Há muitos, muitos anos a minha irmã começou a
chamar Piriquito ao namorado. Ainda antes de casarem já o Piriquito tinha um petit nom: Quico. Na mesma altura, pela
boca da minha irmã, eu passei a ser Quica, nome pelo qual sou conhecida entre
parte da família há quase 20 anos. Há amigos dos meus sobrinhos que me chamam
Tia Quica e eles próprios dizem ter uma Tia, do lado do pai, e uma Quica, da parte da mãe.
Há desacordos ortográficos na forma de escrever
este meu pseudónimo familiar: eu uso o Q e o C, a minha irmã facilita e
simplifica e usa o mais internacional K. Ela manda-me um email, por exemplo,
dirigido a Kika e eu respondo e assino Quica, tal como os postais que mando aos
gaiatos com imagens divertidas e com mil beijinhos só para se aquecerem com a
lembrança de mim.
Até agora não parecia haver alguma coisa que nos
ajudasse a definir quem tem razão. Até agora…
A propósito da eleição papal a minha sobrinha
perguntadora – se lhe der para saber da origem do universo e se a resposta vier
por insistência, ela ficará a saber brevemente – quer saber das razões do papa
ter desistido. A conversa decorre diante de um jantar de lasanha, com o
paizinho algures na Tailândia e a mãezinha a acompanhar o jantar e a fazer de mãe,
ou seja, com a mão em vinte coisas em simultâneo.
Ele logo esclarece que os Papas não desistem,
resignam, que é a mesma coisa mas para Papas.
- Então porque é que ele… isso que tu disseste? –
pergunta ela com uma gota de molho a espreitar pelo canto do lábio.
- Por estar muito cansado e achar que não consegue
trabalhar como deve – respondeu ele do interior da sua ciência de 10 anos.
- Pois, mas o outro antes era muito velho e estava
muito cansado de certeza e não desistiu ou isso que tu disseste e só foi embora
quando morreu. Não foi mãe?
- Sim filha, mas este Santo Padre estava ainda
mais cansado e não conseguia aguentar.
- Santo Padre? Mas ele é santo? – pergunta ela
novamente.
- Sabes filha, costuma-se chamar Santo Padre aos
Papas porque eles são o representante de Deus na terra, percebes? O Papa é a
pessoa mais importante dos cristãos – diz a mãe sabendo que a conversa se vai
alongar e desejando interiormente que o paizinho, que tem resposta para tudo,
estivesse ali.
- Mãe – o ar dele é de condescendência - para os
cristãos, não! Para os cristãos católicos, porque há cristãos que não são católicos.
- Sim, tens razão, para os cristãos católicos.
- Pois, mas eu não percebo porque é que este se
foi embora – mantém ela.
- Olha, por falar em Papas, vocês sabem que o
anterior, o João Paulo II, uma vez levou um tiro e a bala está na coroa de
Nossa Senhora de Fátima? – a mãe tenta desviar a conversa para um universo
policial.
- Levou um tiro? – a expressão dela é de espanto –
E porquê? Quem lho deu?
- Acho que foi uma pessoa de outra religião, um…
- De outra religião? – a voz dela sai indignada
como quem diz ‘existem mais?’ – Que religião?
Mãe e filho respondem ao mesmo tempo:
- Árabe.
- Muçulmana.
- Bem, em que ficamos? – reclama ela imediatamente.
- Na verdade chama-se Islamismo, mas no fundo quer
tudo dizer o mesmo.
- Mas então há mais deuses? – pergunta ela estupefacta.
- Sim, há mais deuses e de vez em quando as
pessoas de religiões diferentes zangam-se e este quis matar o Papa – a explicação
é do filósofo júnior.
- Então há pessoas que não acreditam em Jesus e em
Deus – conclui ela metendo mais uma garfada de lasanha na boca – Mãe, nós conhecemos
alguém assim?
- Se calhar conhecemos, mas agora não me lembro de
alguém.
- Já sei! – a mãe ouve esta exclamação e fica
receosa do extâse da filha – Conhecemos a Quica! Ela não é religiosa, se calhar
ela é muçulmana!
Mãe e filho riem-se e o filho adianta:
- Não, a Quica é cristã não católica, porque ela não
vai à igreja nem essas coisas, mas ela vive numa comunidade cristã, percebes?
- Então a Quica acredita em Jesus? – quer ela
saber.
- Filha, a Quica acredita em Jesus porque Jesus
foi uma pessoa que viveu há muitos anos, como se fosse um… um… olha, um rei
antigo, percebes? Há provas que ele existiu e a Quica sabe disso.
- E no pai de Jesus? No nosso Deus, ela acredita?
A mãe está exausta e decide facilitar:
- Sim, ela acredita em Deus.
- Hum… olha que acho que não, mas se tu dizes… - a
conclusão é da minha sobrinha que não se cansa – E olha lá, como é que Jesus
sabe que é filho de Deus?
O irmão dá uma ajuda à mãe mostrando os
conhecimentos da catequese:
- Porque foi um anjo lá a casa dizer isso mesmo.
- Um anjo? Quer dizer, bateram à porta, quem é? Sou
eu, o anjo, e venho dizer que tu não és filho do Senhor José mas sim filho de
Deus? Foi assim? E eles acreditaram? O anjo podia estar a mentir!
- Mas se foi Deus que o mandou – o irmão está a
ficar impaciente.
- Sim, Deus mandou-o, mas eles não sabiam! Como é
que acreditaram? E quando ele falou a Maria disse o quê?
- Ai filha, sei lá o que disse a Maria…
- Mãe, sabes que a Maria esteve na Igreja da Misericórdia?
– o entusiasmo é dele.
- Qual Igreja da Misericórida? – espanta-se a mãe.
- Esta aqui em Coruche!
Mãe e filha falam ao mesmo tempo:
- Não filho estás enganado, ela…
- A sério? Então Jesus também cá esteve! Pois, ele
andou por todo o lado: Jerusálem, Belém e isso, só não sabia que tinha vindo a
Coruche.
A mãe interrompeu-se a si própria para dar espaço às
gargalhadas e finalmente disse:
- Não! Nem Maria nem Jesus estiveram aqui – e dirigindo-se
ao filho – Porque dizes que Maria esteve na Igreja da Misericórdia?
- Mãe… - a voz é em tom baixo mas em modo superior
– isto é uma forma de dizer porque todas as Marias simbolizam a Maria mãe de
Jesus.
- Como assim? – pergunta a irmã novamente – Há muitas
Marias!
- Não, não há, só há uma! As Fátimas e as outras são
todas a mesma! – esclarece ele.
- É assim, mãe? – ela quer uma confirmação.
A mãe informa que as imagens nas igrejas simbolizam
de facto uma só Maria e dá graças a todos os deuses por a lasanha se ter
acabado. Manda-os para a sala onde ligam a televisão e se centram na divindade
do canal Panda. A seguir telefona-me e decide-se finalmente que, face à
suspeita de eu ser muçulmana e quiçá pertencer à Al-Qaeda, não posso ser uma
americanizada Kika e sou mesmo Quica!