terça-feira, 25 de setembro de 2012

Livreiros vs Vendedores


Quem sabe o que quer vai à mercearia lá do bairro; quem não sabe vai à grande superfície, e alega que é por ter mais variedade. Nessa mercearia, a dona ajuda-nos a escolher a fruta e põe de lado a laranja podre, enquanto conversamos sobre as questões comuns que nos preocupam e rimos juntas; na grande superfície passamos como autómatos junto a todos os outros clientes e esticamos o braço quando uma máquina anuncia o número da nossa senha, depois de termos estado à espera, espera essa durante a qual fomos enchendo o carro com coisas que não precisamos.
Somos muita bons! Somos turistas no sítio onde vivemos: só lá vamos dormir, afirmamos não conhecer o vizinho do lado, mas não fazemos nada por isso.
Com os livros é a mesma coisa. Vamos à FNAC que tem tudo! E não é que tem mesmo? Até tem funcionários que nada percebem de livros! É maravilhoso! A capa regula o assunto: tem flores? É de horticultura, garantidamente, mesmo que seja sobre Desenho Científico!
A FNAC é aquela máquina! Não é tão bom ter uma máquina à nossa disposição? Mesmo que também nos trate como máquinas, mesmo que nos minta descaradamente afirmando que ‘a edição está esgotada’ quando não tem o livro em questão e desconhecendo que quem pergunta é o próprio Editor!
Dar primazia aos interesses do cidadão? Qué lá isso? A máquina funciona, não funciona? Atão prontos! Se tivermos cartão cliente da FNAC até há a possibilidade de nos tratarem pelo nome depois de lhe darem uma olhadela, como quem espreita a coleira do cão. Dois segundos depois já estão a chamar Gervário a um Rogério, mas também o que é um nome? Nem fomos nós que o escolhemos!
Quem quer informação vai à FNAC, quem quer conhecimento vai a uma Livraria, com um Livreiro atrás do balcão.
O que é um Livreiro? É um profissional dos livros, uma espécie em vias de extinção, que muitos nunca terão visto; fala com o cliente muito para além da conversação pré-programada dos vendedores das grandes superfícies, a quem uma pergunta mais técnica, elaborada ou profunda, deixa sem resposta. O leque de respostas dos vendedores destes locais abarcam duas grandes perguntas: O livro existe? Sim ou Não. Onde está? Ali.
Um Livreiro sabe sugerir, conhece o livro, alerta para outras edições, faz atendimento personalizado, deixando, em simultâneo, espaço para quem queira viajar na Livraria. Porquê? Porque trata cada cliente como uma pessoa única e distinta. Um Livreiro sorri. Um vendedor emite esgares. Um Livreiro faz tudo para agradar ao cliente. Um vendedor faz tudo para agradar à empresa para a qual trabalha. Um Livreiro dedica-se ao cliente e empenha-se para encontrar um livro. Um vendedor diz está esgotado e vira-se para o cliente seguinte na fila. Um Livreiro cultiva a nossa diferença. Um vendedor quer modelar-nos à forma previamente instituída.
Um vendedor é ideal para atender turistas: os poucos recursos de linguagem são comuns, não sabem bem o que querem e aceitam o que se lhes dá, ficam momentaneamente encantados com a quantidade, que até podem candidatar ao guiness que trazem na mão, vão embora e nunca mais se lembram que ali estiveram, vivendo todos maquinalmente felizes para sempre, como manda o guião das vendas.
E é assim que um turista vai à FNAC. 
Um cidadão vai à Livraria. Por exemplo à Pó dos Livros.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Estratégia musical


Uma grande amiga convidou-me para um evento de moda onde ela vai participar profissionalmente, mostrando o que tem para vender numa loja de bairro que ela conseguiu fazer passar do zero para um local incontornável naquela zona. Disse-me o dia e a hora e, caso eu estivesse interessada, disponibilizou-se para me comprar os bilhetes.
Suponho que deva ter ficado a pensar que sou mentirosa quando lhe disse que tenho o dinheiro contadinho até ao final do mês, que não tenho um euro para gastar nem para ir ao médico, que trago comer de casa e me permito beber dois cafés por dia, nada de revistas ou jornais, à excepção do maldito tabaco, cujo consumo vem encolhendo e é feito em casa. Lá deu a entender que eu não precisava de ser assim tão radical, que a vida está má e outros eteceteras que repetimos com toda a gente todos os dias. Ou seja, achou mesmo que eu exagerava e eu adorava ter exagerado…
Mas se vou ficar à espera que me contem como correu a coisa, que correrá magnificamente pois está lá ela, não tenho dúvidas, arranjei outra estratégia para me livrar de Leonard Cohen que vem a Portugal no próximo mês.
Nunca o vi ao vivo – não sou nada festivaleira nem concerteira – mas se há alguém que eu amava ver num concerto, é ele.
Não fui ver o preço dos bilhetes, nem vale a pena, mas tentei descobrir um qualquer concurso onde possa ganhar uma entrada. Não encontrei.
Resolvi então ligar-me ao youtube durante o dia inteiro, coisa que venho fazendo desde domingo, obrigando-me a cansar desta voz que é uma das minhas paixões eternas. Até agora ainda não consegui, mas quem entra aqui no gabinete repetidas vezes já me pergunta se isto é promessa.
Não desisto… pode ser que resulte.

