segunda-feira, 13 de maio de 2013

Ai a minha cabeça


Lembro-me de uma vez dizer à minha avó que determinada peça de roupa não se passava a ferro daquela maneira. Assim que o disse, arrependi-me. Senti-a magoada e triste. Eu não sabia passar a ferro nem daquela maneira nem doutra, mas via a minha mãe a fazê-lo de outra forma e abri a boca para deixar sair asneira. Sempre amei profundamente a minha avó e o meu avô, e embora fosse muito pequena – não tinha seis anos, fui fazê-los a outra casa, por isso sei a idade que tinha – nunca mais me esqueci daquele episódio. Ela estava apenas a ajudar da maneira que sabia e mais nada.
Ao longo dos anos sempre que ia a casa deles no Alentejo, em pequena, na adolescência e já adulta, sempre fiz o maior número de coisas possível para a ajudar, ouvindo-a sobre a melhor maneira de o fazer, mesmo que não coincidisse com a minha opinião. Raras vezes os meus avós se aborreceram comigo e mesmo quando teimava lavar roupa no tanque debaixo de grandes calorinas, sorria com carinho verdadeiro para que ela não se zangasse comigo e me deixasse estar molhada das unhas dos pés até à raiz do cabelo.
Agora lembro-me disto a cada dia que passa por causa da minha mãe que continua a ir de vez em quando a minha casa ajudar-me com a roupa e as limpezas mas, já não sendo a cabeça o que era, os resultados são um pouco insólitos: em vez de estender a roupa lavada que está na máquina, põe-na a lavar outra vez; passa a ferro e pendura roupa com manchas; limpa o pó mas esquece-se de um móvel; guarda comida no forno e não no frigorífico, entre outras coisas.
Muitas vezes rimo-nos das coisas que ela faz, um riso espontâneo mas assustador, que nos faz antever o amanhã, um amanhã sem memória. Há dias saiu de casa com o telemóvel no bolso e precisando de fazer um telefonema carregava nas teclas mas não acontecia nada. Pediu ajuda ao meu pai que, não se aguentou, e desatou a rir: ela tinha levado o comando da televisão em vez do telefone. Já depois disso, enquanto fazia o jantar o meu pai via um programa de televisão sobre snooker; ela chamou-o para a mesa e ele foi mas não apagou a televisão; ela foi à sala desligá-la e, vendo a mesa de pano verde a ocupar todo o ecrã  perguntou-lhe se ia haver bola e quais eram as equipas… É claro que nós brincámos a dizer que era sem dúvida um problema de vista, pois tinha confundido uma mesa de snooker com um campo de futebol.
A minha mãe apercebe-se que a memória está a falhar, fica angustiada e repete ai, a minha cabeça.... Pede-nos que demos recados ao meu pai, cuja cabeça funciona como um relógio suíço, escreve tudo em papéis que ficam colados no frigorífico, embora se esqueça de ler esses papéis e a recente operação do meu pai deixou-a de rastos fisicamente. As deslocações a Lisboa, coisa banal para qualquer um, são aventuras para ela e apertos no coração para mim, que morro de medo que se perca.
Sinto-me aprisionada num campo de forças invisível como se fosse uma personagem do Espaço 1999 que tanto gostava de ver. Vejo fotografias com uma mulher determinada e um homem forte que conheço bem e não os encontro em parte alguma. Para onde foram?
A minha irmã vive longe e eu, por via da proximidade, tenho outra responsabilidade, outro olhar, como se estivesse sempre acordada como fazia nos primeiros dias de vida do Duarte, com medo que lhe acontecesse alguma coisa. Até a dormir me preocupo e dou por mim a pensar que não posso estar doente, senão, que será deles?
A idade fá-los teimosos, a ambos. Dou-lhe um desconto maior a ela, sei que não sabe, que não se lembra. Nos últimos anos de vida do meu avô, pai da minha mãe, as conversas decorriam em torno de uma realidade com décadas, mas como se aquilo tivesse acontecido ontem; a baralhação de tempos era inacreditável, acompanhá-lo em tantos calendários, era impossível. A minha avó chamava-o para almoçar, por exemplo, e ele teimava que tinha acabado de comer. Teimava também em ir ver terras que já não lhe pertenciam, que tinham sido vendidas, informação contra a qual ele se insurgia, pondo-se a caminho com a força de um homem do campo que leva tudo à frente e não admite obstáculos. Nesta fase já não tinha consciência que a memória estava irremediavelmente danificada, e eu pergunto-me quanto tempo falta para que a minha mãe esteja assim. Pergunto-me também, num sussurro, muito baixinho, quanto tempo falta para que eu esteja assim também.

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