Das vezes em que fui submetida a cirurgias começava o dia com a expectativa das visitas. Quando elas chegavam eu rezava interiormente para que se fossem embora. Até aí achava que a expressão 'cansar os doentes' era um bocado vazia de conteúdo, hoje sei que não é assim.
Carótidas desobstruídas, doente com com bom ar, cá deste lado respira-se de alívio e pondera-se seriamente em desligar o telefone.
Ontem demorei horas a fazer o jantar e lembrei-me de Duas Mulheres em Praga, de Juan José Millás, penso que é este, no qual uma das personagens ata o braço direito para se forçar a fazer tudo com o esquerdo: eu ia mudando de braço e mão, mas usando um à vez pois estive horas ao telefone e ia desligando quando entrava outra chamada ou tocava outro telefone. Todos queriam saber notícias da operação e o meu telefone parecia uma central de informações médicas. Às tantas já respondia maquinalmente e os últimos dois telefonemas foram remetidos para hoje, atendidos que foram já na cama e só os atendi para que as pessoas em causa não lhes atendendo eu, fossem ligar à minha mãe.
Agradeço muitíssimo todos estes cuidados, como é óbvio, prova provada dos amigos dos meus pais, mas confesso um cansaço enorme.
Por outro lado, tinha já dezenas de telefonemas não atendidos ao longo do dia, na maioria de amigos já reformados que, querendo saber novidades, não se lembram que estou a trabalhar e que não posso estar ao telefone nas calmas. Assim, a um deles disse-lhe que lhe ligava logo, sendo o meu logo mentalmente ao fim do dia. Um quarto de hora depois estava ele a ligar novamente alegando que eu dissera logo e ainda não tinha telefonado.
Respiro fundo duas ou três vezes e digo estar muito ocupada. Mas ele só quer saber como está o meu pai. Está bem, digo eu, parva e ingénua. Onde é que duas palavras chegam numa situação destas? Ele quer saber a que horas entrou no hospital, a que horas devia ter sido operado e a que horas foi mesmo operado, qual a razão do atraso e mil outras coisas. Repito que não posso estar a falar, que estou a trabalhar e ele condescende não sem antes me arrancar uma promessa que telefonarei de novo. Logo. Sim, mas não logo logo, ao fim do dia. E atenção: o meu fim do dia é já de noite.
Concluindo, ontem estava mesmo cansada e já com uma ponta de irritação, mas hoje revejo tudo e tenho vontade de rir, principalmente lembrando um dos meus interlocutores que queria falar com a minha irmã ao telefone e me disse que lhe ligaria à hora do almoço, sabendo que almoçaria em casa. Sugeri que não o fizesse e que optasse pela noite, pois ao almoço é sempre tudo a correr. Ele respondeu-me incrédulo que mesmo que ela comesse batatas fritas com ovos estrelados sempre os demorava a fazer, a pôr a mesa, a comer e tudo isso. Imaginando a minha irmã a comer à pressa qualquer coisa já pronta tirada do microondas, sorri interiormente perante o abismo que existe entre duas verdades.
Carótidas desobstruídas, doente com com bom ar, cá deste lado respira-se de alívio e pondera-se seriamente em desligar o telefone.
Ontem demorei horas a fazer o jantar e lembrei-me de Duas Mulheres em Praga, de Juan José Millás, penso que é este, no qual uma das personagens ata o braço direito para se forçar a fazer tudo com o esquerdo: eu ia mudando de braço e mão, mas usando um à vez pois estive horas ao telefone e ia desligando quando entrava outra chamada ou tocava outro telefone. Todos queriam saber notícias da operação e o meu telefone parecia uma central de informações médicas. Às tantas já respondia maquinalmente e os últimos dois telefonemas foram remetidos para hoje, atendidos que foram já na cama e só os atendi para que as pessoas em causa não lhes atendendo eu, fossem ligar à minha mãe.
Agradeço muitíssimo todos estes cuidados, como é óbvio, prova provada dos amigos dos meus pais, mas confesso um cansaço enorme.
Por outro lado, tinha já dezenas de telefonemas não atendidos ao longo do dia, na maioria de amigos já reformados que, querendo saber novidades, não se lembram que estou a trabalhar e que não posso estar ao telefone nas calmas. Assim, a um deles disse-lhe que lhe ligava logo, sendo o meu logo mentalmente ao fim do dia. Um quarto de hora depois estava ele a ligar novamente alegando que eu dissera logo e ainda não tinha telefonado.
Respiro fundo duas ou três vezes e digo estar muito ocupada. Mas ele só quer saber como está o meu pai. Está bem, digo eu, parva e ingénua. Onde é que duas palavras chegam numa situação destas? Ele quer saber a que horas entrou no hospital, a que horas devia ter sido operado e a que horas foi mesmo operado, qual a razão do atraso e mil outras coisas. Repito que não posso estar a falar, que estou a trabalhar e ele condescende não sem antes me arrancar uma promessa que telefonarei de novo. Logo. Sim, mas não logo logo, ao fim do dia. E atenção: o meu fim do dia é já de noite.
Concluindo, ontem estava mesmo cansada e já com uma ponta de irritação, mas hoje revejo tudo e tenho vontade de rir, principalmente lembrando um dos meus interlocutores que queria falar com a minha irmã ao telefone e me disse que lhe ligaria à hora do almoço, sabendo que almoçaria em casa. Sugeri que não o fizesse e que optasse pela noite, pois ao almoço é sempre tudo a correr. Ele respondeu-me incrédulo que mesmo que ela comesse batatas fritas com ovos estrelados sempre os demorava a fazer, a pôr a mesa, a comer e tudo isso. Imaginando a minha irmã a comer à pressa qualquer coisa já pronta tirada do microondas, sorri interiormente perante o abismo que existe entre duas verdades.
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