Avó Zé


Ponho a máquina da roupa a lavar depois das dez da noite para usufruir da tarifa bi-horária. Estendo-a antes de me ir deitar, o que pode acontecer às onze da noite ou às três da manhã, depende do sono.
Independentemente da hora, sei que diante da minha janela vou encontrar uma luz acesa: a da avó Zé. Não conheço a senhora, não sei como se chama, nunca falei com ela, mas para mim, para a minha irmã, é a avó Zé.
Há duas avós Zé no meu círculo familiar. Nenhuma destas Marias Josés é minha, mas ambas me são chegadas e queridas. Uma é sogra da minha irmã e por via dos meus sobrinhos, também eu lhe chamo avó Zé. A outra é sogra da minha cunhada, dona de uma simpatia que lhe calhou por engano pois, como diria alguém que eu conheço, as sogras não são assim. A minha vizinha é uma versão da primeira avó Zé.
Estende a roupa dentro da marquise e alisa-a, alisa-a, alisa-a. De minuto a minuto debruça-se na varanda para confirmar se o vento não enrolou a roupa estendida na corda. Tudo é feito a sorrir e com gestos de carinho, inexplicáveis numa tarefa como aquela. Tem prazer no que faz, antecipa a carícia dirigida ao dono da roupa, ou ao momento em que ela própria a vai usar ou vestir. Imagino que assim seja porque já a vi com o marido, penso eu que seja marido, à janela. Calmos e serenos, ela apanha roupa e ele segreda-lhe ao ouvido fazendo-a rir, criando uma imagem de beleza ímpar e que podia servir de anúncio para qualquer coisa que quiséssemos terna e eterna. Agarro nas molas em câmara lenta para poder não desviar o olhar desta senhora que rarissimamente vejo parada.
Os vidros da marquise, sem cortinados, parecem não existir de tão limpos e transparentes, em constraste com os meus que carregam o rasto de todas as pingas de água que já caíram no mundo e cujo pó parece alapado, mesmo que os lave de vez em quando.
Também a minha avó Zé nunca tem tempo e está permanentemente atarefada! É capaz de ver um filme na televisão, em pé, pois está a meio de cinquenta e nove tarefas diferentes. Tal como a avó Zé minha vizinha, usa sempre uma bata dentro de casa, tem um penteado tipo peruca que lhe ocupa horas de manhã a ripar, lacar e aprontar, mas vale a pena pois fica como o Santo que podia correr e até mergulhar sem que um único cabelo se descoordene do penteado geral. Claro que nunca vi a minha vizinha pentear-se, ao contrário da avó Zé, a quem já presenciei várias vezes o ritual matinal. Mas se por vezes estendo a roupa de noite, também acontece fazê-lo de manhã bem cedo antes de sair e… lá está ela, penteadíssima, impecável, a tomar conta da roupa. Mantém um sorriso, unhas pintadas, cantarola qualquer coisa, adivinho-lhe uma noite feliz.
Já me ocorreu que é uma extraterrestre que não dorme! Pensei nisto porque a avó Zé, minha vizinha, fica por vezes à janela olhando o céu. Não de braços cruzados, como eu que a olho de esguelha, mas fascinada, fumando um cigarro, mas em posição de partida, como um escuteiro sempre alerta. E se um lençol que abana mais vigorosamente lhe chama logo a atenção e ela se debruça para o acariciar, também não desvia o olhar do horizonte azul escuro, onde as luzes da cidade escondem as luzes do universo. A luz da sua própria casa permite-me ver que sorri. Sorri sempre. Olhará com esperança de ver chegar alguém? 
Eu espreito à janela e tenho sempre esperança de a ver a ela, olho a varanda dela em primeiro lugar, sabe-me bem, mesmo que a não vislumbre, saber que mora ali uma mulher que tem sempre uma modinha nos lábios e que, não sei se o sabe, a partilha comigo. Sabe-me bem saber que ali tão perto há uma mulher, na casa dos 70 anos, que com gestos insuspeitos e banais me faz emocionar.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Coisas da vida


