Conheci o mítico
Rogério de Moura há vários anos por intermédio de amigos que eram autores na Editora que dirigia.
Assistir a conversas entre Rogério de Moura e um dos meus amigos, ou com
José-Augusto França, por exemplo, situação que também tive o privilégio de
presenciar, era um fenómeno, uma viagem sem tempo nem espaço, projectada para o
passado, reflectida no futuro, profundamente presente.
A determinada
altura, a Editora onde eu própria trabalhava fez uma co-edição com os Livros
Horizonte e foi na primeira pessoa que reuni com ele, que o vi trabalhar o que,
com Rogério de Moura, era sinónimo de viver ou respirar.
Numa sala ampla,
onde recordo a madeira como elemento muito presente, dispunham-se manuscritos
de várias qualidade e feitios, bem como o temperamento do Editor que,
parafraseando Coetzee, era a parte mais dura do seu corpo.
Semicerrava os
olhos e exalava conhecimento, abria-os de curiosidade como um gaiato, não se
limitava a ouvir, mas escutava bem para responder melhor. A este propósito,
nunca os problemas de audição, de que sofria, se mostraram invasores das
capacidades de apreciação do Editor.
Era impossível
não respeitar Rogério de Moura, assim como era muito difícil, principalmente
para alguém na minha área, não o invejar.
Há dias comprei
um livro da sua editora e apanhei um baque. Quem conhecesse Rogério de Moura
saberia que algo ia mal no reino da Dinamarca ao ver o livro, que nos apresenta
uma outra Livros Horizonte, outra no sentido de vulgar, de denúncia da ausência
do seu criador.
Tendo amigos e
conhecidos ligados à CUF, sempre me interessei pela matéria nas suas mais
variadas vertentes e, sempre que possível, acompanho o que se faz, o que se
produz, o que se escreve. Assim, fui ao lançamento de A nova ordem industrial no Estado Novo: da fábrica ao território de
Lisboa: 1933-1968 e comprei o livro.
A obra é o
resultado de uma tese de doutoramento e a orientadora usou, abusou, violou,
gastou à exaustão a palavra perseverança
e toda a sua família, para se referir à sua orientanda, num discurso curto mas
grosso de perseverações.
Ainda não o li,
mas um livro é fonte de informação rica e variada mesmo sem ser lido de fio a
pavio e, em duas penadas de vistoria, fico desanimada com várias coisas.
Na ficha técnica
aparece uma tradutora! Assim se delineia a versão de mistério do livro: o que
terá traduzido?
Não há notas de
rodapé: a informação está alinhada no final do livro, de forma incómoda, com
total prejuízo do leitor.
A bibliografia
parece uma árvore de Natal… quer fazer-se tanto e depois sai um aglomerado de
informação que, junto, perde o nexo, o norte, o sentido. A informação constante
no livro pode ser preciosa para outros investigadores mas o código com que está
apresentado, digno da CIA ou da Mossad, torna as referências bibliográficas, as
pistas e os caminhos num labirinto difícil de percorrer.
Terá a autora
querido alcandorar a sua obra à vastidão de uma enciclopédia? Se não quis,
parece, e caiu no ridículo.
O capítulo das
Fontes e Bibliografia tem divisões com critérios duplos imperceptíveis: de
suporte e temática. Assim, por exemplo, temos uma secção de Periódicos e logo a seguir de Industrialização. Há uma secção de Indústrias, Implementação e Ideário e
outra de Indústrias. Esta está ainda
dividida, alfabeticamente por empresas. Ou seja, a árvore de Natal ganha
consistência debaixo de tantas fitas e bolas.
Por falar em
alfabeticamente… bem, se calhar é melhor saltar este aspecto…
Enfim, o carrossel do costume para os autores que querem mostrar, mostrar, mostrar, e não se
centram em provar de forma clara e transparente os documentos a que recorreram
e ponto final.
Com uma
bibliografia tão pormenorizada, aparentemente, não faltaria nada, mas há notas
a remeter para um autor e uma data, e quando, garimpando com vigor e paciência,
dermos conta da referência na Bibliografia verifica-se que o dito autor tem
mais que uma obra da mesma data. Em que ficamos, qual delas é?
Escrever livros
não é difícil, fazer investigação também não, fazer investigação séria é um
osso duro de roer e a falta de pormenor e rigor na Bibliografia é um dos aspectos
que denunciam a falta de seriedade da investigação.
No final há um
índice onomástico mas vários autores foram eliminados, esquecidos, obliterados,
a começar pela própria autora do livro.
Depois não se
encontram referências a quem é batido na CUF, verificando-se uma ausência por
exemplo do biógrafo dos últimos
senhores da CUF, Miguel Figueira de Faria.
Das fontes
impressas da Fundação Calouste Gulbenkian só uma está identificada, as outras têm
autor, um deles mal referenciado, e título, nada mais. Editoras e datas estão
em branco; calhando, apareceram de geração espontânea.
As páginas das
Fontes e Bibliografia são elas próprias uma fonte, um rio, um mar de
disparidades, disparates que não deviam acontecer num trabalho de doutoramento.
Se cada um de nós
começar a interpretar os sinais de trânsito à sua medida, se eu pintar de azul
o sentido proibido que está numa das pontas da minha rua, muita confusão vai
nascer, garantidamente.
As Bibliografias
são mapas que devem ser precisos e fiáveis, mas há quem os codifique e este é
um desses casos. Porém, a codificação de uma bibliografia pode acontecer
propositadamente ou por desconhecimento, por desleixo e desleixo é a palavra
certa para alguém que faz um doutoramento e desleixa tão importante parte do
seu trabalho.
Não se percebe o
critério da utilização de maiúsculas e minúsculas; não se percebem as vírgulas
ou a falta delas – o que faz com que, entre muitos outros, Raquel Henriques da
Silva apareça como RAQUEL HENRIQUES DA DIRC SILVA.
A falta de precisão
leva a que títulos espanhóis estejam escritos em português (como por exemplo o
de Sobrino Simal) e que se aportuguesem títulos franceses, como o de Michel Rautenberg.
Por outro lado, a
páginas tantas a Bibliografia desdobra-se em Bibliografia Específica, onde têm
lugar, novamente, secções como 5.2 -Indústria,
implementação e ideário; 5.3 – Indústrias
e 5.4 – Exposições industriais e
outras; contudo a primeira secção é 5.1
– Artigos, e pergunta-se, é específica de quê?
AAVV, que remete
para autores vários, já não se usa, e
é recurso de ignorância ou facilitismo. A NP 405 indica que as obras com mais
do que três autores devem entrar pelo primeiro, seguido da expressão [et. al] e
não et. all, que parece querer
inglesar a expressão original.
Nas notas usa-se
o sistema Autor-data e na Bibliografia não, o que me leva de volta ao exemplo
dos sinais de trânsito: quando vejo um 100 dentro de uma placa quererá dizer
que não posso baixar a velocidade daquele limite?
No índice onomástico
Le Corbusier entra no L mas na bibliografia entra em C…
Os Júniores
entram por Júnior ignorando a regra do parentesco.
Fico-me por aqui.
Guardarei a leitura do livro em si para quando se esbater a surpresa negativa
que o primeiro embate me provocou. Mantenho a esperança de poder gostar da
leitura, porque, como é sabido, é a última a morrer.
Deolinda Folgado - A nova ordem industrial no Estado
Novo: da fábrica ao território de Lisboa: 1933-1968. Lisboa: Livros Horizonte,
2012.