazer sem limites.
Dizer que o garoto tem sete anos, não é nada. Ele tem a curiosidade dum Merlin, é incansável como Hércules, inventivo como Leonardo, sagaz como Alexandre e orientado como uma bússola. Via-o a percorrer o Forum em Roma, debaixo de 40 graus de calor, com um guia aberto que era lido até à exaustão, como se fosse um general que não tinha dúvidas que o seu exército – eu – o acompanhava e seguia até ao fim do mundo. Aqui ficava isto, ali ficava aquilo e aquilo o que era Quica? E a Quica nem sempre sabia e tentava dar ar de quem sabe mas ele, dono do guia, rapidamente chegava à resposta, ria-se da minha ignorância – que nunca tomou como tal, achando sempre que eu brincava, pois de que forma poderia a Quica não saber aquelas coisas? – e continuava como se aquilo fosse a direito, não houvessem pedregulhos e estivessem uns amenos 23 ou 24 graus!
No meio das características fenomenais do Manel, que me fazem preferir a sua companhia a quase todos os adultos que conheço, há uma que me faz assoprar: quando ele gosta de qualquer coisa fica colado ao tempo, ou seja, fica ali, imóvel, a ver, a admirar, a observar e o resto do mundo fica em stand by, esperando que ele, literalmente acorde. Nessas ocasiões, punha-me diante dele e estalava os dedos a um centímetro dos seus olhos para lhe chamar a atenção. Não vale a pena chamá-lo ou sequer gritar o nome dele pois ele ficou lá atrás no tempo, aprisionado por qualquer coisa que lhe chamou a atenção. Essa foi desde o primeiro instante a minha grande preocupação, não lhe tirar a vista de cima um nanosegundo pois se, de repente, o tempo o chamasse, ele não resistiria a essa chamada. É mais forte que ele, ele nem se apercebe do que acontece. Porém, é fantástico captar-lhe, finalmente, a atenção e não ouvir qualquer reclamação, nada, porque para ele está sempre tudo bem. Convenhamos que uma criança com sete anos não se comporta assim, há sempre uma birrinha, um quero aquilo, quero mais, afinal já não quero, não me apetece, sei lá, tanta coisa e tudo coisas normais, nada tem mal, porque são características de crianças com esta idade. Mas o Manel não é assim, ele não quer nada, ele pede e seja qual for a resposta, fica bem.
Ele fez questão de comprar tudo o que era bilhete, denunciando um à vontade incrível com as máquinas. Sabia que tinha saído de Lisboa com um lema: podia perder tudo, menos a minha mão.
No nosso primeiro dia de trabalho a sério fomos ao Coliseu. Quando regressamos e entrámos no metro, vá lá saber-se porquê, o Manel entrou e o meu bilhete informava que era inválido, ou seja, ele ficou dum lado e eu do outro, com milhares de pessoas das mais diversas nacionalidades a passarem dum lado para outro, dando-nos encontrões aos dois, que estávamos parados na zona das passagens. Gritei-lhe sem tirar os olhos dele que não se mexesse donde estava e experimentei as várias entradas sem qualquer resultado. Hoje penso que, como não desviava os olhos dele, nem via como metia o bilhete na ranhura, e esse era o motivo pelo qual não conseguia passar. Ele esteve sempre impávido e, quando vi que não conseguia passar, puxei-o quando uma pessoa abriu uma das cancelas na minha direcção. Imediatamente a seguir conseguimos passar. Já sentados no metro, rimo-nos os dois, sem traumas nem palavras de desagrado, afinal tinha sido uma pequena aventura.
De Roma adorou a Piazza Navona. Mais uma vez, uma escolha insuspeita. Lá fizemos uma caricatura, pela mão do Giorgio que o elogiou pela serenidade com que ele esteve sentado, quieto, aguardando o fim dos rabiscos que, terminados, nos insuflavam a cara, deixando-nos com ar cómico. Foi também na Piazza Navona que ele escreveu uma folha inteira dum caderno de viagem que levava, recomendação da mãe, para escrever e colar o que lhe apetecesse.
Quando saímos de comboio em direcção a Veneza deixámos uma mochila no hotel pois ainda dormíriamos uma noite em Roma antes de regressar a casa, de modo que íamos um pouco mais leves, que o mesmo é dizer com mais mãos para trazermos lembranças.
Eu sabia o que a chegada a Veneza provocaria nele pois há anos atrás tinha vivido aquele momento pela primeira vez com o meu filho: independentemente de estarmos rodeados de água antes de entramos na cidade, a primeira inspiradela de oxigénio ao sair do comboio é numa estação cinzenta, com linhas em ferro e paredes sujas que são substituídas pela magia de Veneza assim que damos três passos em direcção à saída da estação e somos brindados com aquela visão magnífica do Grande Canal. O facto de termos de ir de vaporetto para o hotel ajudou ainda mais. O facto de termos saído do vaporetto e andarmos uns bons dez minutos com as malas pelas ruelas estreitas ajudou ainda mais a embrenhá-lo no sonho, no seu sonho. Ali estava ele, pelos próprios pés a encolher a barriga para passar em certas ruas, galgando pontes minúsculas que nem pareciam verdadeiras. E assim chegámos ao Hotel Noemi, a 137 passos da Praça de S. Marcos, contados por nós, onde deixámos as maletas ao acaso no quarto e largámos a fugir na direcção da praça. Ele, que levava o guia bem estudado, quando entrámos na sala de visitas da Europa, como lhe chamou Napoleão, anunciou-me a tremer e com os olhos a brilhar bem abertos:
- Quica, estamos na página 104!