Dando continuidade ao plano de emagrecimento, vou duas vezes por semana aos tratamentos. Até agora perdi 13 quilos e não os quero reencontrar! O tratamento é tão relaxante que adormeci… a bem da verdade, devo juntar noites mal dormidas e uma inquietação geral que não me deixa descansar.
Mas se me babo de noite, ninguém tem nada a ver com isso, se ranjo os dentes e acordo o meu filho no quarto ao lado, tenho que procurar tratamento para o bruxismo, se ressono durante o tratamento de emagrecimento fico com a cara à banda de constrangimento…

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Cegueira global


A cega entra no Metro com um cão. O cão é afagado, mimado, elogiado, tentam até falar com ele.
Perante tanta mercê um passageiro comenta que não se devem fazer festas a um cão-guia. A envolvência reage de sobrolho franzido e lança inocentes porquês com reticências antes da interrogação. A cega diz baixinho que os cães estão a trabalhar e não devem ser desviados da sua missão. Fala devagar e de forma informativa. Percebe-se que os amantes de cães não gostam. Rosnam baixinho ladrares imperceptíveis na forma mas claros no tom. Ela também o sente e diz:
- É curioso que se dê sempre mais atenção ao cão que ao cego. Já vim sozinha várias vezes e nem sempre me encaminham para a porta, mas se vier com ele é diferente. É como se fosse ele a pessoa e eu o animal.
O homem que tinha sugerido a contenção de mimos ao cão continuou o racíocinio da mulher:
- É verdade minha senhora… as pessoas nem se cumprimentam, mas baixam-se e gastam o tempo que for necessário a fazes festinhas a um cão.
A mulher esboça um sorriso e diz:
- A mim até fingem que não me vêem… e a cega sou eu.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O tempo dos esqueletos


A história de amor dos meus pais é digna de um filme. Estão casados há 47 anos e namoraram 8, um namoro repartido por cartas de amor e muitas visitas do meu pai à aldeia onde a miúda morava, aldeia fronteiriça e com um posto da Guarda Fiscal, sendo ele o filho mais novo do cabo da Guarda. Antes dele tinham nascido seis e, para além da prole, os pais acolhiam ainda uma avó.
O primeiro par de sapatos recebeu-os quando entrou na escola e era um de cada nação, nem sequer do mesmo número, coisa que nos levava a perguntar quem teria levado da loja um par errado e que não tinha reclamado a anormalidade. Os dele foram os últimos, razão porque não podia escolher outros.
Sendo o mais novo, ficava com tudo o que já tinha servido aos irmãos, ao contrário da minha mãe, filha mais nova do dono do talho da aldeia, a quem o pai adivinhava os desejos e satisfazia as ideias mais bizarras.
A carne que lhe sobrava a ela faltava-lhe a ele, em todas as medidas: o magricela que só tinha ossos cheirava a gordura com que o comer era feito enquanto a rapariga, com 90 quilos aos 11 anos, comia chouriço e presunto dos bons, feitos em casa.
A dieta a que se submeteu voluntariamente não excluiu a carninha mas deixou-a com cintura com vespa e com o epíteto da rapariga mais bonita da aldeia.
O pedido de namoro, ao pai da miúda, correu muito bem: o sogro deu-lhe uma sova e ele correu como um profissional das olimpíadas, dali para fora. Só muito mais tarde foi aceite mas, quando o foi, foi na qualidade de filho verdadeiro, desenvolvendo-se uma relação única entre sogro e genro.
Assim, o namoro do filho mais novo de uma família muito pobre, repositório de restos, com a filha mimada de uma família a que nada faltava, foi uma sucessão de inusitados acontecimentos; assim, ela esticava um braço e comia o que lhe apetecia e ele ia aos pássaros, apanhava-os, depenava-os e comia-os, assim como tudo o que apanhasse e lhe pudesse confortar a barriga; assim, ela comia um cacho de bananas sozinha, o que a levou a ter que ser assistida por um médico e a não comer bananas durante mais trinta anos, e ele também tinha que ser visto pelo médico por ter comido não sabia bem o quê, mas que o punha doente, cheio de diarreias e carregado de febres.
O pai dela oferecia carne e fruta a vizinhos com comboios de filhos, e recebia um Deus lhe pague de agradecimento; o pai dele fechava os olhos a contrabandistas que sabia terem rebanhos de filhos, à espera em casa, e cujas mulheres davam qualquer coisa de comer ao filho do Cabo da Guarda quando o viam, como agradecimento.
O homem mais rico da aldeia não podia ter um nome mais apropriado, Sr. Leão, e penso que era sobre uma filha sua que se contava uma história maravilhosa, segundo a qual ela se teria apaixonado perdidamente por um empregado do pai, de condição sócio-económica oposta à sua. Numa ocasião, e diante de todos os trabalhadores, ela ter-lhe-á lançado um desafio, dizendo:
- Vou fazer-te uma pergunta… se acertares, casas comigo. Branco é, galinha o pôs, o que é?
O rapaz, terrivelmente embaraçado e para não criar constrangimentos ao patrão, que assistia à cena, respondeu uma laranja, ao que a rapariga sorriu e disse:
- Acertaste! Agora casas comigo!
E casou, com o beneplácito do pai, cuja fortuna podia ser grande, mas que não era maior que o seu próprio romantismo e se havia alguém que podia ser romântico, era ele, pois uma taleiga de azeitonas e uma fatia de pão para se comer num dia inteiro de trabalho no campo, não dava espaço a romantismos.
Os relatos que sempre ouvi, na primeira pessoa da parte do meu pai e de terceiros, da parte da minha mãe, eram de coisas tão distantes que pareciam estórias e não histórias. Eram relatos do tempo das vacas magras, vacas essas que eu nunca vi, em termos estruturais.
Hoje soube que a mercearia ao lado da minha casa foi assaltada de novo: levaram todo o pão, garrafas de azeite, limparam a fruta, os legumes e as latas de feijão e grão. Porque seria?
Levantam-se os esqueletos dos tempos de grandes dificuldades que viviam nas memórias, e apresentam-se aos nossos olhos como num filme do velho Oeste, carcomidos e abandonados. E vacas gordas são desenhos de crianças, que tendem a exagerar o tamanho das coisas.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Lisboa Story Centre


