quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

De olhos em bico

Estreei-me em Haruki Murakami com A rapariga que inventou um sonho.
Não estou extasiada. Nem com o livro nem com a tradução. Penso que o trabalho de tradução de japonês para português, neste caso de Maria João Lourenço, não é pêra doce, antes pelo contrário. Mas vamos por partes.
Os contos que compõem o livro são momentos retirados cirurgicamente duma qualquer realidade, mesmo que irreal; têm corpo e podíamos ser nós, as nossas alucinações, as nossas verdades, as nossas confissões.
Em quase todas as histórias há um elemento que se repete: está calor para a época. Haverá alguma razão para isso? Pergunto. É o autor que é encalorado e dessa forma deixa a sua marca naquela narrativa, para além da genialidade da sua criação, de alguma forma, sem ser protagonista, mas deixa uma impressão digital? É coincidência? Ou estará a temperatura certa e os protagonistas ainda não deram conta? Mas se assim for, porque há a necessidade de o afirmar, de realçar esse calor desajustado?
Por outro lado, a tradução levanta mais problemas do que qualquer uma em línguas mais próximas, por via duma cultura enraizada que revela diferenças profundas: dois jovens universitários encontrarem-se para tomar chá pode ser ridículo, estranho, cómico, pode ser muitas coisas, mas que é estranho, é. Mas não no Japão…
E se a narrativa dos jovens que se encontram a beber chá pode parecer estranha, mas é real, já o facto de alguém ficar com os olhos em bico me parece a mim uma opção de tradução altamente incorrecta, uma vez que a expressão é ocidental e para referir precisamente os povos asiáticos, logo, não creio que eles se refiram a si próprios dessa forma. Presumo ter sido a forma escolhida para traduzir uma expressão idiomática, de espanto ou surpresa, que aqui resultou mal.
Não sou tradutora mas estas coisas fazem-me levantar os olhos da página pois sinto que não encaixam. A tradução de it's raining cats and dogs nunca poderá ser chovem gatos e cães e sim qualquer coisa como chove a potes, por exemplo.
Há necessidade de traduzir ideias e expressões onde o literal está muito afastado, mas neste caso, um japonês ficar de olhos em bico, parece-me abusado, demais.
Decididamente eu fiquei com os olhos iguais.

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