Claro que me desmanchei a rir e apeteceu-me apertá-lo para lhe roubar um bocadinho daquele fôlego, incansável, maravilhado com tudo, extasiado.
Veneza foi nossa durante quatro dias. Não houve ponte, calle, piazza, terra firme ou água mole onde os nossos passos não tivessem ido e os nossos olhares não capturassem e que ficaram registados em mais de quinhentas e setenta fotografias.
Nos vaporettos escolhíamos os lugares ao lado das entradas e saídas, com os gritos dos barqueiros a berrar os nomes das estações, nomes dos quais ele se ria e repetia. Só uma vez fomos sentados, lá dentro, com a cabeça dele a pender em cima de mim, morto de sono e cansaço, mas mesmo assim a não recusar mais uma viagem, a Murano, terra de vidros e vidreiros famosos no mundo inteiro e cujo nome ele se esquecia, ou fazia que se esquecia, para lhe dar outro que sabia me ia fazer rir.
No hotel em Roma o pequeno almoço era tomado numa cafetaria numa rua perto – o que ajudava às menos duas estrelas que lhe foram concedidas – e onde a refeição era fixa, café com leite e croissant com muito creme, a que em Roma chamam corneto, o que nos fazia rir, e onde assim que entrávamos a senhora nos perguntava logo se queríamos cappuccino e eu respondia que não, que era café com leite. Em Veneza o pequeno almoço incluía cereais com leite, iogurtes e fruta, para além de pão com os tradicionais manteigas, queijos, fiambres, e ainda bolos e bolinhos e bolarecos de várias espécies, ajudando-nos a retemperar forças para dias tão trabalhosos e cansativos.
O Manel não aprecia pizzas, gelados, nem é doido por massas, logo as refeições não foram óbvias, mas foram fáceis, com sandes e copos de fruta – vivam os vendedores de copos de fruta! – ao almoço e pela tarde e uma coisa mais compostinha lá para a noite.
Na primeira noite, depois da chegada emocionada, depois da verificação que o Hotel tinha direito a estrelas e era quase dentro da Praça de S. Marcos, depois de muita corrida por cima de água em pontes que se perguntavam quem era aquele par de alucinados, decidi colocar um cacho de cerejas em cima daquele bolo e fomos jantar ao Hard Rock Cafe. Ele achava que era um sítio só para adultos e ficou extasiado com várias coisas.
Primeiro, com tanto que ele adora maquinetas e gadgets, deram-nos um equipamento que toca e vibra quando chega a nossa vez, o que permite que não precisemos de estar ali a fazer fila.
Segundo, esperámos frente a um estacionamento de gôndolas, com gondoleiros de camisas às riscas a cantar.
Terceiro, quando entrámos deram-lhe logo um caderno e lápis para pintar.
Quarto, ficámos ao lado dum casal com ar de motoqueiro, daqueles bem duros, ele cheio de tatuagens que ostentava nos braços e no peito, à mostra através do colete aberto e que se meteram com ele, perguntando-lhe se ele queria da bebida deles e mostrando uma simpatia inusitada e que nos tiraram uma fotografia, bem gira por sinal.
Saímos já de noite, uma noite cantada à beira água, com gente a falar mil línguas diferentes, uma Babilónia ali aos nossos pés e ainda fomos ouvir as orquestras em S. Marcos, que me puseram, como sempre, os olhos a brilhar com mil pequenas lágrimas de emoção.
Quando chegámos finalmente ao quarto onde ainda nem tinhamos aberto as malas, ele manifestou mais uma vez a felicidade que o inundava e que era tão grande que se conseguia ver no ar, medir e pesar. O que dizer quando alguma coisa nos dá um prazer imenso e ainda por cima nos pagam daquela forma? Não há palavras.
Nessa noite, ele disse-me que tinha um sonho a menos e falámos de como é maravilhoso podermos dizer isso. Eu tinha-lhe dito que quando os sonhos se realizam, deixam de ser sonhos, por isso temos que ter sempre muitos, temos que nos convencer e fazer tudo para os irmos realizando, mas nunca podemos ficar sem eles, por isso há que ter sempre uma reserva. Ele respondeu que tinha muitos e adormecemos assim, sem pressas de arranjar mais sonhos, afinal estávamos a meio dum deles e há que saber aproveitar esse momento mágico, gravá-lo para o podermos lembrar sempre.
A quase totalidade destes dias incríveis são dignos de memória escrita, com tanto que se descobriu e se viu – finalmente fui à igreja de S. Barnaba! – com perguntas, exclamações, afirmações, passeios, companhia verdadeira; com o ar dele quando entrou na gôndola e falou comigo como se fosse filha dele ou qualquer garota pequena à sua responsabilidade, do ar de rei que ele atarrachou, transformando-me a mim em rainha, pelo simples facto de estar ali ao seu lado.
A orientação dele com um mapa na mão tornar-se-á lendária, tenho a certeza absoluta. É-lhe inato saber que é para ali e não para acolá!
Já tive oportunidade de falar sobre um dos livros que li em Itália, A Viagem do Elefante, mas reforço que a maior parte da leitura foi feita com ele aninhado e anichado em mim, como se fossemos um só, o que conferiu à leitura uma excepcionalidade que não teria doutra forma, independentemente da leitura em si me ter agradado sobremaneira.
Em Veneza comprei um tricórnio para mim. Soube que aquele chapéu era meu quando o coloquei e o Manel me olhou com um ar de profunda sinceridade e disse:
- Quica, ficas linda! Pareces um pirata, tudo o que é de pirata te fica bem!
