As minhas mudanças de casa em 46 anos de vida fazem
inveja a muitos ciganos.
16 anos foi o período maior em que nos mantivemos na
mesma residência, nas Mercês, paredes meias com a linha do comboio, único
transporte público que nos levava ao fim de semana a Sintra e à semana até ao
Rossio. A proximidade era tão grande que o meu pai saia de casa quando as campainhas
começavam a tocar. Apressava o passo e apanhava o comboio.
A urbanização, que ainda existe, formava um quadrado de
prédios verdes de três andares. Durante a nossa permanência e ainda por vários
anos o arruamento chamava-se Rua A, tendo passado há meia dúzia de anos para
Rua Actor Vasco Santana, se não me falha a memória.
No meio do quadrado de prédios verdes havia uma cratera
que hoje seria declarada inimiga pública nº 1 e que, na altura, era o melhor
parque de diversões que podia existir, cheia de restos de construções, madeiras
e ferros, montes de areia, ervas de toda a qualidade e feitio e bandos de
gaiatada.
Inexplicavelmente os nossos pais reclamavam daquele sítio
maravilhoso, de tal forma que a Câmara terraplanou aquilo. A partir daí
perdemos alguma diversão mas ganhámos outras e uma delas era o circo que ali se
montava uma vez ao ano: leões e tigres, macacos e camelos, palhaços e
malabaristas assentavam arraiais diante da nossa casa durante uma semana inteira.
Por baixo de nós morava a família da D. Delfina,
matriarca que me fez esquecer os nomes dos outros elementos lá de casa, e se
eram muitos: o marido, o filho mais velho, a neta (filha da filha mais nova) e
um hóspede, um senhor brasileiro que nos punha a rir quando repetia o número de
telefone e dizia com voz melodiosa, meia, meia, quando nós dizíamos seis, seis.
O filho sofria de depressão crónica, fosse isso o que fosse, era grave de
certeza porque não trabalhava, embora fosse reconhecido na rua como um homem
muito inteligente. Como podia um homem tão inteligente não trabalhar? Qualquer coisa
ali não batia certo, mas nem mesmo nas explicações de matemática e
fisíco-quimíca que me dava, não consegui descobrir nada.
As explicações eram dadas na sala da D. Delfina, atulhada
de roupa e móveis, em cuja mesa se arranjava um espaço para pousarmos os
cadernos; ele entregava-me umas folhas brancas imaculadas onde apenas se via a
letra perfeita que desenhava números e equações, contrastando com tudo o resto
e que, naqueles momentos, faziam parecer a matemática como um segundo ar
respirável.
Contudo, vá lá saber-se porquê, assim que chegava aos
testes, toda aquela facilidade desaparecia como que por artes mágicas e eu não
me lembrava de nada. Talvez para isso contribuísse o facto de ele preparar
exercícios e dar-me tempo para que os fizesse; mas durante esse tempo eu
contava os aranhiços que moravam no canto da sala por cima da porta, via os
rolos de cotão a mexerem-se por baixo do sofá e assistia atónita à neta entrar
na sala, pedindo desculpa, remexer no gigantesco monte de roupa que morava no
sofá, despir-se e voltar a vestir-se, atirando a roupa usada para o monte o que
me preocupava sobremaneira pois não percebia como faziam a distinção do que
estava lavado e do que estava sujo.
A D. Delfina sofria do coração. Quando nos juntávamos na
rua e calhava falarmos dos grandes, dos pais, dos vizinhos, dizíamos que ela tinha
um relógio metido no peito a que era preciso dar corda para que não morresse. Porém,
a pena e o respeito que nos incutia o relógio que tinha metido nas mamas era
contrabalançado pelo facto de ser coxa, de não tomar banho e de depenar
galinhas à porta da garagem num chiqueiro que nos enojava. Mas, de tudo, era a
sua perna mais curta que nos dava as maiores gargalhadas, porque a imitávamos e
imaginávamos situações onde ela teria que correr e não seria capaz. No fundo,
tudo se resumia à crueldade infantil no seu esplendor.
Numa tarde quente a minha mãe não nos deixou ir brincar
para a rua sem que o sol baixasse. Ela estava de volta da máquina da costura e
nós as três costurávamos à mão, eu sempre com uma linha gigante, a que elas
chamavam linha de preguiçosa.
