É inevitável que fale da viagem a Itália. Não por ter sido a Itália, onde já estive mais vezes, não por ter sido a deslocação principal das férias, mas porque fui com o meu sobrinho de sete anos. A Itália não voltará a ser a mesma.
O meu filho já tem outras aspirações e quando lhe pergunto onde quer ir nas férias, deixando o planeta aberto e, apesar de não ter condição financeira para tal, mas como sempre o ensinei e motivei a sonhar espero destinos como Zanzibar, Nova Zelândia ou Madagásgar, mas ele responde que está a pensar ir uns dias acampar em Porto Côvo!
Faça-se a sua vontade. Com 16 anos recém mas bem feitos, tem a benção materna para ir com os amigos. Porém, é hora de cumprir promessas feitas em anos anteriores: levar o meu sobrinho de férias comigo, promessa que quero cumprir desde o ano passado.
Sei que o Manel me adora mesmo a dormir e sei que ir de férias comigo é uma aventura, logo estavam reunidos os ingredientes para dias inesquecíveis. Viajei várias vezes com o meu filho ainda criança e já adolescente, o que me foi dando um treino que não se consegue de outra forma, treino de agradar, de fazer as coisas diferentes, de deixar andar ao sabor de cada momento, vivendo cada instante com intensidade. Não tenho qualquer espécie de horários, organizo as minhas próprias deslocações não dependendo seja de quem for, faço o que me apetece ou o que vejo apetecer a quem está comigo, como só quando tenho fome e se for uma refeição de gelados, será perfeita. Consigo saber onde querem ir só observando o olhar e sei contar histórias. São famosos os pedidos do meu filho quando insistia que lhe contasse histórias do intigamente. Qualquer pessoa pode ser protagonista destes relatos, mas de preferência que sejam pessoas da família, que tornem os relatos e as descrições mais próximas dele. Passou-se o mesmo com o Manel, incansável nos pedidos de mais e mais histórias, ou anedotas, quando eu alegava que não me lembrava de mais nenhuma, ele estava por tudo.
Meia dúzia de noites antes da decisão final telefonei-lhe e disse que estava a fazer um trabalho para o qual precisava de saber a opinião de crianças minhas conhecidas sobre quais os locais onde gostavam de ir e pedi que me dissesse os cinco sítios da sua eleição: Nova Iorque, Veneza, Egipto, Barcelona e Buenos Aires. Com a resposta na mão, pedi-lhe que passasse o telefone aos pais, expliquei a pergunta e pedi que o deixassem ir comigo a um destes locais. Disseram que sim e eu senti-me como se acabasse de pedir alguém em casamento e estivesse noiva. A partir daí foi um crescendo de emoção e felicidade, antecipando as reacções dele, o olhar curioso e verdadeiramente interessado, a sua falta de cansaço e antecipando principalmente a repetição duma palavra que eu sabia ir ser dita mil vezes a cada dia: Quica. É assim que ele me trata, desde sempre e eu via-me a satisfazer-lhe um grande desejo e ouvindo em simultâneo aquela palavra que, quando dita por ele, parece um feitiço.
Já em Roma perguntei-lhe a razão de tanto querer ir a Veneza e ele explicou que vê com frequência uma série animada – Little Einsteins – e que um dos episódios, passado em Veneza, o tinha fascinado tanto que, a partir daí, pensava nisso todos os dias.
Mas começando pelo princípio: convenci o Manel que íamos passar uns dias a Coimbra, os dois sozinhos, com a cumplicidade do resto da família, que sabia qual era o nosso destino. Ele acreditou tal como o meu filho acreditara em tempos que íamos ver os castelos da Alemanha, pois fazíamos escala em Frankfurt, quando na verdade íamos à Jordânia e ele se deliciou com Petra. Convencemos o Manel que íamos de comboio, motivo pelo qual os pais dele nos iam dar boleia até à estação do Oriente, alegando que era muito mais divertido ir de comboio a ver a paisagem, mentira que se manteve até à chegada ao aeroporto, onde ele declarou que estava muito confuso, mas com um enorme sorriso nos lábios.
Fizemos escala em Madrid e quando finalmente chegámos ao hotel Magic em Roma, colado com a estação Termini, ao qual ele atribuiu menos duas estrelas, dada a elegância e facilidades do conjunto de quartos a que chamavam hotel, ele teve a primeira manifestação de soberba felicidade, abraçando-me com toda a força duns braços de sete anos e disse:
- Ai Quica, estou tão feliz, tão feliz, tão feliz, que nem imaginas! Gosto tanto de ti!
Fez-me chorar, é claro, o que se repetiu por diversas vezes durante esses dias, embora as lágrimas fossem sobretudo de riso, daquele riso que me alimenta e me dá prazer sem limites.