Lembro-me que naquele instante pensei o que teria eu de pirata que ele achasse que me ficava bem, mas no décimo de segundo seguinte já estava a lamber-me de satisfação pelo elogio, tão sincero e que adorei do fundo do coração. Lembrou-me o meu filho que me deu o maior elogio que recebi em todos os anos de vida quando me disse que eu parecia o Peter Pan.
E é nestas palavras que eu vivo, é nelas que me alimento e na sua expontaneidade que eu encontro verdade, aquela verdade rija, em cima da qual sabemos que podemos saltar porque não se move nem um milímetro, que nos segura e nos faz sorrir ao acordar. Eu Peter Pan ou pirata, é isso que sou para eles e é nesse mundo que construimos a nossa dimensão, porque é uma dimensão em que o Peter Pan é real e os piratas existem. E nesses momentos não há problemas, não há dias de trabalho chatos e aborrecidos, não há chuva cinzenta, não há casulos a que chamamos apartamentos ou casas, não há nada de mau.

Podia contar aqui mil coisas que o Manel disse, mas vou deixá-las para outras oportunidades para prolongar esta memória escrita.
A viagem só pecou pela falta de companhia do grandalhão que andava por outras paragens e por quem eu suspirava de saudades e, pelo telefone, sabia que ele sentia a mesma coisa, o que me criava uma certa angústia, mas disso falarei noutra ocasião.
Já se projectam novas viagens, pelo menos na minha cabeça e nos meus sonhos.
Viajar com o Manel também é bom pois os seus sete anos dão-lhe imunidade de pagamento nas mais variadas coisas, e os hotéis recebem um adulto e escusam de pagamento a criança. Tirando as garrafas de água a cinco euros – que nós enchíamos em locais públicos sempre que podíamos - e algumas outras atrocidades semelhantes, os sete anos do meu sobrinho foram-me benéficos.
Porém, é preciso ter espírito para ver para além do olhar e sentir que a falta de dinheiro não é óbice a que se consigam viver aventuras. Quando saímos de Portugal, não só nesta ocasião, mas noutras, já sabemos que não nos poderemos sentar nas esplanadas da Praça de S. Marcos, não podemos jantar no Jules Verne no segundo piso da torre Eiffel ou almoçar no Figueira em S. Paulo (a menos que nos ofereçam...) e com esse conhecimento vamos na mesma, e ficamos de pé por trás das esplanadas em S. Marcos, subimos a torre Eiffel sem intenções de comer e ficamo-nos por um café no Figueira.
A mim falta-me dinheiro para ir mais vezes, não para fazer as coisas de forma diferente. Costumo dizer que um bom hotel não deixa histórias para contar, mas um manhoso vai viver sempre na minha memória. Por isso não trocava o hotel de menos duas estrelas, com um elevador tão estreito que não nos podíamos mexer, de tal forma que tínhamos de entrar de costas e só conseguíamos mover a cabeça de tão entalados ficávamos, por qualquer outro. Primeiro entrava o Manel e esticava o braço na direcção dos botões e depois entrava eu enquanto ambos encolhíamos a barriga quase sustendo a respiração até ao terceiro andar.

Em Roma não nos demos conta mas não nos deram bilhete de Madrid para Lisboa e tivemos que os ir pedir à última da hora em Madrid, a menos de vinte minutos do embarque. Outra situação que ficou para recordar, mas que faz parte da vida dos viajantes, não da vida dos turistas, que ensinei o meu sobrinho, como venho fazendo com o meu filho, a não seguir nunca. Se tivessemos que ficar em Madrid nessa noite, pois ficaríamos, íamos em busca duma cama e duma refeição e a vida é assim mesmo, com obstáculos que é preciso contornar sem dramas. Assim que me apercebi que não tinha bilhete expliquei o sucedido ao Manel, nunca lhe escondi nada, nem quando em Veneza suspeitei que ia ficar sem cartão devido a uma deficiência que poderia ter levado a ser engolido pela máquina. Sentámo-nos, contámos o dinheiro que tínhamos e disse-lhe o que pensava fazer caso ficasse sem cartão: ir a uma loja e pedir que, mediante depósito com outro cartão, só para pagamentos, me dessem dinheiro ou, ligar para Portugal e pedir que me fizessem um depósito de urgência num dos bancos que ali havia. Comer, íamos comer sempre, nem que fosse preciso andar a correr para o hotel Noemi a todas as horas do dia, pois o pagamento era feito posteriormente. Felizmente nenhum dos meus receios se concretizou e tudo correu bem.
O regresso a Portugal, fruto da confusão com os bilhetes fez-se em primeira classe e nesse momento o Manel percebeu que há males que vêm por bem e que a frase Always Look on the Bright Side of Life não é só o título duma canção. Rimos que nos fartámos nessa hora e pouco, rimos da confusão, dos lugares que nos foram atribuídos e da gentileza com que fomos brindados, mas também de excitação do regresso, que consubstancia o melhor das viagens, o regresso, principalmente se temos pessoas à nossa espera, como era o caso dele.
E se a nossa incursão pelo mundo das férias maravilhosas no estrangeiro, sem preocupações, com dias de verdadeira felicidade aos quilos, terminou com o abraço de saudade à família, para mim houve ainda mais um momento solene que guardarei para sempre, como marca indissolúvel desta aventura com o Manel.
