segunda-feira, 16 de abril de 2012

A D. Delfina

As minhas mudanças de casa em 46 anos de vida fazem inveja a muitos ciganos.
16 anos foi o período maior em que nos mantivemos na mesma residência, nas Mercês, paredes meias com a linha do comboio, único transporte público que nos levava ao fim de semana a Sintra e à semana até ao Rossio. A proximidade era tão grande que o meu pai saia de casa quando as campainhas começavam a tocar. Apressava o passo e apanhava o comboio.
A urbanização, que ainda existe, formava um quadrado de prédios verdes de três andares. Durante a nossa permanência e ainda por vários anos o arruamento chamava-se Rua A, tendo passado há meia dúzia de anos para Rua Actor Vasco Santana, se não me falha a memória.
No meio do quadrado de prédios verdes havia uma cratera que hoje seria declarada inimiga pública nº 1 e que, na altura, era o melhor parque de diversões que podia existir, cheia de restos de construções, madeiras e ferros, montes de areia, ervas de toda a qualidade e feitio e bandos de gaiatada.
Inexplicavelmente os nossos pais reclamavam daquele sítio maravilhoso, de tal forma que a Câmara terraplanou aquilo. A partir daí perdemos alguma diversão mas ganhámos outras e uma delas era o circo que ali se montava uma vez ao ano: leões e tigres, macacos e camelos, palhaços e malabaristas assentavam arraiais diante da nossa casa durante uma semana inteira.
Por baixo de nós morava a família da D. Delfina, matriarca que me fez esquecer os nomes dos outros elementos lá de casa, e se eram muitos: o marido, o filho mais velho, a neta (filha da filha mais nova) e um hóspede, um senhor brasileiro que nos punha a rir quando repetia o número de telefone e dizia com voz melodiosa, meia, meia, quando nós dizíamos seis, seis. O filho sofria de depressão crónica, fosse isso o que fosse, era grave de certeza porque não trabalhava, embora fosse reconhecido na rua como um homem muito inteligente. Como podia um homem tão inteligente não trabalhar? Qualquer coisa ali não batia certo, mas nem mesmo nas explicações de matemática e fisíco-quimíca que me dava, não consegui descobrir nada.
As explicações eram dadas na sala da D. Delfina, atulhada de roupa e móveis, em cuja mesa se arranjava um espaço para pousarmos os cadernos; ele entregava-me umas folhas brancas imaculadas onde apenas se via a letra perfeita que desenhava números e equações, contrastando com tudo o resto e que, naqueles momentos, faziam parecer a matemática como um segundo ar respirável.
Contudo, vá lá saber-se porquê, assim que chegava aos testes, toda aquela facilidade desaparecia como que por artes mágicas e eu não me lembrava de nada. Talvez para isso contribuísse o facto de ele preparar exercícios e dar-me tempo para que os fizesse; mas durante esse tempo eu contava os aranhiços que moravam no canto da sala por cima da porta, via os rolos de cotão a mexerem-se por baixo do sofá e assistia atónita à neta entrar na sala, pedindo desculpa, remexer no gigantesco monte de roupa que morava no sofá, despir-se e voltar a vestir-se, atirando a roupa usada para o monte o que me preocupava sobremaneira pois não percebia como faziam a distinção do que estava lavado e do que estava sujo.
A D. Delfina sofria do coração. Quando nos juntávamos na rua e calhava falarmos dos grandes, dos pais, dos vizinhos, dizíamos que ela tinha um relógio metido no peito a que era preciso dar corda para que não morresse. Porém, a pena e o respeito que nos incutia o relógio que tinha metido nas mamas era contrabalançado pelo facto de ser coxa, de não tomar banho e de depenar galinhas à porta da garagem num chiqueiro que nos enojava. Mas, de tudo, era a sua perna mais curta que nos dava as maiores gargalhadas, porque a imitávamos e imaginávamos situações onde ela teria que correr e não seria capaz. No fundo, tudo se resumia à crueldade infantil no seu esplendor.
Numa tarde quente a minha mãe não nos deixou ir brincar para a rua sem que o sol baixasse. Ela estava de volta da máquina da costura e nós as três costurávamos à mão, eu sempre com uma linha gigante, a que elas chamavam linha de preguiçosa.