Assisti hoje à inauguração deste novo espaço na Praça do Comércio. O ponto de encontro antes da visita foi o belíssimo torreão nascente da praça, restaurado e operacional - e que ouviu as vozes dos responsáveis pela nova atracção, Presidentes da Associação de Turismo de Lisboa e da Câmara Municipal – e em nada se parecia com o local escuro e obscuro que visitei por duas vezes há uns tempos atrás. Parabéns.
Identificado como um centro de interpretação, o Lisboa Story Centre leva-nos numa viagem no tempo, apoiada tecnologicamente, onde não falta uma experiência imersiva, que nos remete para o terramoto de 1755.
Durante uma hora e com auxílio de um áudio guia, disponível em dez idiomas e com uma versão infantil, percorrem-se os seis núcleos da exposição e damos o dia como ganho. 

Chamamento


Baku chama-me. Chama-me com tal força e intensidade que, sem nunca a ter visto, sinto-lhe a falta, dói-me a inexistência de contacto físico.
Olivier Rolin, que igualmente me desconhece, escreveu para mim, em forma de chamamento, em letra de grito, de apelo: Baku, últimos dias foi leitura de férias, como quem lê notícias de casa, e se as primeiras palavras fossem Querida Areia às Ondas, eu não estranharia.
Acompanho Olivier como um dos fantasmas do filme Asas do Desejo, porém, não estou morta, estou muito viva e com ânsia de Baku. Neste livro reencontro Ali e Nino de Kurban Said, como quem encara com as neves do Kilimanjaro quando vai ao Kilimanjaro. Volta a mim O Orientalista (obrigada V.!) que adorei.
Baku, últimos dias é literatura de viagens e o plural de viagens é dito com propriedade pois são muitas e múltiplas, simultâneas e em diferido, todas as que se encontram neste livro impecável, sem gralhas, com um papel belíssimo, perfeito espaçamento entre linhas, fonte adequada, margens a condizer: é um objecto de culto por dentro e por fora.
Que Azarbeijão é aquele de Baku nos dias de hoje, que nos remete para um ontem que está tão presente? Que mar é o Cáspio que lambe esta preciosidade persa? Quem é Baku no seu todo, que sinto como uma pessoa? Não sei… mas vou saber.
Edição da Sextante. Irrepreensível. 