Dias mais tarde fui a Coruche; cheguei já tarde e ele estava com o pai na esplanada. Enquanto eu caminhava para lá, olhando para os todos os lados a tentar vislumbrá-lo, ele viu-me à distância, desatou a correr e lançou-se literalmente para cima de mim do cimo das escadas, numa atitude de total entrega e segurança, apanhando-me desprevenida sem o perceber, porque na cabeça dele eu estou sempre prevenida para a sua presença e isso dá-me uma felicidade ímpar. Ele sabe que é bem vindo em qualquer momento da minha vida, que pode entrar sem sequer bater à porta. É esta consciência, este entendimento que fazem de mim a Quica e não uma vulgar tia.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

A minha veia policial em acção

A poucos metros do meu local de trabalho há duas lojas que me confundem sobremaneira: uma de roupa e uma de malas. A de roupa, de senhora, fica-me à direita quando desço a rua em direcção ao palácio que me acolhe o dia inteiro e hoje tinha um vestido verde enfiado num manequim, um modelo de alças, em tecido vaporoso de Verão, que ostentava o preço antes do desconto que os saldos lhe conferem: 563 euros. Aproximei-me da montra para confirmar se precisava de mudar de óculos e constatei que não, via perfeitamente, 563 euros, lá estavam eles assinalados, se bem que, com o preço de saldo, estivesse mais baixo o que, como facilmente se percebe, não chegou aos 20 euros, o máximo que eu daria por aquela peça.
A loja das malas ainda é mais estranha pois ano após ano mantém uma estratégia de decoração de montras completamente oposta à que qualquer ignorante na matéria faria em nome do bom senso: expõe o que de mais desagradável, feio e caro tem. Bem sei que a beleza é subjectiva, mas há algo incontornável que regula, se assim posso dizer, a medida da suposta beleza de estação em estação: a moda. Durante algum tempo, quando tinha capacidade para isso, eu era cliente desta loja e sei que tem peças de alta qualidade, embora caras, e de estilo clássico que, mudem todos os tempos e vontades, mantêm uma moda própria, fiéis a uma certa aparência. As minhas visitas a esta loja são cada vez mais espaçadas mas ainda me mantenho como cliente dum cinto, duma carteira para oferecer e duma ou outra peça, longe vão os tempos em que dois em dois ou de três em três meses eu comprava uma mala nova, satisfazendo assim um dos meus fetiches, comprar sapatos, malas e chapéus.
Para além da fealdade dos objectos na montra, cada um deles é acompanhado dum cartão amarelo mal cortado e amanhado com o preço escrito com grosso marcador o que faz a montra parecer uma floresta com cogumelos amarelos, rabiscados com números exageradamente grandes em tamanho e em preço. Peças definitivamente fora de moda são expostas naquela montra como se fossem o último grito da moda, amontoadas, denotando uma falta de visão atroz. Ora numa altura em que tudo e todos se queixam que as vendas são o que são, em que se procuram todas as técnicas e estratégias para vender mais, para agradar e atrair os clientes, para os fascinar levando-os a comprar, porque raio é que esta loja faz tudo precisamente ao contrário? Os funcionários e proprietários são simpáticos e cordiais não se notando qualquer desvio de comportamento mas eu tenho a teoria que a loja serve de fachada a qualquer outro negócio e que a montra não objectiva o mesmo que as outras montras de qualquer loja e sim o contrário, afastar os clientes. Porquê? Não sei, mas suspeito que é assim e talvez seja a minha veia policial a falar, talvez não.
O que é facto é que estas duas lojas colocadas no centro de Lisboa mas em circuitos onde os que passam pertencem maioritariamente à classe média baixa, logo, não são potenciais clientes e comprarão uma peça muito ocasionalmente e em altura de saldos, me fazem estranheza. A de roupa é tão cara que nem podemos espreitar a montra e a de malas oferece peças que nem o elenco de Conta-me como foi as quereria para ilustrar o que se usava no início da década de setenta.
O metro quadrado nesta zona da cidade é de valor elevado, exorbitante e as lojas estão às moscas, mas mantêm a porta aberta durante anos, como é o caso da loja das malas, que aqui está há cerca de duas décadas, sempre com a mesma filosofia de captação de clientes, e eu pergunto-me, como?
Os preços proibitivos duma e doutra poêm-me a pensar em que cogitam as pessoas que gerem estes estabelecimentos se, de facto, eles são apenas e só lojas que vendem roupa e malas e não se confirma a minha teoria de frontispício duma coisa e conteúdo doutra, coisa não despicienda, uma vez que da boca da proprietária da loja de malas não se ouve um queixume, tão próprio de quem tem uma superfície comercial seja lá qual for e onde se localize.
Muito estranho, digo eu de cachimbo na boca.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Gato por lebre

Ter um livro e não o ler é como ter um bilhete de lotaria e não verificar se foi premiado. Tanto pode não ter nada, como pode ter um prémio qualquer e, de repente, sai-nos o jackpot. Mas só o saberemos se o lermos.
Quando era pequena ouvia dizer que havia livros que mudavam a vida das pessoas e não percebia como, mas à força de ler sempre mais um, da Anita aos Cinco e aos Sete, a enciclopédia Combi, até à vida de Mao Tse-Tung, ou o livro de S. Cipriano, e literalmente tudo o que às mãos me viesse ter, com o Diário de Notícias como jornal trazido diariamente pelo pai, viciei-me na leitura e, embora não tendo um livro que tivesse mudado a minha vida, foi a leitura em si que a moldou e hoje sou uma leitora chata, exigente e sei que chego a ser aborrecida, pois não leio só para mim e discuto as leituras que faço, por vezes, com pormenores entediantes, de tal forma que sinto maçar as pessoas. Também é verdade que maço poucas pessoas, pois contam-se pelos dedos duma mão só aquelas que, de alguma forma, comungam comigo este vício, este fascínio, esta forma de vida. Não consigo evitar ser assim, e sinto também que cresce esta aplicação na leitura, o que me cria pensamentos estranhos. Exemplificando: estou a ler um livro cuja história me cativa mas que está pleno de gralhas, faltando com frequência exagerada palavras a meio de frases e dou por mim a querer largá-lo, como largaria um vestido numa loja se visse que tinha meia dúzia de buracos! Mas os livros são diferentes da roupa, que experimentamos antes de comprar e não adquirimos se tiverem defeito. Primeiro pagamo-los e só depois os avaliamos e, sendo assim, a quem fazer queixa e reclamação? Não me parece que as editoras recebam estas reclamações de bom grado pois, caso contrário, teriam trabalhado para que não existissem.
