Conduzo, passo por um buraco, dou um solavanco e
continuo. Se for só um, a guinada no carro não será grande, o avanço far-se-á. O
palavrão se não é dito, é pensado. Se forem vários, a condução diminui de
velocidade, serei obrigada a ter mais atenção, a rodar o volante exageradamente
para a esquerda para fugir aos buracos da direita e para a direita em
vice-versa.
Quantos mais buracos, maior o arrependimento pela
jornada, por que vim por aqui e não por ali?
Tive um primo que conduzia um veículo por todos os
atalhos possíveis e imaginários. Quando lhe chamámos a atenção que as pernadas
das árvores tendiam a querer entrar pela chapa e deixavam rasto arranhando a
pintura ele respondia dizendo que nessas alturas só havia uma coisa a fazer: pôr
a música mais alto para não ouvir o raspar do metal.
Sou perfeitamente capaz de o fazer a conduzir, mas
não a ler. Uma gralha é um buraco. Cada gralha é um obstáculo e eu não sou
rapariga de corridas muito menos com obstáculos, o defeito será meu.
O V. diz-me que presto atenção demasiada à forma. O
olímpico estatuto que ele tem faz-me pensar nisto mas, tal como um gato foge da
água, tal como um cão fareja um osso, tal como uma abelha procura uma flor, tal
como o rio procura a foz, eu paro nas gralhas. Paro, e dobro o cantinho da página.
Ainda que os olhos continuem lendo linhas abaixo,
a mão, normalmente a direita, perdeu concentração na leitura e desvia-se para
levar os dedos ao bico da página dobrando-o. E eu leio com o corpo todo. Cada distracção é um afastar do objectivo, é um perder.
Leio com barulho, leio na multidão, leio com vento
e com frio e com calor, leio a comer, leio na praia – ah, tanto que havia a
dizer de cada grão de areia em cada livro que li na praia – leio em pé,
sentada, deitada e torta, leio parada e a andar, mas em cada ler sou toda. Ler poesia
a caminhar nas ondas que morrem na areia esvaindo-se em espuma branca pode ser
uma experiência única. Bem sei que há quem já tivesse ido à lua e quem salte de
elásticos do cimo das pontes, quem dê mergulhos em águas geladas, quem seja missionário,
quem escale montanhas; eu cruzo as pernas diante do grande senhor da Terra, o
mar, e leio com cada célula como se lêssemos juntos, eu a ler para ele com o
devaneio que ele ruge para mim.
E assim, com frequência, se molham os ténis ou as
botas ou a toalha. E eu rio-me da brincadeira, porque é uma brincadeira dele a
ver se eu estou atenta à leitura. De vez em quando sou assaltada por uma gralha,
que me salpica a vista e me assusta, que me perturba a leitura obrigando-me a
parar momentaneamente.
Mas então tudo
isso quer dizer que te julgas tão perfeita que dás conta de todas as gralhas, tão
perfeita que não aceitas imperfeições, tão perfeita que não consegues continuar
a ler quando encontras uma imperfeição?
A perfeição não existe e aquilo a que se referem
como perfeição não é meu, é universal; a imperfeição sim, vive nas gralhas, é
de quem as causou, e eu lamento cair nelas pois, ao contrário do buraco da
estrada que se pode contornar, a gralha está ali, de boca aberta para me
morder, velhaca, a desconcentrar-me, falsa, a impôr-se.
És uma
exagerada e tudo o que é demais, não presta.
Serei. Vou juntar ‘exagerada com gralhas’ às
minhas características. Ou deverei escrever ‘ezagerada com gralhas’? Foi uma
coisa de nada, o z e x até são vizinhos no teclado e percebe-se o que quis
dizer, verdade? Passa à frente, vá lá.
Pois não passo, vou a jogo e o jogo da consciência
disse-me, por exemplo, para escrever a informar sobre a coisa mais bizarra que
já vi dada a quantidade de gralhas: Os
que sucumbem e os que se salvam, de Primo Levi. E informei a editora:
Escrevo com profunda indignação e
revolta face à leitura de Os que sucumbem
e os que se salvam: nunca tinha visto um livro com tanta gralha, tantas e
tão absurdas, que se diriam propositadas.
O trabalho de tradução é pavoroso, a
revisão, feita pelo tradutor, é inexistente.
José Colaço Barreiros inventa palavras
que não existem na língua portuguesa – traversas, p. 171; tritol, p. 166;
próvido, p. 60; mónada, p. 88; haloglota, p. 88, ou biarquia, p. 199.
