Um dos serviços que presto aos utilizadores da biblioteca é o envio diário de resumos da legislação portuguesa e europeia. Não sou eu que a recolho, subscrevo um serviço que o faz e reenvio a informação, a maioria das vezes, mecanicamente, sem ler, sem lhe dar grande atenção. Há dois dias, décimos de segundo antes de fazer o envio, uma expressão tímida a meio do ecrã prendeu-me o olhar: Herdade dos Machados.
De acordo com o diploma legal, anulava-se uma portaria de 1975, que expropriava os proprietários e revertia-se a propriedade para os herdeiros.
Como num filme, fui sugada pelo tempo e aterrei no passado, a meio da Estrada Nacional 255-1, que liga a aldeia de Sobral da Adiça a Moura e passa a meio da Herdade dos Machados, num daqueles dias de calor alentejano, a caminho da piscina de Moura. O meu pai vai a conduzir, a minha mãe, a seu lado, quer fechar a janela para se proteger do vento, incrivelmente quente, nós protestamos no banco de trás.
Sabíamos exactamente quando entrávamos na Herdade pois a estrada era ladeada por dois enormes pilares que ostentavam a informação: Herdade dos Machados. Vários quilómetros depois passávamos pelas costas de dois pilares iguais; no entretanto o meu pai repetia que era a maior herdade de Portugal e as vinhas, ele abrandava a velocidade, olhem para isto, a maior vinha da Península Ibérica e, quase parado, não obstante as nossas reclamações, o olival, olhem o olival, o maior da Europa.
De grande em maior, com tanto recorde até além fronteiras, assim que passávamos os pilares, sentíamo-nos como se estivéssemos a atravessar um país estrangeiro, mas não um país qualquer, que de estrangeiro estávamos nós cansadinhas, com tanto passeio que já fizéramos ao Rosal de la Frontera, não, este era um estrangeiro diferente, um reino sem sombra de dúvida, uma espécie de califado, face à localização e à proximidade com o norte de África, e não era por acaso que em Moura, já ali, permanecia a lenda da Salúquia, a princesa moura, que se suicidou perante a armadilha que lhe montaram. Quando avistávamos as costas dos pilares que determinavam, naquele sentido, o fim da Herdade, a raia, voltávamos a Portugal.
A ordem da vinha, as estradinhas alinhadas, o verde glorioso no meio do dourado envolvente, era - e é - belo sem limites, e o meu pai conseguia fazer passar para dentro do carro em brasa aquele amor pela terra e por tudo quanto se relacionasse com ela ou com a natureza, não hesitando em fazer loucas travagens quando lhe parecia avistar um gaio, sorrindo totobolísticamente à visão de um melro, quase atirando o carro para a valeta, aquilo era uma águia, não era? Felizmente que ele próprio confirmava ou desmentia a sua própria questão porque com águias ou qualquer outra passarada nós éramos zeros à esquerda.
Numa ocasião, indo de comboio de Lisboa para Moura, a locomotiva avariou na Herdade, que tinha a sua própria estação de comboios, igreja e até estação de correios. Ora, uma coisa assim era digna de reverência, tão grande que se perdia de vista, dava a volta para além do horizonte, como se fosse a terra que Mufasa apresentou a Simba com as famosas palavras: Tudo o que tua vista alcança é o nosso reino.
No dia da avaria as pessoas saíram da carruagem - com bancos de sumaúma até Beja e de sumapau, de Beja a Moura - e ficaram ali a admirar a estação.
Curiosamente, aquilo não era bem uma linha, era um ramal (Ramal Moura-Pias) que nós não sentíamos como algo menor, antes pelo contrário, era um local eleito só para eleitos, nós e poucos outros, que tínhamos o privilégio de por ali andar.
Foi das avarias que mais gostei em toda a vida pois os Machados sempre me levantaram muita curiosidade e, para além da estrada onde passávamos, eu só ouvira dizer, nunca vira nada, como se algures dentro de mim uma voz mais ou menos sussurrante alvitrasse que tudo era uma treta, qual estação, nem de comboios nem de correios, qual quê, igreja?, a mais próxima é a de S. João Baptista em Moura, minha amiga crédula, acredita em tudo quanto ouve?
O facto de estar ali na estação provava que ela existia, logo, aquela grandeza da qual sempre ouvi falar também devia ser verdadeira, e a Herdade não diminuiu de tamanho com o meu crescimento, como acontecia a quase tudo: a rua da minha avó, por algum motivo se chamava Rua Longa, mas era muito mais longa quando eu era pequena, agora era como se tivesse reduzido; acontecia o mesmo com as distâncias entre a casa dos meus tios, o café, a casa da Rosa, da Maria Antónia, da Rosarinho, até a ponte era mais pequena, até o medo de subir ao andar de cima da casa dos meus tios era mais pequeno, até a vontade de andar sempre no meio da rua mesmo com calores dignos do Sahara era mais pequena. Só a Herdade dos Machados mantinha o mesmo tamanho, continuava a não conseguir ver-lhe o fim, os lados, a extrema.
Nunca lhe conheci donos, hereditários, usufrutuários, fosse quem fosse, o mais perto que estive da casa em si foi na estação, mas o processo de apropriação e manutenção de propriedade de algo que conscientemente não é nosso, é curioso: os Machados são meus na medida em que fazem parte das minhas memórias, coisa impossível de perder. Mesmo com alzheimer não se perdem as memórias, apenas não lhes acedemos, penso que qualquer pessoa que veja filmes de ficção científica pode confirmar estas coisas básicas...
