O segredo dum bom livro é conseguir engolir-nos, transportarmo-nos lá para dentro.
Se lemos uma passagem que diz que está um dia de sol abrasador, tudo nos deve incutir calor! Ora se pelo meio aparece uma nuvem, ainda que tímida e fugaz, provoca-nos um arrepio! A leitura – e qualquer livro, qualquer, pode ser um bom livro! – tem que nos fazer acreditar que não estamos a ler e sim a VER a acção descrita, a sentir o que sentem os personagens, a pensar o mesmo, a sermos um deles, cada um e todos.
Saramago consegue isso porque escreve para ser visto, observado, participado e não para ser lido. Em Todos os Nomes a escalada do Sr. José na escola consegue pôr-nos a transpirar! A capacidade da escrita sem pontuação, mas com sentido, é a transposição da vida vivida para o papel, pois é assim que as coisas acontecem naturalmente. A vida não tem pontuação, desliza.
Quando estamos a observar um monumento, a ver uma paisagem, sei lá, a usar os olhos para qualquer coisa, o simples piscar não corresponde a vírgulas, nem a pontos, muito menos a pontos e vírgulas ou traços ou a qualquer outra forma de pontuação: é tudo seguido. É como se no preciso instante em que começamos a ver estivessem dois pontos, sinal de que se seguiria um relato. De facto é assim, nós olhamos de seguida, absorvemos sem intervalo, percorremos o olhar sem interrupções, sem obstáculos, sem intermitências, sem espaços em branco.
Ao descrever o que a vista alcança e se nos depararmos com uma parede, não devemos pontuar a descrição com um parágrafo, mas antes continuá-la dando conta da decepção de não podermos ver mais, ou da decisão tomada sobre a melhor forma da contornar, ou do relato da constituição da parede, se de madeira se em alvenaria, noticiando a existência de imperfeições, se as houver, a cor, se estiver pintada, entre tantas e tantas coisas que uma parede nos poderá levar a pensar.
Os pontos finais, principalmente aqueles fortes e determinados, chamados parágrafos, deviam usar-se quando estamos a falar ou a ver alguma coisa e, de repente, por exemplo, toca um telefone, afastando-nos completamente da acção anterior. Deviam usar-se também quando dormimos, mas só no momento em que Morfeu nos abraça completamente e não quando ainda e só nos estende os braços.
O uso de pontuação é sinal de indolência. Vejam-se as reticências por modelo; usam-se quando preguiçamos sobre algo, quando, na verdade, devíamos esclarecer o que pensamos, o que queremos dizer e, ao usá-las, apenas deixamos intuir uma espécie de pressentimento. Sejamos esclarecedores e digamos não às reticências.
Quando conversamos com alguém, no momento do outro falar, não só escutamos como delineamos um qualquer pensamento, sobre o entendimento do que escutamos, sobre a resposta a dar a seguir, sobre as motivações do nosso interlocutor em dizer o que diz, sobre como é maçadora ou maravilhosa ou difícil ou oportuna ou necessária aquela conversa.
As deixas teatrais, o discurso directo, a conversa do agora falo eu e depois falas tu, deixam um mundo de lado, num certo vazio que, na verdade, não existe, é um espaço ocupado, cheio, preenchido com mil coisas que, num filme por exemplo, conseguimos apreender pelo gesticular, pelos tiques faciais, pelo bufar de aborrecimento, pelo girar de olhos, pelos trejeitos da boca e por um sem fim de pequenas coisas que nos dizem o que vai dentro da cabeça da personagem naquele preciso momento, em que outro está a falar, mas aquele não está morto e é isso que José Saramago faz magistralmente, consegue apanhar a cena toda, como se nos desse um golpe de vista e não uma página com palavras escritas.
Por outro lado, as gralhas, erros e anacronismos são intermezzos que nos fazem saltar a vista da leitura, como se ali houvesse um buraco negro. Não falo de regionalismos, nem da invenção de palavras, nem de sotaques, nem de palavreado típico de classes etárias ou de certas zonas, nada disso. Quando tal coisa nos é apresentada percebe-se logo que é assim!, pois de outra forma até estranharíamos. Mas a existência de gralhas – às pazadas - em livros que nos vêm pela mão de editoras que deviam ter um bocadinho de cuidado, é o mesmo que servirem-nos uma bebida num copo sujo que, naturalmente, recusamos e pedimos que seja substituído.
Cada livro é uma viagem sempre com a perspectiva de ser venturosa e aventurosa, mas quando encontro gralhas dá-me a sensação de entrar num avião e no lugar que me foi destinado não haver cadeira, ou seja, faço a viagem na mesma, mas sentada no chão, desconfortável e torta e perguntando-me se não paguei o bilhete todo. Os livros são caros, a indústria que está por trás deles é complexa e devia ser exigente, mas não é. Tenho livros em papel manhoso e com edições suspeitas que são modelos de revisão e de escrita e outros com encadernações cuidadas e papel escolhido a dedo, fontes bem seleccionadas e onde o revisor consta na ficha técnica mas ao ler-se verifica-se que não trabalhou. Ora, se estamos a entrar naquele mundo, se tudo foi feito para nos engolir e, de repente, há um disparate, é como se fossemos a conduzir na auto-estrada e travássemos sem motivo, pois o nosso pensamento deixa de seguir o caminho traçado pelo autor, afastamo-nos do eixo do raciocínio e pensamos, mas que raio é isto? E quando formulamos esta pergunta já saltámos do veículo em forma de livro, já questionamos o autor, já estamos de fora.
Eu quero leituras que me façam amaldiçoar ter que fechar o livro, quero viver e sentir e pensar como se fosse uma mescla do autor com os personagens, quero ser engolida e não dar um pontapé doloroso em pedras que aparecem abruptamente.
Saramago afasta essas pedras do caminho, porque raramente tem gralhas, porque tem escrita corrida com pouca pontuação, porque nos engole.
E aqui falei de livros, não de blogues, nem de outra escrita onde as gralhas não me impressionam nem maltratam a minha vista, o meu entendimento, a minha percepção do todo. Quem não é escritor deve primar pelo cuidado, mas os escritores a sério têm essa obrigação e aqueles que o querem ser, aqueles que pensam que são, talvez se aproximassem mais do que sonham ser se tivessem essa cautela, esse desassossego, como se fizessem tranças no cabelo das suas filhas, perfeitas e com o risco direitinho, com esmero e amor.
A grandíssima parte dos livros de hoje não são filhos de quem os escreve, mas antes bonecas que se compram e guardam para mostrar, querendo imitar a realidade e por isso quando temos que fazer uma comparação vamos buscar um clássico, um livro antigo, quando os autores pariam sem recurso a anestesia ou a cesarianas.
É claro que há mil autores diferentes com mil estilos diferentes e há os Pessoas que conseguem ser muitos, com personalidades distintas, fortes e marcantes, mas isso é cepa que se extinguiu, e na extinção, no caractér único, vive a eternidade, por mais contraditório que possa parecer à primeira vista.
Apesar de tudo a minha grande pena é não ter mais tempo para ler, edições tristes ou encontros maravilhosos com autores e personagens e mundos e viagens, tantos que diariamente nascem. Se eu pudesse parar o tempo, uma das coisas que faria era aproveitá-lo para pôr a leitura em dia. Adorava poder começar pelas tabuínhas de argila.
Reticências.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
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