Voltando ao livro, leio-o como se a fome me obrigasse a engolir um comer mal temperado. As editoras não percebem que podem arruinar um autor ou a si próprias com estas edições, mal feitas, apenas alinhavadas. As editoras preferem pensar que a grande maioria dos leitores é tontinha e come o que lhes derem, que muitos dos leitores são-no por obrigação, como é o caso dos alunos do secundário e que despacharão um Eça gralhado com a mesma velocidade e interesse dum editado com ar de obra prima. Isto entristece-me e mostra o carácter das editoras que se degladiam pelos poucos lugares ao sol em Portugal naquela indústria. Não tenho assim tanta ingenuidade para não saber que os números de vendas e os lucros estão em primeiro lugar que tudo o resto, mas eu gosto de pensar, de me iludir a esperançar que um dia não será assim.

Sono mágico

Agradeço o envio desta imagem. Gosto de a olhar e pensar que a criança adormeceu com o cheiro do livro. O olhar macio e sereno remete-me para uma história que ficou a meio mas que a faz sonhar.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

O segredo dum bom livro

O segredo dum bom livro é conseguir engolir-nos, transportarmo-nos lá para dentro.
Se lemos uma passagem que diz que está um dia de sol abrasador, tudo nos deve incutir calor! Ora se pelo meio aparece uma nuvem, ainda que tímida e fugaz, provoca-nos um arrepio! A leitura – e qualquer livro, qualquer, pode ser um bom livro! – tem que nos fazer acreditar que não estamos a ler e sim a VER a acção descrita, a sentir o que sentem os personagens, a pensar o mesmo, a sermos um deles, cada um e todos.
Saramago consegue isso porque escreve para ser visto, observado, participado e não para ser lido. Em Todos os Nomes a escalada do Sr. José na escola consegue pôr-nos a transpirar! A capacidade da escrita sem pontuação, mas com sentido, é a transposição da vida vivida para o papel, pois é assim que as coisas acontecem naturalmente. A vida não tem pontuação, desliza.
Quando estamos a observar um monumento, a ver uma paisagem, sei lá, a usar os olhos para qualquer coisa, o simples piscar não corresponde a vírgulas, nem a pontos, muito menos a pontos e vírgulas ou traços ou a qualquer outra forma de pontuação: é tudo seguido. É como se no preciso instante em que começamos a ver estivessem dois pontos, sinal de que se seguiria um relato. De facto é assim, nós olhamos de seguida, absorvemos sem intervalo, percorremos o olhar sem interrupções, sem obstáculos, sem intermitências, sem espaços em branco.
Ao descrever o que a vista alcança e se nos depararmos com uma parede, não devemos pontuar a descrição com um parágrafo, mas antes continuá-la dando conta da decepção de não podermos ver mais, ou da decisão tomada sobre a melhor forma da contornar, ou do relato da constituição da parede, se de madeira se em alvenaria, noticiando a existência de imperfeições, se as houver, a cor, se estiver pintada, entre tantas e tantas coisas que uma parede nos poderá levar a pensar.
Os pontos finais, principalmente aqueles fortes e determinados, chamados parágrafos, deviam usar-se quando estamos a falar ou a ver alguma coisa e, de repente, por exemplo, toca um telefone, afastando-nos completamente da acção anterior. Deviam usar-se também quando dormimos, mas só no momento em que Morfeu nos abraça completamente e não quando ainda e só nos estende os braços.
O uso de pontuação é sinal de indolência. Vejam-se as reticências por modelo; usam-se quando preguiçamos sobre algo, quando, na verdade, devíamos esclarecer o que pensamos, o que queremos dizer e, ao usá-las, apenas deixamos intuir uma espécie de pressentimento. Sejamos esclarecedores e digamos não às reticências.
Quando conversamos com alguém, no momento do outro falar, não só escutamos como delineamos um qualquer pensamento, sobre o entendimento do que escutamos, sobre a resposta a dar a seguir, sobre as motivações do nosso interlocutor em dizer o que diz, sobre como é maçadora ou maravilhosa ou difícil ou oportuna ou necessária aquela conversa.
As deixas teatrais, o discurso directo, a conversa do agora falo eu e depois falas tu, deixam um mundo de lado, num certo vazio que, na verdade, não existe, é um espaço ocupado, cheio, preenchido com mil coisas que, num filme por exemplo, conseguimos apreender pelo gesticular, pelos tiques faciais, pelo bufar de aborrecimento, pelo girar de olhos, pelos trejeitos da boca e por um sem fim de pequenas coisas que nos dizem o que vai dentro da cabeça da personagem naquele preciso momento, em que outro está a falar, mas aquele não está morto e é isso que José Saramago faz magistralmente, consegue apanhar a cena toda, como se nos desse um golpe de vista e não uma página com palavras escritas.