Ainda hoje, com 48 anos, quando passo na estrada pública que rasga a Herdade sinto um certo arrepio, volta a sensação de estar no estrangeiro, de não estar aqui. E se calhar não estou, porque cada vez que lá passo, volto ao passado.
De acordo com o diploma legal, anulava-se uma portaria de 1975, que expropriava os proprietários e revertia-se a propriedade para os herdeiros.
Como num filme, fui sugada pelo tempo e aterrei no passado, a meio da Estrada Nacional 255-1, que liga a aldeia de Sobral da Adiça a Moura e passa a meio da Herdade dos Machados, num daqueles dias de calor alentejano, a caminho da piscina de Moura. O meu pai vai a conduzir, a minha mãe, a seu lado, quer fechar a janela para se proteger do vento, incrivelmente quente, nós protestamos no banco de trás.
Sabíamos exactamente quando entrávamos na Herdade pois a estrada era ladeada por dois enormes pilares que ostentavam a informação: Herdade dos Machados. Vários quilómetros depois passávamos pelas costas de dois pilares iguais; no entretanto o meu pai repetia que era a maior herdade de Portugal e as vinhas, ele abrandava a velocidade, olhem para isto, a maior vinha da Península Ibérica e, quase parado, não obstante as nossas reclamações, o olival, olhem o olival, o maior da Europa.
De grande em maior, com tanto recorde até além fronteiras, assim que passávamos os pilares, sentíamo-nos como se estivéssemos a atravessar um país estrangeiro, mas não um país qualquer, que de estrangeiro estávamos nós cansadinhas, com tanto passeio que já fizéramos ao Rosal de la Frontera, não, este era um estrangeiro diferente, um reino sem sombra de dúvida, uma espécie de califado, face à localização e à proximidade com o norte de África, e não era por acaso que em Moura, já ali, permanecia a lenda da Salúquia, a princesa moura, que se suicidou perante a armadilha que lhe montaram. Quando avistávamos as costas dos pilares que determinavam, naquele sentido, o fim da Herdade, a raia, voltávamos a Portugal.
A ordem da vinha, as estradinhas alinhadas, o verde glorioso no meio do dourado envolvente, era - e é - belo sem limites, e o meu pai conseguia fazer passar para dentro do carro em brasa aquele amor pela terra e por tudo quanto se relacionasse com ela ou com a natureza, não hesitando em fazer loucas travagens quando lhe parecia avistar um gaio, sorrindo totobolísticamente à visão de um melro, quase atirando o carro para a valeta, aquilo era uma águia, não era? Felizmente que ele próprio confirmava ou desmentia a sua própria questão porque com águias ou qualquer outra passarada nós éramos zeros à esquerda.
Numa ocasião, indo de comboio de Lisboa para Moura, a locomotiva avariou na Herdade, que tinha a sua própria estação de comboios, igreja e até estação de correios. Ora, uma coisa assim era digna de reverência, tão grande que se perdia de vista, dava a volta para além do horizonte, como se fosse a terra que Mufasa apresentou a Simba com as famosas palavras: Tudo o que tua vista alcança é o nosso reino.
No dia da avaria as pessoas saíram da carruagem - com bancos de sumaúma até Beja e de sumapau, de Beja a Moura - e ficaram ali a admirar a estação.
http://s149.photobucket.com/user/kioko_garcia/media/Machados.jpg.html |
Foi das avarias que mais gostei em toda a vida pois os Machados sempre me levantaram muita curiosidade e, para além da estrada onde passávamos, eu só ouvira dizer, nunca vira nada, como se algures dentro de mim uma voz mais ou menos sussurrante alvitrasse que tudo era uma treta, qual estação, nem de comboios nem de correios, qual quê, igreja?, a mais próxima é a de S. João Baptista em Moura, minha amiga crédula, acredita em tudo quanto ouve?
O facto de estar ali na estação provava que ela existia, logo, aquela grandeza da qual sempre ouvi falar também devia ser verdadeira, e a Herdade não diminuiu de tamanho com o meu crescimento, como acontecia a quase tudo: a rua da minha avó, por algum motivo se chamava Rua Longa, mas era muito mais longa quando eu era pequena, agora era como se tivesse reduzido; acontecia o mesmo com as distâncias entre a casa dos meus tios, o café, a casa da Rosa, da Maria Antónia, da Rosarinho, até a ponte era mais pequena, até o medo de subir ao andar de cima da casa dos meus tios era mais pequeno, até a vontade de andar sempre no meio da rua mesmo com calores dignos do Sahara era mais pequena. Só a Herdade dos Machados mantinha o mesmo tamanho, continuava a não conseguir ver-lhe o fim, os lados, a extrema.
Nunca lhe conheci donos, hereditários, usufrutuários, fosse quem fosse, o mais perto que estive da casa em si foi na estação, mas o processo de apropriação e manutenção de propriedade de algo que conscientemente não é nosso, é curioso: os Machados são meus na medida em que fazem parte das minhas memórias, coisa impossível de perder. Mesmo com alzheimer não se perdem as memórias, apenas não lhes acedemos, penso que qualquer pessoa que veja filmes de ficção científica pode confirmar estas coisas básicas...
Ainda hoje, com 48 anos, quando passo na estrada pública que rasga a Herdade sinto um certo arrepio, volta a sensação de estar no estrangeiro, de não estar aqui. E se calhar não estou, porque cada vez que lá passo, volto ao passado.
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