Estavámos de mau humor pois o circo estava instalado diante
dos prédios e os nossos amigos estavam a ver os animais. De três em três
minutos, uma de nós corria para a janela da frente para ver quem estava na rua,
quem tinha chegado, quem se tinha ido embora e voltava a dar as novidades às
outras, que se picavam com as agulhas e a inveja, na varanda oposta, que dava
para a linha do comboio.
A minha mãe já tinha ditado a sorte, que na nossa perspectiva
era um grande azar, e lá estávamos nós a ver passar os comboios, a controlar o
caminho estreito para as garagens e as hortas que ficavam por trás, como se
fossemos guardas-fiscais desterrados num ermo.
Passou o Sr. Fernando, que não tinha carro mas tinha
garagem, na qual instalara uma mesa de pingue-pongue onde os amigos do filho
jogavam tardes inteiras. Passou a D. Delfina em direcção à horta, no seu passo
de cem, cento e vinte, como lhe chamávamos, em honra de um outro coxo assim
conhecido e que morava lá na aldeia. Passaram amigos nossos a correr, na
brincadeira. Com um enorme regador nas mãos, para regar umas plantas quaisquer,
passou a Miss Piggy, a quem assim chamávamos por ser alta e casada com um homem
baixinho, a quem chamávamos Cocas, como é óbvio.
Nem o barulho da Singer verde, que ponteava e chuleava ao
ritmo dos pés da minha mãe que os fazia descer e subir a uma velocidade
invejável, aplacava os nossos suspiros que denunciavam uma ansiedade enorme por
sairmos dali.
Qualquer coisa captava a nossa atenção, o comboio a
passar, um pássaro, até a D. Delfina que regressava da horta, braçada de couves
a escorregarem-lhe de debaixo dos braços.
Foi então que aconteceu. Três andares acima as linhas e
as agulhas voaram com o grito de horror da D. Delfina que abriu os braços e
deixou cair as couves, recuando conforme as pernas de diferentes tamanhos lhe
permitiam. Ao seu encontro corria um enorme chimpanzé que, acossado pela
rapaziada, acabou por embater na D. Delfina, saltando por cima de uma vedação e
fugindo para o meio das hortas. Qualquer uma de nós as quatro não podia
acreditar no que via!
A minha mãe desatou aos gritos largando a máquina de
costura, e desceu as escadas a correr na direcção da D. Delfina que estava desmaiada
no chão, sozinha. Nós ainda vimos dois homens do circo passarem a correr atrás
do macaco, também eles aos gritos.
Começámos a correr escada abaixo atrás da minha mãe que
nos mandou para trás para chamarmos os bombeiros. Pela primeira e última vez ligámos
o número que estava ao lado do telefone para emergências, e demos a única
informação possível: uma senhora foi abalroada por um chimpanzé e parece que está
desmaiada mas se calhar morreu porque a senhora tem um relógio no peito a que
tem que dar corda se não morre e com a queda talvez o relógio se tenha partido!
Venham depressa! Ah, e é coxa!
Com a pressa quase não dava a morada e já ia desligar
quando ouvi perguntar onde estava a senhora. Sabendo da localização do circo,
os bombeiros vieram num apito e rapidamente se juntaram a um aglomerado difícil
de imaginar: um brasileiro que tentava arranjar espaço para a senhora respirar,
duas pessoas do circo vestidas de forma bizarra, uma mulher com o pescoço
envolto em linhas e uma almofadinha cheia de alfinetes ao peito, várias
crianças que berravam e, a poucos metros, dois homens que amansavam um macaco, com
festas, conversa e bananas.
O relógio que morava no peito da D. Delfina tinha-se
mesmo avariado com o susto que, não obstante, nunca se apurou se foi maior que
o do chimpanzé ou não, e esteve hospitalizada alguns dias.
O circo arrumou as trouxas no dia seguinte e nessa tarde,
a última, nenhum de nós se pode aproximar dos animais. Aparentemente o
chimpanzé tinha fugido quando o tratador o soltara e a berraria dos miúdos o
tinha assustado.
A D. Delfina regressou a casa, com um relógio novo
dizíamos nós, e sem vontade de macacadas. Claro que, se até aí ela era alvo do
nosso gozo, a partir desse dia e conseguindo encontrar semelhanças entre o
andar da D. Delfina e o andar cambaleante dos macacos, aumentámos a preversa
gozação.
Como uma espécie de castigo, o circo nunca mais ali se
instalou e passámos a viver de memórias.
Soube ontem que a D. Delfina morreu. Sem maldade, não pude deixar de sorrir, perante a lembrança de alguém que ajudou a povoar a minha infância e adolescência de tanta recordação.
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