Lembro-me de uma vez dizer à minha avó
que determinada peça de roupa não se passava a ferro daquela maneira. Assim
que o disse, arrependi-me. Senti-a magoada e triste. Eu não sabia passar a
ferro nem daquela maneira nem doutra, mas via a minha mãe a fazê-lo de outra
forma e abri a boca para deixar sair asneira. Sempre amei profundamente a minha
avó e o meu avô, e embora fosse muito pequena – não tinha seis anos, fui fazê-los
a outra casa, por isso sei a idade que tinha – nunca mais me esqueci daquele
episódio. Ela estava apenas a ajudar da maneira que sabia e mais nada.
Ao longo dos anos sempre que ia a casa deles no Alentejo,
em pequena, na adolescência e já adulta, sempre fiz o maior número de coisas
possível para a ajudar, ouvindo-a sobre a melhor maneira de o fazer, mesmo que
não coincidisse com a minha opinião. Raras vezes os meus avós se aborreceram
comigo e mesmo quando teimava lavar roupa no tanque debaixo de grandes
calorinas, sorria com carinho verdadeiro para que ela não se zangasse comigo e
me deixasse estar molhada das unhas dos pés até à raiz do cabelo.
Agora lembro-me disto a cada dia que passa por causa da
minha mãe que continua a ir de vez em quando a minha casa ajudar-me com a roupa
e as limpezas mas, já não sendo a cabeça o que era, os resultados são um pouco
insólitos: em vez de estender a roupa lavada que está na máquina, põe-na a
lavar outra vez; passa a ferro e pendura roupa com manchas; limpa o pó mas
esquece-se de um móvel; guarda comida no forno e não no frigorífico, entre
outras coisas.
Muitas vezes rimo-nos das coisas que ela faz, um riso
espontâneo mas assustador, que nos faz antever o amanhã, um amanhã sem memória.
Há dias saiu de casa com o telemóvel no bolso e precisando de fazer um
telefonema carregava nas teclas mas não acontecia nada. Pediu ajuda ao meu pai
que, não se aguentou, e desatou a rir: ela tinha levado o comando da televisão
em vez do telefone. Já depois disso, enquanto fazia o jantar o meu pai via um
programa de televisão sobre snooker; ela chamou-o para a mesa e ele foi mas não
apagou a televisão; ela foi à sala desligá-la e, vendo a mesa de pano verde a
ocupar todo o ecrã perguntou-lhe se ia haver bola e quais eram as equipas… É
claro que nós brincámos a dizer que era sem dúvida um problema de vista, pois
tinha confundido uma mesa de snooker com um campo de futebol.
A minha mãe apercebe-se que a memória está a falhar, fica angustiada e repete ai, a minha cabeça.... Pede-nos que demos recados ao meu pai, cuja cabeça funciona
como um relógio suíço, escreve tudo em papéis que ficam colados no frigorífico,
embora se esqueça de ler esses papéis e a recente operação do meu pai deixou-a
de rastos fisicamente. As deslocações a Lisboa, coisa banal para qualquer um, são
aventuras para ela e apertos no coração para mim, que morro de medo que se
perca.
Sinto-me aprisionada num campo de forças invisível como
se fosse uma personagem do Espaço 1999 que tanto gostava de ver. Vejo fotografias
com uma mulher determinada e um homem forte que conheço bem e não os encontro
em parte alguma. Para onde foram?
A minha irmã vive longe e eu, por via da proximidade,
tenho outra responsabilidade, outro olhar, como se estivesse sempre acordada
como fazia nos primeiros dias de vida do Duarte, com medo que lhe acontecesse
alguma coisa. Até a dormir me preocupo e dou por mim a pensar que não posso
estar doente, senão, que será deles?
A idade fá-los teimosos, a ambos. Dou-lhe um desconto
maior a ela, sei que não sabe, que não se lembra. Nos últimos anos de vida do
meu avô, pai da minha mãe, as conversas decorriam em torno de uma realidade com
décadas, mas como se aquilo tivesse acontecido ontem; a baralhação de tempos
era inacreditável, acompanhá-lo em tantos calendários, era impossível. A minha
avó chamava-o para almoçar, por exemplo, e ele teimava que tinha acabado de
comer. Teimava também em ir ver terras que já não lhe pertenciam, que tinham
sido vendidas, informação contra a qual ele se insurgia, pondo-se a caminho com
a força de um homem do campo que leva tudo à frente e não admite obstáculos. Nesta
fase já não tinha consciência que a memória estava irremediavelmente
danificada, e eu pergunto-me quanto tempo falta para que a minha mãe esteja
assim. Pergunto-me também, num sussurro, muito baixinho, quanto tempo falta
para que eu esteja assim também.
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