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

À beira do nada

Excepcionalmente, hoje tomei o pequeno-almoço na pastelaria onde só costumo beber café. Eram oito da manhã, a televisão estava ligada e debitava desgraças atrás de desgraças, tantas e todas ensanguentadas, feridas de morte, lavadas em lume, esfrangalhadas por caninos, mostradas em écrans de loucura que me dão vómitos.
É um patamar diferente da loucura política que nos amachuca e espezinha, numa espécie de puzzle que se completa e complementa e que me faz lembrar À beira do fim (Make room, make room, no original) da colecção de Ficção Científica da Caminho de Bolso (com capa azul, que se distinguiam dos policiais que era pretos; foram dos poucos livros que ficaram com o meu ex-marido depois do divórcio).
O autor, Harry Harrison, (morreu há duas semanas) viu o seu livro dar origem a um clássico do cinema, Soylent Green, que projectava o futuro de 2022, longe de 1973 quando foi gravado (e mais ainda de 1966, quando foi escrito), mas próximo agora de 2012.
No livro, a crise demográfica é tão grande, a sobrepovoação do planeta é tão dramática, que se paga às pessoas para morrerem, não só para que desapareçam como também para, com os seus corpos, poderem alimentar o resto da população.
As pessoas que se engalfinham como autênticos cães enraivecidos, e os que teimam em manter cães que diariamente matam outras pessoas, não estranhariam viver num mundo onde o alimento fossemos nós.
Os que desenvolvem esforços para se acabarem com as touradas, espectáculos horríveis e sangrentos que têm de acabar para dar espaço na comunicação social, e na vida!, a outros espectáculos horríveis e sangrentos, mas com protagonistas humanos, também dão excelentes cidadãos desse mundo impensável.
Os maus tratos, as mortes, os danos perpétuos que compõem as paredes sólidas da casa da violência doméstica, e que são como a guerra na Síria, qualquer coisa que se passa algures e que não é nada connosco, nem dariam conta se vivessem em 2022 e fossem alimentados daquela forma.
Os que usam as curvas das estradas como nós corredios de cordas para suicídios colectivos, num acelerar que é sempre lento aos olhos dos condutores, também seriam eleitos.
Indignamo-nos com a desvalorização dos valores morais, mas o facto de não se gostar de alguém é motivo suficiente para lhe enfiar um balázio na testa. Que raio de gente somos nós?
Há muitos anos, ainda aluna da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ao lado da porta desta instituição vi um homem novo sentado no chão com um cartaz que dizia Liberdade ao Incesto. O meu cérebro lá processou aquilo como um erro de leitura, voltei atrás, reli e confirmei a mensagem. Era mesmo assim. Pelos vistos aquilo vingou sem que me apercebesse e crescemos numa anormalidade a que não se dá importância, engolem-se os dias e nada mais.