Por outro lado, as gralhas, erros e anacronismos são intermezzos que nos fazem saltar a vista da leitura, como se ali houvesse um buraco negro. Não falo de regionalismos, nem da invenção de palavras, nem de sotaques, nem de palavreado típico de classes etárias ou de certas zonas, nada disso. Quando tal coisa nos é apresentada percebe-se logo que é assim!, pois de outra forma até estranharíamos. Mas a existência de gralhas – às pazadas - em livros que nos vêm pela mão de editoras que deviam ter um bocadinho de cuidado, é o mesmo que servirem-nos uma bebida num copo sujo que, naturalmente, recusamos e pedimos que seja substituído.
Cada livro é uma viagem sempre com a perspectiva de ser venturosa e aventurosa, mas quando encontro gralhas dá-me a sensação de entrar num avião e no lugar que me foi destinado não haver cadeira, ou seja, faço a viagem na mesma, mas sentada no chão, desconfortável e torta e perguntando-me se não paguei o bilhete todo. Os livros são caros, a indústria que está por trás deles é complexa e devia ser exigente, mas não é. Tenho livros em papel manhoso e com edições suspeitas que são modelos de revisão e de escrita e outros com encadernações cuidadas e papel escolhido a dedo, fontes bem seleccionadas e onde o revisor consta na ficha técnica mas ao ler-se verifica-se que não trabalhou. Ora, se estamos a entrar naquele mundo, se tudo foi feito para nos engolir e, de repente, há um disparate, é como se fossemos a conduzir na auto-estrada e travássemos sem motivo, pois o nosso pensamento deixa de seguir o caminho traçado pelo autor, afastamo-nos do eixo do raciocínio e pensamos, mas que raio é isto? E quando formulamos esta pergunta já saltámos do veículo em forma de livro, já questionamos o autor, já estamos de fora.
Eu quero leituras que me façam amaldiçoar ter que fechar o livro, quero viver e sentir e pensar como se fosse uma mescla do autor com os personagens, quero ser engolida e não dar um pontapé doloroso em pedras que aparecem abruptamente.
Saramago afasta essas pedras do caminho, porque raramente tem gralhas, porque tem escrita corrida com pouca pontuação, porque nos engole.
E aqui falei de livros, não de blogues, nem de outra escrita onde as gralhas não me impressionam nem maltratam a minha vista, o meu entendimento, a minha percepção do todo. Quem não é escritor deve primar pelo cuidado, mas os escritores a sério têm essa obrigação e aqueles que o querem ser, aqueles que pensam que são, talvez se aproximassem mais do que sonham ser se tivessem essa cautela, esse desassossego, como se fizessem tranças no cabelo das suas filhas, perfeitas e com o risco direitinho, com esmero e amor.
A grandíssima parte dos livros de hoje não são filhos de quem os escreve, mas antes bonecas que se compram e guardam para mostrar, querendo imitar a realidade e por isso quando temos que fazer uma comparação vamos buscar um clássico, um livro antigo, quando os autores pariam sem recurso a anestesia ou a cesarianas.
É claro que há mil autores diferentes com mil estilos diferentes e há os Pessoas que conseguem ser muitos, com personalidades distintas, fortes e marcantes, mas isso é cepa que se extinguiu, e na extinção, no caractér único, vive a eternidade, por mais contraditório que possa parecer à primeira vista.
Apesar de tudo a minha grande pena é não ter mais tempo para ler, edições tristes ou encontros maravilhosos com autores e personagens e mundos e viagens, tantos que diariamente nascem. Se eu pudesse parar o tempo, uma das coisas que faria era aproveitá-lo para pôr a leitura em dia. Adorava poder começar pelas tabuínhas de argila.
Reticências.

Dois livros de férias

Da leitura de férias destaco dois livros. Podia dizer que tinha tomado duas refeições, por exemplo, um pequeno almoço e um jantar, de tão diferentes que são, desde a hora a que são consumidas até à sua natureza ingrediental, podia dizer que tinha visitado duas cidades,  tão diferentes como Bruges e Marraquexe, assim foram os dois livros.
Um, A Viagem do Elefante, outro, O Guardião de Livros, romanceamento romanceado da ida da Real Biblioteca de Lisboa para o Rio de Janeiro, no início dos idos de 1800.
Que dizer de A Viagem do Elefante? Foi lido maioritariamente nos percursos Roma-Veneza-Roma, com o meu sobrinho deitado em cima de mim, a ler passagens sobre o elefante e a fazer perguntas. Nunca perguntou se faltava muito para chegarmos ou onde estavamos, mas perguntava frequentemente onde é que já ia o elefante. Pelo poder simbólico, nesta viagem, ele foi o elefante. E se o livro não fosse, como sempre, irrepreensível, bastaria esta lembrança para o tornar memorável, único.
Já O Guardião de Livros, cujo título me atraíu, cujo resumo me pôs água na boca, revelou-se, em parte, uma secura.
Editado já em 2010 não se percebe se segue o acordo ortográfico ou não, mas que tem erros de revisão, isso tem e muitos, o bastante para me desgostar. Ainda quis atribuir as gralhas ao facto de alguns personagens serem cariocas e falarem em vosmecei, ocasionalmente, mencionando sua mercê, mas lá para o fim, já não podia convencer-me disso.