Estavámos de mau humor pois o circo estava instalado diante dos prédios e os nossos amigos estavam a ver os animais. De três em três minutos, uma de nós corria para a janela da frente para ver quem estava na rua, quem tinha chegado, quem se tinha ido embora e voltava a dar as novidades às outras, que se picavam com as agulhas e a inveja, na varanda oposta, que dava para a linha do comboio.
A minha mãe já tinha ditado a sorte, que na nossa perspectiva era um grande azar, e lá estávamos nós a ver passar os comboios, a controlar o caminho estreito para as garagens e as hortas que ficavam por trás, como se fossemos guardas-fiscais desterrados num ermo.
Passou o Sr. Fernando, que não tinha carro mas tinha garagem, na qual instalara uma mesa de pingue-pongue onde os amigos do filho jogavam tardes inteiras. Passou a D. Delfina em direcção à horta, no seu passo de cem, cento e vinte, como lhe chamávamos, em honra de um outro coxo assim conhecido e que morava lá na aldeia. Passaram amigos nossos a correr, na brincadeira. Com um enorme regador nas mãos, para regar umas plantas quaisquer, passou a Miss Piggy, a quem assim chamávamos por ser alta e casada com um homem baixinho, a quem chamávamos Cocas, como é óbvio.
Nem o barulho da Singer verde, que ponteava e chuleava ao ritmo dos pés da minha mãe que os fazia descer e subir a uma velocidade invejável, aplacava os nossos suspiros que denunciavam uma ansiedade enorme por sairmos dali.
Qualquer coisa captava a nossa atenção, o comboio a passar, um pássaro, até a D. Delfina que regressava da horta, braçada de couves a escorregarem-lhe de debaixo dos braços.
Foi então que aconteceu. Três andares acima as linhas e as agulhas voaram com o grito de horror da D. Delfina que abriu os braços e deixou cair as couves, recuando conforme as pernas de diferentes tamanhos lhe permitiam. Ao seu encontro corria um enorme chimpanzé que, acossado pela rapaziada, acabou por embater na D. Delfina, saltando por cima de uma vedação e fugindo para o meio das hortas. Qualquer uma de nós as quatro não podia acreditar no que via!
A minha mãe desatou aos gritos largando a máquina de costura, e desceu as escadas a correr na direcção da D. Delfina que estava desmaiada no chão, sozinha. Nós ainda vimos dois homens do circo passarem a correr atrás do macaco, também eles aos gritos.
Começámos a correr escada abaixo atrás da minha mãe que nos mandou para trás para chamarmos os bombeiros. Pela primeira e última vez ligámos o número que estava ao lado do telefone para emergências, e demos a única informação possível: uma senhora foi abalroada por um chimpanzé e parece que está desmaiada mas se calhar morreu porque a senhora tem um relógio no peito a que tem que dar corda se não morre e com a queda talvez o relógio se tenha partido! Venham depressa! Ah, e é coxa!
Com a pressa quase não dava a morada e já ia desligar quando ouvi perguntar onde estava a senhora. Sabendo da localização do circo, os bombeiros vieram num apito e rapidamente se juntaram a um aglomerado difícil de imaginar: um brasileiro que tentava arranjar espaço para a senhora respirar, duas pessoas do circo vestidas de forma bizarra, uma mulher com o pescoço envolto em linhas e uma almofadinha cheia de alfinetes ao peito, várias crianças que berravam e, a poucos metros, dois homens que amansavam um macaco, com festas, conversa e bananas.
O relógio que morava no peito da D. Delfina tinha-se mesmo avariado com o susto que, não obstante, nunca se apurou se foi maior que o do chimpanzé ou não, e esteve hospitalizada alguns dias.
O circo arrumou as trouxas no dia seguinte e nessa tarde, a última, nenhum de nós se pode aproximar dos animais. Aparentemente o chimpanzé tinha fugido quando o tratador o soltara e a berraria dos miúdos o tinha assustado.
A D. Delfina regressou a casa, com um relógio novo dizíamos nós, e sem vontade de macacadas. Claro que, se até aí ela era alvo do nosso gozo, a partir desse dia e conseguindo encontrar semelhanças entre o andar da D. Delfina e o andar cambaleante dos macacos, aumentámos a preversa gozação.
Como uma espécie de castigo, o circo nunca mais ali se instalou e passámos a viver de memórias. 
Soube ontem que a D. Delfina morreu. Sem maldade, não pude deixar de sorrir, perante a lembrança de alguém que ajudou a povoar a minha infância e adolescência de tanta recordação.

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