Expectativa superada

Lembro-me da minha amiga L. me dizer repetidas vezes que um dos meus problemas eram as expectativas: com a perspectiva de um simples passeio eu colocava-as, segundo ela, na estratosfera e acabava por me decepcionar. Não penses tanto no assunto, não cries expectativas, caso contrário, quando voltares, não vens satisfeita.
Quando passei pela Pousada da Juventude de Vilarinho das Furnas, num Junho com nevoeiro e chuva, e decidi que iria lá de férias com os meus sobrinhos, não sabia que a estadia me traria momentos de tão intensa felicidade. Sabia que iria ser divertido, mas não me atrevia a sonhar que fosse tão maravilhoso como foi.
Coincindindo com as férias da minha irmã e com uma deslocação do meu cunhado ao Brasil, deixámos o elemento mais novo da família com os avós e fomos os quatro.
Ficámos num quarto com beliches, gaiatos em cima, manas em baixo, sem televisão, por opção, nem casa de banho, pela economia. Partilhámos a casa de banho e demos ocasionalmente com os olhos na televisão, depois do jantar, quando passávamos na sala de estar da Pousada, a caminho da varanda para grandes jogatanas de cartas e não só.
Jantávamos na Pousada, almoçávamos o que sobrava dos pequenos-almoços, pão, fruta e iogurtes, e mais qualquer coisa que íamos comprando, eu a tentar não fugir à dieta.
Do Campo do Gerês a Terras de Bouro, da vila do Gerês à Portela do Homem, de Torneiros, em Espanha, a trilhos romanos sem fronteiras, passando pelos locais de culto como a Pedra Bela ou as piscinas naturais, passou-se uma semana num ápice.
Em Torneiros só falta a torneira para água quente ou fria: a quente sai e mistura-se com a fresca água do rio, correndo numa cama ladeada de relva, com fundo de pedra, num cenário digno de filme. Meti a ponta do pé na água quente e a temperatura fez-me recuar, impossível juntar-me aquela meia dúzia de heróis, ou friorentos, que ali jaziam ferventes. Espectacular!
De noite jantava-se na Pousada e ficávamos por ali, a descansar da jornada diária. Jogávamos às cartas todas as noites, mas a brincadeira que punha os outros hóspedes a olhar para nós, sem dar atenção às modalidades olímpicas que se iam sucedendo na televisão lá dentro, era um jogo divertido mas que nos deixa com ar de idiota: os outros jogadores escolhem uma personagem para nós adivinharmos qual é e o nome é escrito num papel e colado na testa… com cuspo, pois claro! Assim, todas as noites estavam quatro palhaços na varanda com papelinhos colados nas testas a tentarem adivinhar quem eram, por entre pistas que vão sendo dadas, batota que vai sendo feita, enfim, se for para brincar, tudo se permite!
E tudo isto com uma vista de cortar a respiração diante de nós, que se ia escondendo à medida que o sol se ia pondo, inventando novos verdes e novos castanhos, num baile de luz e sombra, do qual sentíamos fazer parte e respirávamos maravilhados nessa partilha.
Uma das caminhadas foi inesquecível. Saindo da Pousada, passando por Campo do Gerês, em direcção à barragem de Vilarinho. Daí até ao caminho romano, pela Mata da Albergaria e daqui até às piscinas da Portela do Homem. Antes de meio, a minha sobrinha dava mostras de grande cansaço e a invisível artrite reumatóite da minha irmã ia moendo, em silêncio. Disse-lhes que iria pedir-lhes boleia ao primeiro carro que passasse e assim fiz. O carro de cinco lugares tinha três vagos e o casal aceitou imediatamente levá-los. O meu sobrinho endireitou as costas, apertou-me a mão, encostou-se a mim e disse umas palavras que me soaram a fórmula mágica:
- Não me obrigues que eu não vou… eu nunca te deixava aqui sozinha, nunca.
O aperto de mão era intenso, a convicção dele genuína e forte, o amor que nos une multiplicou-se e fez nascer fogo-de-artifício, ali, naquele instante.
Fizemos o caminho juntos a pé e quando chegámos à estrada alcatroada, a três quilómetros das piscinas, perguntei-lhe se queria que pedisse boleia, pois via-o muito cansado.
- Se tu viesses sozinha pedias boleia?
Neguei, sabendo que a caridade da mentira o ofenderia. E assim, fizemos o percurso todo a pé e chegámos junto das miúdas que nos esperavam para merecidos mergulhos, não sem antes termos de galgar pedras e troncos, numa descida alucinante e perigosa, até à água que sabia a mel.
O caminho de volta foi feito de boleia para elas e a pé para nós. Nos últimos dois quilómetros, ele tropeçava nos próprios pés, eu parava constantemente a puxá-lo e, sem lhe perguntar nada, pedi a um carro para parar.
Era um Volvo, branco por dentro e por fora, estofos em pele imaculada, acabados de nascer, diria eu se ali não estivéssemos. A nossa roupa suja, as nossas botas de caminhar, elas próprias uma pousada de terra e sujidade, as nossas mochilas cuja metade do peso era pó, contrastavam violentamente com a alvura do belo do banco traseiro onde íamos sentados, embora o carro transportasse apenas o condutor que, não obstante ir sozinho e ter dito imediatamente que sim ao nosso pedido, sugeriu o banco de trás pois o da frente vinha com sacos.
Assim, como se fossemos num táxi do céu, fizemos o último bocadinho e descemos à porta do Parque de Campismo de Campo do Gerês, local de destino do simpático senhor. Elas esperavam-nos um pouco adiante, de gelado na boca e água geladinha a escorrer-lhes pela garganta, na companhia das pessoas que lhes tinham dado boleia, e que aceitaram o café que a minha irmã lhes ofereceu.
Foi um dia mágico – I do, i do, i do believe in fairies! – e até podemos ter outros melhores, mas nunca um igual. 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Praia das Rocas versus Chapinheiro