Tem como pontos a favor o facto de contar com um narrador externo à acção mas também, e em simultâneo, ser narrado pelos próprios personagens, numa mistura que se entende perfeitamente e nos aproxima dos intervenientes, levando-nos a uma dimensão como a que devia ser a do Rio dos anos 10 e 20 de 1800, uma amálgama de gentes, uma confusão enlameada, num ritmo escravo, de cânticos e lamés em vestidos compridos onde os banhos, ou melhor, a falta deles por parte dos portugueses, se escondia deixando os cheiros sairem pelas rendas, pelos punhos, por todo o lado por onde conseguisse, que era muito com certeza e mau, ao contrário dos cariocas que mantinham a prática e lá conseguiam de vez em quando convencer os portugueses a tomá-los.
Voltando à forma do livro: Madre Superiora umas vezes é com maiúscula, outras não. A narração na primeira pessoa, quer seja dum português quer seja dum carioca é sempre em português, com gralhas. Dois pequenos exemplos:
‘Uns por ser americanos’ (pág. 294)
‘...se tinha desperdiçado dos anos e meio antes’ (pág. 295).
Porque me incomodam estes pormenores, tão pequenos, como alguns me querem fazer crer? E eu pergunto: porque nos incomoda um grão de areia num sapato? Porque nos incomoda um minúsculo espigão numa unha? Porque nos incomoda um quase invisível mosquito na sopa, 100% das vezes menor que o triturado espinafre e, quantas vezes, motivo para não se comer mais? Pois eu como sopa com mosquitos, mas quero saber em definitivo se a senhora é Madre ou madre e gostava que se decidissem antes de mo darem a ler.
O desconhecimento da língua é algo sobre o qual se devia pedir desculpa quando a usamos. Da mesma forma que se informa que determinado relato é fruto da imaginação do autor, que se alguém tiver notícia de um relato igual é pura coincidência, também se devia avisar, com nota mais ou menos nos seguintes termos: ‘Não querendo cercear a minha imensa vontade de escrever em português, quis satisfazer esse meu ensejo, mas informo que não domino a língua. A editora gostou do texto, colou-lhe a chancela, esteve-se nas tintas para as correcções e revisões, mas eu, pessoa séria, não quero induzir o incauto leitor em erro e aviso já que, principalmente lá para o fim do livro, quando já estávamos todos fartos e cansados, a pressa impunha o despacho da busca de erros e gralhas e o produto final acabou por sair sem estar finalizado. Queiram aceitar as minhas desculpas, e digo minhas e não nossas, incluindo a editora neste plural, porque eles não querem saber disto para nada.’
Continuando. O protagonista chama-se Luís e com frequência a mais da conta aparece-nos com uma intimidade exagerada, senão veja-se:
‘Ana tinha feito o pedido numa carta do Luís...’
‘Havia outra que afligia mais o Luís’
‘Assuntos que interessavam ao Francisco Marrocos’
É óbvio que o uso da contracção do – amplamente utilizada - devia ser substuída pela preposição de, devendo os exemplos seguintes ser também corrigidos.
Por outro lado, afirma-se que D. Pedro deu o Grito de Ipiranga, quando, aqui sim, devia ser do Ipiranga, mostrando mais uma vez fragilidade de ligação entre palavras, para além de confusão entre plurais e singulares e outras gralhices.
Na parte dos agradecimentos não consta o devido ao revisor, porque não houve, poderá pensar-se. Porém, a ficha técnica enuncia o Sr. João Vidigal como revisor. Eu não o contrataria.

Fogos de artifício e iluminações de Natal

Declaro publicamente sem pejo nem vergonha que preciso, e muito, da minha quota parte do dinheiro que se gasta nos fogos de artifício e nas iluminações de Natal. Sendo cidadã, algum foguete há-de ser para mim, para suposto gáudio da minha vista, assim como um qualquer raminho dum qualquer pinheiro reluzente pendurado no meio duma rua do sítio onde moro. A minha vista já é iludida com fogos artificiais, fátuos ou de santelmo dos mais variados e, não querendo a desgraça dos profissionais da pirotecnia nem das empresas que tão laboriosamente constroem magníficos trenós com rechonchudos pais natais, estrelas de outras galáxias, pinheiros carregados de bolas, fitas e neve, anjos e as mais variadas decorações eléctricas que acendem e apagam, com minúcia e zelo de duende do Pai Natal, como se viessem directamente de Rovaniemi, mas deviam criar um programa de requalificação, de transferência tecnológica, de reformulação destes profissionais para outras actividades, de modo a que se pudesse acabar com todo este exagero que pretende hipnotizar os cidadãos, nem que seja por dez ou vinte minutos, fazendo-os repetir ohhhh, a cada novo rebentamente de foguete ou sorrirem momentaneamente à vista dos anjinhos que até parecem que voam pelas avenidas abaixo, ou acima, conforme a nossa posição.
Eu percebo a lógica da tradição, mas quando o dinheiro que se gasta na tradição nos suga o tutano e congela os miolos pensantes em prol duma imagem efémera que em nada contribui para o nosso bem estar, o que fazer?
Ouvimos falar dos valores gastos nestes bricabraques e até os olhos dão reviravoltas, de inverno com as iluminações, de verão com o foguetório. A palavra Prioridade perdeu sentido – como tantas outras – ou melhor, deixou de existir e já diz o ditado, uma imagem vale mais que mil palavras, que aqui tão bem se adequa.
Ninguém tem espelhos em casa? Deviam investir nisso e cada um olhar-se bem antes de sair pela manhã, fazer uma pequena introspecção de quem é na realidade e para onde caminha com tanta falta de cérebro. Já ninguém quer caminhar sozinho, é preferível deixarmo-nos ir para onde nos mandam, ver o que disponibilizam para nós e deixarmos de pensar. De facto, dá menos trabalho. Qualquer dia acordamos e constatamos que estamos plantados numa eira, porque alguém assim o determinou, e ai, aí não há nada a fazer, pois a inutilidade será realçada – ainda mais – e a estupidez natural brilhará ao sol.
