quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Se bem me lembro...

Há muito, muito tempo, eras tu uma criança… não, não bem assim que devia começar, vou tentar de novo.
Há muito tempo, era eu de facto uma criança, quando o meu pai decidiu ensinar a minha mãe a conduzir. Tínhamos um Fiat 850, mais animal de estimação do que carro, numa altura em que se metiam lá dentro sete e oito pessoas e fazíamos o percurso das vizinhanças de Lisboa, onde moram os bons suburbianos, e chegávamos ao Alentejo profundo no meio de cantorias e dormência de pernas.
Num dia de folga levou-a para um arrabalde, onde andavam a construir prédios e já se viam as linhas da rua, fronteiras marcadas a lajes de passeio, com mais de meio metro de altura pois ainda não se tinha alcatroado o pavimento.
Sentou-a no lugar do condutor e, com a mão direita a agarrar a alça por cima da porta para se segurar, por entre ordens de carrega no acelerador devagar e levanta o outro pé ao mesmo tempo, trava, volta a ligar o carro, pára, avança, tudo sequenciado por grandes movimentos para a frente e para trás devido às travagens bruscas, não viu que outro carro se aproximava. Quando deu conta gritou-lhe que travasse!, mas ela carregou no primeiro pedal que os seus delicados pés encontraram e calhou a ser o acelerador. Ele, qual general, repetiu a ordem, ela, qual subalterna inexperiente carregou no erro, que o mesmo é dizer no acelerador e o carro avançou descontrolado. Ele, querendo remediar a tragédia, puxou o volante e atirou um dos seus pés ensapatado por cima da manete das mudanças para carregar no travão, mas não evitou que embatessem nos altos passeios que ali nasciam e em décimos de segundo viram o carro levantar um dos lados e dar uma primeira cambalhota.
Como se sabe, os anos 80 do século passado fizeram parte duma medievalidade onde o cinto de segurança era coisa não obrigatória e que ninguém se lembrava de usar, os bebés seguiam ao colo de suas progenitoras no banco da frente, a indústria das cadeiras e bancos para cómodo e segurança infantil dentro das viaturas era ficção científica, assim como o limite de pessoas dentro de cada carro era estabelecido pelo dono do mesmo ou pela necessidade de transporte da totalidade da família. Isto para dizer que as alminhas não levavam cinto, pois claro.
Experimentaram a montanha russa numa segunda cambalhota, antes mesmo de ser instalada na Feira Popular, sendo empurrados pela força da gravidade dum lado ao outro e, iam a caminho da terceira, quando o bólide assentou de costas numa rocha a meio dum pequeno riacho que ali passava.
Ficaram em posição de desenho animado com braços e pernas ao contrário e valeram-lhe os operários dos prédios em construção que, vendo o aparato da coisa, largaram o que estavam a fazer e correram na direcção do carro, levantando-o em peso e depositando a carcaça em terra firme, não sem antes terem tirado a tropa lá de dentro.
O meu pai estava atónito com o resultado da sua boa acção e só pensava na dificuldade que tinha tido em comprar aquele, como iria arranjar forma de o substituir. Ela, por seu turno, sacudiu-se, deu um jeito ao cabelo e olhou o mostrador do relógio, de marca branca comprado meses antes numa feira por meio tostão ou algo semelhante e disse, alto e bom som:
- Olha, felizmente não parti o relógio.
Levado o resto mortal para a oficina dum amigo, chegaram a casa fora de horas, criando-nos uma ligeira preocupação, nada que se compare às que temos hoje se alguém não nos atende o telemóvel imediatamente, e o meu pai lá nos contou a cena. Quando chegou à parte do relógio, rimo-nos todos, como é óbvio, e ainda hoje, quando ouvimos falar em acidentes de automóvel, perguntamos se o relógio escapou, deixando as pessoas um bocado à toa.
A faceta de instrutor de condução do meu pai teve êxito anos mais tarde comigo. Pelo sim, pelo não, nunca usei relógio.

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