O anticiclone dos Açores não influencia as ondas das piscinas de Castanheira de Pêra mas precisava de fazer desaparecer as piscinas de ondas de Santarém.
O Complexo em Castanheira – Praia das Rocas - é maravilhoso: a envolvência natural, o rio que dá suporte ao lago onde navegam canoas e gaivotas em forma de cisnes gigantes, a ilha com palmeiras no meio da piscina, as casas para alugar com vista para a água e sem ferir o todo, a enorme quantidade de nadadores salvadores que se alinham com um pé quase dentro de água quando as ondas começam a subir (de hora a hora), o espaço enormíssimo, o preço (maravilhoso), as casas de banho impecáveis, o restaurante inacreditável (menus com hambúrgueres, batatas e sopa!), a possibilidade de se andar nos ditos cisnes e canoas e fazer rapel e saltos de elásticos e usar os insufláveis e experimentar uma prancha de surf, à maneira dos touros mecânicos, tudo por cinco euros e passível de repetir as vezes que se queira, as aulas de ginástica onde se dança com espaço sem incomodar o vizinho do lado.
A piscina das ondas propriamente dita (tudo é ligado, mas os espaços estão bem concebidos e individualizados com características próprias) é enorme e termina num areal onde as ondas morrem felizes.
Ali cabem todos: os mais corajosos bem lá ao fundo onde as ondas se transformam em vagalhões, os destemidos como eu que ficam a meio, e as crianças pequenas e todos os que não se sentem muito confortáveis podem ficar-se pelo local onde as ondas lhes batem suavemente nas pernas.
Como se tudo isto não fosse suficiente ainda há uma parte do complexo em anfiteatro que, estando virado para a água, mas permite fazerem-se espectáculos, no caso de magia, nos dois dias que lá estivemos.
Dormimos num dos veleiros que estão ancorados no lago para imensa alegria dos meus sobrinhos e foram duas noites para não esquecer: o pôr-do-sol com as hélices dos moinhos de vento ao longe, uma brisa frágil mas agradável, o barulhos das cordas e dos metais dos barcos, a água, o descobrir os segredos do barco, os jogos de cartas, as conversas, os planos, o balançar que nos adormeceu. Numa palavra: perfeito! Tudo por 90 € cada noite, estando as entradas no complexo de piscinas incluído.
Depois desta experiência, e passada ainda mais uma semana no Gerês, ouvimos falar de uma piscina de ondas em Santarém. Bora lá! A surpresa negativa foi enorme: é um cinco estrelas comparado com uma pensãozita…
A fila para entrar dava volta ao edifício. Compradas as entradas faz-se um percurso com passagem obrigatória pelos balneários que servem a piscina interior e onde todo o chão está encharcado, escorregadio e perigoso. Ninguém usa os balneários, logo o dito percurso faz-se calçado, deixando naquele mar com um centímetro de altura toda a porcaria possível e imaginária.
No complexo exterior cada piscina é isolada das outras: ondas, piscina livre, à falta de termo melhor, que liga a um jacuzzi, escorregas que terminam num tanque e piscina para crianças, a que foi dado o nome de chapinheiro, nome que diz tudo…
A piscina das ondas é uma banheira comparada com a de Castanheira e a piscina livre é um tanque grande onde só se pode estar porque não há espaço para nadar, mergulhar, nada.
A água transparente e as ondas que pareciam enormes bocados de gelatina verde onde mergulhámos, não tinham qualquer parentesco com a água esbranquiçada que agora se oferecia aos nossos olhos.
As pessoas ficam num relvado molhado que deixa as toalhas cheias de marcas de lama, distante de todas as piscinas, ao contrário de Castanheira onde as pessoas se alinham no redondel da própria piscina, sempre à beira da água.
Se quase se podia comer no chão das casas de banho em Castanheira, em Santarém davam vótimos: os lavatórios entupidos, as sanitas entupidas e cheias de papel e, pior que tudo, fezes no chão, chão esse encharcado e cuja água, seja através dos pés das pessoas, seja por ser em demasia, está em comunicação directa com as piscinas…
E foi assim que na primeira visita à casa de banho, vislumbrando tal panorama, agarrámos na tralha e fomos embora, não sem antes pedir o livro de reclamações.
O responsável que nos deu o livro não sabia ao certo a lotação, que não estava afixada em lado algum, o que é obrigatório. Segundo o computador, o número de pessoas que estava naquele momento na piscina, era quase o da suposta lotação, sendo que já tinha saído imensa gente.
Alegaram que não é fácil limpar casas de banho com tantas pessoas, o que se não fosse ridículo daria vontade de rir. Quando falámos em perigo para a saúde pública parecia que nos estávamos a referir a satélites de um planeta noutra galáxia.
Os preços são mais elevados em Santarém do que na Praia das Rocas, mas não é isso que nos faz não querer ouvir falar de um local e desejar regressar a outro, é que o muito mau é para esquecer e o muito bom faz-nos sonhar e queremos sempre voltar onde fomos felizes.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Três vidas


Ora aqui está um livro. As últimas oitenta páginas foram de enfiada, cotovelos enterrados na areia, sol a escaldar as costas, mas resistindo aos mergulhos.
O segredo solidifica-se desde a primeira página, a curiosidade atiça-se imediatamente, é um livro que dá fome de mais e mais páginas, que nos faz acreditar estarmos a ler uma biografia verdadeira, num discurso povoado de conhecimentos, rico e transbordante, que nos vicia e mostra tudo, através de uma visualidade das palavras que muitos procuram mas que poucos conseguem atingir.
Sentir-se o frio sentido pela personagem, ver como se fosse um filme e estivéssemos atrás da câmara, levantarmos uma sobrancelha com um susto ou abrirmos os olhos com uma surpresa são sensações proporcionadas pela leitura deste livro que nos arrasta a concentração durante um desfilar de anos, querendo mais e mais e sentindo que podemos encontrar o protagonista numa esplanada de um qualquer café.
João Tordo escreve o tipo de escrita que nos faz acreditar, aquela que sinto como verdadeira, embora não seja para divulgar pois, afinal, os segredos são para guardar.
Edição D. Quixote, 2012.