Gosto desta imagem, da plantação de estúpidos, principalmente porque imagino que uma qualquer cana de foguete poderá cair no meio dela e consumi-la por inteiro.
Durante as férias fui brindada com inúmeros ‘espectáculos’ de fogo de artifício, todos iguais, todos sensaborões, todos inúteis, todos extremamente dispendiosos. Alguma autarquia já se lembrou de perguntar aos seus fregueses se querem a repetição de mais do mesmo todos os anos, lembrando-os, já agora, quanto custa a coisa? Tenho a certeza que os que escapam à plantação atrás enunciada responderão que há aí uns mil assuntos, coisa pouca, que talvez, e sublinho, talvez, deva ter mais prioridade. Mas para isso era preciso uma outra coisa que emigrou para parte incerta e que ninguém tem: coragem.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Regresso

Ai que preguiça! É tão grande que até a sinto para escrever. Não me lembro de ter tirado um mês de férias. Assim, seguido, inteiro, todo. Mantenho uma ansiedade que me acompanhou o mês todo, aquela sensação que eu chamava de vai acontecer alguma coisa, durante muitos anos, uma angústia sobre qualquer coisa desconhecida, uma aflição morna que não me larga.
Como sempre chorei no último dia de férias. Bem, não foi no último, mas no penúltimo, ao sair da praia com quatro amigos muito especiais. Esforcei-me para que eles não vissem e deixei-me ficar para trás a comer o gelado de modo que ninguém reparou, a não ser o meu filho, acho eu, que encabeçava aqueles quatro golfinhos com quem gosto de ir à praia e me fazem sentir como se tivesse ainda e só a idade deles. Gosto da resistência deles à água, das perguntas que fazem, das exclamações, dos segredos e das meias palavras, enfim, da companhia.
É claro que ainda vou à praia, mas o último dia de férias, para alguém que sonha com elas o ano todo, é um dia especial. Lembro-me do momento em que entrei de férias este ano, enfiada numa calças brancas e numa camisa cor de carmim, apanhei um táxi em direcção à estação das camionetas onde já me esperavam duas amigas e um jovem amigo, carregando uma mala com fatos de banho que se esmeraram ao sol e na água salgada da praia do Carvoeiro. Lembro-me de usar nesse dia um chapéu recém comprado, como sempre faço no meu primeiro dia de férias, usando uma coisa nova, que me dê prazer, que seja a minha cara estampada e me acompanhe, pelo menos, durante essa temporada sagrada. As férias.
Guardo vários livros de férias, mas de entre eles sobressaem Férias no Mar, um livro com imagens de chorar por mais que alguém me ofereceu quando eu tinha uns seis ou sete anos e que descreve as férias de duas irmãs com os pais, num local paradisíaco com imagens de mar tão belas que só podem existir mesmo num livro para crianças. O outro livro é um dos meus fetiches, talvez um bocadinho a causa desta ansiedade que não me larga, por nunca ter abandonado o desejo que alguma coisa de semelhante me aconteça um dia, por nunca ter perdido essa esperança, por continuar a ser uma criança perdida: Dois Anos em Férias dispensa apresentações e arrasta uma música dentro da minha cabeça que me envia automaticamente para lugares inexplorados com uma única proprietária, uma só conhecedora da sua existência, eu.
Mas ao invés de sítios inóspitos ao olhar da maioria das pessoas e que para mim são uma espécie de lar, estou em casa a aguardar o primeiro dia de trabalho, aquele em que começarei a contar os dias para o próximo período de férias. A angústia que sinto não se relaciona com o trabalho em si, nem eu sei estar quieta sem nada para fazer, apenas se me revolve o estômago com a proximidade da rotina, dos horários, dos transportes, das saídas e entradas nos casulos onde vivemos, da proximidade do inverno.
Adoraria viver num sítio onde andasse sempre de sandálias. E de calções. E de alças. E bronzeada. E de chapéu de sol.
Nunca se sabe o dia de amanhã e isso é bom porque me faz manter a esperança de um dia poder ser assim.
Destas férias lembro várias coisas, umas boas outras nem tanto, mas de entre elas lembro ao pormenor um pôr do sol com o calor ainda forte mas a esvair-se lentamente para outras paragens num céu púrpura de tal forma que parecia pintado. Foi belíssimo apesar de estar sozinha. Tudo na vida se multiplica se estamos acompanhados pois na lembrança a dois revivem-se melhor os momentos. O meu filho começou a namorar antes das férias e o primeiro embate, na minha cabeça, foi de exclusão, tanto mais que sempre me tinha convencido a não me meter quando chegasse o momento. Mas a verdade é que fui incluída em mil ocasiões ternurentas e isso não tem preço. Dizem que um homem sozinho é livre e uma mulher sozinha está na solidão, mas não é bem assim, principalmente se regámos o percurso em comum com os nossos filhos. Podia ter alguém com quem dormir todas as noites e não tenho. Podia ter alguém com quem partilhar a confecção do jantar e não tenho. Podia ter alguém a quem contar como foi o meu dia e não tenho. Podia até ter alguém com quem dividisse as despesas e não tenho. Mas tenho a árvore da minha vida bem regada, sorridente e a partilhar comigo segredos e sentimentos, a pedir-me a opinião, a fazer projectos de futuro e a partilhá-los comigo. A cada dia que passa. E isso dá-me força para mais um ano.