A falta de correspondência entre
singulares e plurais é de tal forma que se lhe perde a conta depois da centena;
há uma falta violenta de vírgulas e um abuso extremo do sinal de pontuação dois
pontos; há uma ausência inexplicável de pontos finais entre períodos e uma
descoordenação no uso dos itálicos; verifica-se um desconhecimento do assinalar
as notas de rodapé e identifica-se a cidade de Francforte e o Lago de Como,
este último numa tradução integral do italiano. Há pontos finais no lugar de
pontos de interrogação, o Estreito de Bering, estrangeira-se para Behring,
abrem-se parêntesis que não se fecham.
“Um verso tão
alemão e tão cheio de sentido que passou a provérbio, e que não pode ser
traduzido para italiano senão através de uma desajeitada paráfrase: Nicht sein
kann, was nicht sein darf.” Isto não é uma
desajeitada paráfrase, é o verso original (p. 164/165).
O livro de Jerome K. Jerome (em inglês Three Men in a Boat; em português Três homens num barco; em italiano Tre uomini in barca) passou a ser Três
homens à deriva. Porquê? (P. 164)
Como se tudo isto não bastasse o tradutor/revisor
faz o impensável: coloca texto seu no meio do texto do autor (p. 96, 152, 174 e
177), numa enorme falta de respeito pelo original, pelo seu próprio trabalho e
pela profissão de tradutor, quando podia ter recorrido a notas de rodapé. Não o
fez, o que resulta numa adulteração do texto.
Perante a gravidade do trabalho que está
à disposição do público, uma editora séria mandaria recolher os exemplares em
circulação com o pedido de entrega de todos os exemplares já vendidos, em
anúncio público, a fim de que aos leitores pudesse ser posteriormente entregue
um exemplar corrigido.
Este procedimento é vulgar em
electrodomésticos, carros e outros bens de consumo; a alegação que não há
questões de segurança em risco e que a vida humana não sairá prejudicada com a
leitura de um livro com gralhas, até pode estar certa, mas não deixa de ser
gato por lebre; não deixa de ser uma a expectativa, e outro, o resultado; não
deixa de ser uma fraude; não deixa de ser um engano e um desrespeito pelo autor
original e pelo leitor final.
De acordo com a legislação europeia a
exoneração de responsabilidade do produtor só ocorre se este não for
considerado responsável, provando que:
*
Não colocou o produto em circulação;
* O defeito surgiu após a colocação em
circulação do produto;
* O produto não foi fabricado para venda
ou distribuição com um objectivo económico;
* O produto não foi nem fabricado nem
distribuído no âmbito da sua actividade profissional;
* O defeito é devido à conformidade do
produto com normas imperativas estabelecidas pelas autoridades públicas;
* Os conhecimentos técnicos no momento
da colocação em circulação do produto eram insuficientes para identificar o
defeito, podendo no entanto os Estados-Membros adoptar medidas derrogatórias
nesta matéria;
*
O defeito de uma componente ocorreu durante o fabrico de um produto final.
Estivesse o livro avariado, por falta de uma
ou meia dúzia de páginas ou por ter cadernos virados ao contrário, e a situação
não seria tão grave, talvez fosse imputável ao equipamento de impressão, por
exemplo. Aqui, tal não se verifica. É erro humano: da tradução, da revisão, da
edição, e deve ser corrigido.
A editora respondeu um mês depois e disse: Agradecemos
imenso o seu e-mail e as observações nele contidas. Vamos avaliar o texto do
livro em questão e, finda essa análise, que esperamos concluir em breve, tomaremos a decisão que
mais correcta se afigurar, não excluindo, evidentemente, a possibilidade de
retirar do mercado a presente edição.
Já lá vão seis meses. À
referida presente edição acede-se pagando uma portagem de 15.90€, para se
revelar ser uma estrada cheia de buracos. Passaram seis meses, Primo Levi e
todos os seus leitores continuam a sucumbir, nada se salva e o meu desgosto por
gralhas aumenta.
Também dou gralhas, como é óbvio, e cometo erros, ai tantos, mas penitencio-me e faço a correcção assim que me apercebo. Aproveito até para (re)agradecer a quem me envia e-mails fazendo estes avisos à minha navegação.
Podia escrever um tratado sobre gralhas e se soubesse que ganharia asas e voava daqui para bem longe, terminava-o já hoje.
O meu pai, tipógrafo a vida inteira, lidou anos com as gralhas e perguntava-me porque se dava aos erros tipográficos o cognome de gralha e não de águia, perdiz, andorinha ou até mesmo pato? As gralhas nem são os pássaros mais barulhentos, mas são os mais persistentes e a persistência pode levar a verdades mentirosas.