Fotografias de férias


Porque é que estamos tão ansiosos por mostrar as nossas espectaculares fotografias das férias, que são sempre tão giras, e é uma chatice gigante ver as dos outros?
As pessoas não percebem que não tem graça alguma fotografar o rancho lá da terra, mas é giríssimo mostrar trinta e nove imagens do bolo de anos do nosso petiz? Uma dentro da caixa, outra já em cima de mesa, mas de velas apagadas, outra com as velas já acesas, outra às escuras, outra com a chama das velas a fugir enquanto o gaiato sopra e cospe no bolo, outra a batermos palmas, outra com a faca na mão, outra já a cortar o bolo, outra a…
Para além disso, a maioria das pessoas não tem noção a tirar fotografias… olhem como ela se deixou fotografar a mostrar as banhas… ao menos nós estivemos sempre atrás da máquina! E eu quero lá saber se aquela miúda é sobrinha e os outros são primos! Não os conheço de parte alguma! Vejam mas é a minha colecção de fotografias de nuvens, um trabalho artístico genial, digno de um prémio!
Agora vão a correr pôr aquilo tudo no facebook, sem perceberem que não tem interesse… quero ver quantos gostos vão ter, ai quero, quero… e se tiverem algum é dos ditos primos e da sobrinha!
Eu vou só escolher duas ou três para publicar no face, mas ainda não as escolhi porque tenho que selecionar as melhores e como somos todos tão fotogénicos, tirámos imensas dentro de água… algumas, a bem da verdade, não se percebe quem lá está, mas somos nós de certeza, porque eu acho que apaguei aquelas que tirei sem óculos… 

As cinquenta parvoíces de E.L. James, supostamente protagonizadas pelo Grey


É verdade, li isto nas férias. Não, ninguém mo ofereceu, nem mo emprestaram, fui eu que o comprei e tenho chorado o dinheiro desde então.
No primeiro dia de férias cumprem-se duas tradições: comprar um livro (mesmo que tenha 100 em lista de espera) e um chapéu. O chapéu é lindo, foi eficaz e eficiente e ombreou com a tatuagem nos olhares que me dirigiram. Bem, olharam mais para a tatuagem, pois quatro balas na coxa não passam despercebidas e levantam muitas sobrancelhas.
As minhas balas e a sua localização carregam mais erotismo que todas as páginas de As cinquenta sombras de Grey. A rechonchuda El James – o nome fica melhor assim, dando-lhe ar de argumentista de novelas mexicanas – tem uma poderosa máquina atrás de si (não se vê porque ela tapa-a…) para que as aventuras de Christian e Anastasia se vendam mais que água de coco no deserto.
É uma revista cor-de-rosa em formato livro com supostos segredos e/ou sombras de alguém que gosta de controlar e dominar, adepto de bondage e que dá azo a fantasias sexuais com chicotes, algemas e afins: ele é riquíssimo, lindo, maravilhoso mas sádico, ela é virgem e tonta. Ele usa calças de flanela (aqui um opíparo elogio à tradução!), e nem mesmo muito excitado deixa cair a linguagem mencionando-se sempre seios. Aqui surgiu-me a dúvida: seriam os perinasais ou os renais?
O rapaz propõe-lhe fazer um contrato escrito com tudo o que quer e não quer fazer, onde o fisting não é traduzido, e ainda bem pela simples razão que podia ser passado para português como… flanela, por exemplo!
Os diálogos são boçais, não há construção de personagens – Grey agiu sempre de determinada maneira a vida toda e, sem razão, muda radicalmente, o que só acontece na cabeça de certas mulheres, as mesmas que devoram literatura rosa e acham que um dia vão casar com um princípe encantado, mas acham mesmo, e mais tarde ou mais cedo, também elas vão aparecer nas fotografias do jet set.
Depois, de repente, a virgenzinha tem uma birra e acaba o livro.
Ouvi comparar El James com Michel Houellebecq, mas também já ouvi comparar vinho com zurrapa. Concluindo, ouve-se de tudo, mas a verdade é que as praias estavam cheias de Greys e Anastasias, que é como quem diz, de muita curiosidade. E a fome mata-se de qualquer forma. 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Isto


Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
Do que não está de pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Fernando Pessoa