Fui a Coimbra e esqueci-me de
fazer o euromilhões (ou o totomilhões, como diz o meu pai que, numa palavra só,
abarca dois tipos de jogo. Genial.) Vinha no comboio, pensei nisso e a minha
memória acompanhou a velocidade da deslocação mas noutro sentido, em direcção
ao passado. Lembrei-me que na primária emparceirei na carteira com várias
pessoas. A minha favorita era o António que, não obstante ter umas calças de
ganga com martelos amarelos que eu achava ridículos, era lindo de morrer. Para além
do António sentei-me ao lado da Anita e de uma rapariga cujo nome não consigo
recordar, a que chamarei Maria.
A mãe da Maria vendia jornais e
jogo numa banca em Lisboa e como o meu pai fazia jornais eu achava que
havia uma certa ligação entre nós que se prolongava para além do espaço que ocupávamos
na sala de aula. Já a mãe da Anita era doméstica, o que, que me perdoe quem se
ofender, me lembrava sempre animais domésticos…
Como entrei para aquela escola
a meio do ano sentaram-me ao lado da Anita, a única aluna que estava sozinha na
carteira e, nos primeiros minutos do primeiro dia, vá lá saber-se porque,
cuspiu-me em cima! Acto imediato levou um estaladão, eu levei outro da
professora, a D. Graciosa, a quem bastou correr para a rua e chamar a minha mãe
que tinha acabado de me deixar ali, para lhe fazer queixa do comportamento da
filha. É claro que não me perguntou nada e tendo a sua visão captado o
movimento do meu braço a abalançar-se com violência para assentar a mão na cara
da Anita, declarou-me culpada. A custo lá disse as minhas motivações para
semelhante atitude e minutos depois já era amiga de uma Anita com uma face
vermelha e a minha mãe foi embora mais ou menos descansada mas surpreendida com
a sua filha, sempre tão calma, a fazer coisas daquelas.
A Maria era também muito
calma, calma demais, e os níveis de aprendizagem quando fugiam do zero era para
baixo. Custava-me entender como não conseguia nem sequer decorar e enquanto eu
falava de geografia ou história ela retorquia com histórias de clientes lá da
banca de jornais. Eu adorava-a, apesar de ela detestar a escola que eu amava. Feita
a quarta classe a Maria desapareceu do mapa da gaiatada lá do bairro. Anos mais
tarde encontrei-a na banca dos jornais, não me reconheceu e eu confundi-a com a
mãe dela. O meu ar aparvalhado fê-la perguntar se queria mais alguma coisa e lá
lhe disse quem era. Ficou com ar feliz e eu também por ela se lembrar de mim.
Muitos anos mais tarde, num
dos colégios infantis que os meus pais tinham andava uma miúda tão parecida com
a Maria que, não fosse a diferença de idades, podiam ser gémeas. Ambas eram
enormes para os anos que tinham, a atirar para o gordo, bolachudas de cara e
com faces muito rosadas.
Os pais da Vanessa, assim se
chamava a Maria II, por coincidência, tinham uma banca de jornais e o pai
vendia lotaria pelas ruas.
Numa ocasião os pais
procuraram a minha mãe e pediram-lhe ajuda pois iam viajar e não tinham com
quem deixar a garota, cujo corpo era de adulta mas apenas contava 11 ou 12
anos. A minha mãe disponibilizou-se para ficarmos com ela e foi assim que a
Vanessa morou uma semana na nossa casa, fazendo a vida que nós fazíamos. Tendo um
ou dois anos de diferença da minha irmã programaram-se os trabalhos escolares
em conjunto e por aí fora. A cada passo a Vanessa me fazia lembrar a Maria, por
exemplo quando lia Dona Maria i, em vez de Dona Maria Primeira, e nós fartávamo-nos
de rir.
Uma noite fomos convidados a
jantar em casa de uns amigos e a Vanessa também foi, é claro. Chegados lá, no
meio da conversa e porque ela sendo miúda mas estava sempre junto dos adultos,
perguntaram-lhe onde tinham ido os pais. À Rússia. À Russia? Ena pá! Isso é
longe que se farta. E os teus pais foram de férias?
Perante esta pergunta, a
Vanessa deita um ar cúmplice à minha mãe, como que a procurar apoio, e diz:
- Não. Os meus pais são
contrabandistas e foram buscar mercadoria.
A sala ficou em silêncio, nem
os talheres se ouviam. Imediata e rapidamente todos quiseram saber tudo, principalmente
a minha mãe a quem a garota, por imposição da sua própria mãe, chamava Senhora
Directora. Ora, o olhar que antecedeu o largar da bomba dava a senhora directora
como cúmplice da coisa o que levantou enormes gargalhadas, enquanto a Vanessa
garantiu o lugar de rainha da noite com todas as conversas a decorrer à sua
volta.
Lá se lhe disse que aquela frase
não era a mais adequada para descrever a actividade dos pais, ao que ela
insistiu afirmando que os jornais e a lotaria não davam de comer a alguém e que
sim, era o contrabando que os sustentava e que pagava o colégio, sendo as
últimas palavras engolidas com um esgar pela senhora directora.
Quando os pais chegaram, a
minha mãe contou-lhes o ocorrido durante outro momento caricato: queria ela
explicar a cena e eles, vá de tirarem prendas (contrabando?) de sacos, e mais
um beibilou e mais uma camisa típica e mais uma matrioska e mais não sei o quê.
Iam ouvindo as palavras da minha mãe e no fim afirmaram que sim, que a filha se
limitara a contar a verdade, que normalmente iam ao Norte de África mas de
fim-de-semana, e, sendo só dois dias, a Vanessa ficava com uma vizinha ou algo
parecido. Agora tinham ido ver o mercado russo, de que alguém lhes tinha
falado, mas era muito difícil, sabia a minha mãe?, a língua, sabe, a língua é
muito complicada. Pensava a senhora directora que a lotaria dava de comer a
alguém?
Gostava de encontrar a Vanessa para saber se tinha seguido a carreira dos pais…
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