Dizer que o garoto tem sete anos, não é nada. Ele tem a curiosidade dum Merlin, é incansável como Hércules, inventivo como Leonardo, sagaz como Alexandre e orientado como uma bússola. Via-o a percorrer o Forum em Roma, debaixo de 40 graus de calor, com um guia aberto que era lido até à exaustão, como se fosse um general que não tinha dúvidas que o seu exército – eu – o acompanhava e seguia até ao fim do mundo. Aqui ficava isto, ali ficava aquilo e aquilo o que era Quica? E a Quica nem sempre sabia e tentava dar ar de quem sabe mas ele, dono do guia, rapidamente chegava à resposta, ria-se da minha ignorância – que nunca tomou como tal, achando sempre que eu brincava, pois de que forma poderia a Quica não saber aquelas coisas? – e continuava como se aquilo fosse a direito, não houvessem pedregulhos e estivessem uns amenos 23 ou 24 graus!
No meio das características fenomenais do Manel, que me fazem preferir a sua companhia a quase todos os adultos que conheço, há uma que me faz assoprar: quando ele gosta de qualquer coisa fica colado ao tempo, ou seja, fica ali, imóvel, a ver, a admirar, a observar e o resto do mundo fica em stand by, esperando que ele, literalmente acorde. Nessas ocasiões, punha-me diante dele e estalava os dedos a um centímetro dos seus olhos para lhe chamar a atenção. Não vale a pena chamá-lo ou sequer gritar o nome dele pois ele ficou lá atrás no tempo, aprisionado por qualquer coisa que lhe chamou a atenção. Essa foi desde o primeiro instante a minha grande preocupação, não lhe tirar a vista de cima um nanosegundo pois se, de repente, o tempo o chamasse, ele não resistiria a essa chamada. É mais forte que ele, ele nem se apercebe do que acontece. Porém, é fantástico captar-lhe, finalmente, a atenção e não ouvir qualquer reclamação, nada, porque para ele está sempre tudo bem. Convenhamos que uma criança com sete anos não se comporta assim, há sempre uma birrinha, um quero aquilo, quero mais, afinal já não quero, não me apetece, sei lá, tanta coisa e tudo coisas normais, nada tem mal, porque são características de crianças com esta idade. Mas o Manel não é assim, ele não quer nada, ele pede e seja qual for a resposta, fica bem.
Ele fez questão de comprar tudo o que era bilhete, denunciando um à vontade incrível com as máquinas. Sabia que tinha saído de Lisboa com um lema: podia perder tudo, menos a minha mão.
No nosso primeiro dia de trabalho a sério fomos ao Coliseu. Quando regressamos e entrámos no metro, vá lá saber-se porquê, o Manel entrou e o meu bilhete informava que era inválido, ou seja, ele ficou dum lado e eu do outro, com milhares de pessoas das mais diversas nacionalidades a passarem dum lado para outro, dando-nos encontrões aos dois, que estávamos parados na zona das passagens. Gritei-lhe sem tirar os olhos dele que não se mexesse donde estava e experimentei as várias entradas sem qualquer resultado. Hoje penso que, como não desviava os olhos dele, nem via como metia o bilhete na ranhura, e esse era o motivo pelo qual não conseguia passar. Ele esteve sempre impávido e, quando vi que não conseguia passar, puxei-o quando uma pessoa abriu uma das cancelas na minha direcção. Imediatamente a seguir conseguimos passar. Já sentados no metro, rimo-nos os dois, sem traumas nem palavras de desagrado, afinal tinha sido uma pequena aventura.
De Roma adorou a Piazza Navona. Mais uma vez, uma escolha insuspeita. Lá fizemos uma caricatura, pela mão do Giorgio que o elogiou pela serenidade com que ele esteve sentado, quieto, aguardando o fim dos rabiscos que, terminados, nos insuflavam a cara, deixando-nos com ar cómico. Foi também na Piazza Navona que ele escreveu uma folha inteira dum caderno de viagem que levava, recomendação da mãe, para escrever e colar o que lhe apetecesse.
Quando saímos de comboio em direcção a Veneza deixámos uma mochila no hotel pois ainda dormíriamos uma noite em Roma antes de regressar a casa, de modo que íamos um pouco mais leves, que o mesmo é dizer com mais mãos para trazermos lembranças.
Eu sabia o que a chegada a Veneza provocaria nele pois há anos atrás tinha vivido aquele momento pela primeira vez com o meu filho: independentemente de estarmos rodeados de água antes de entramos na cidade, a primeira inspiradela de oxigénio ao sair do comboio é numa estação cinzenta, com linhas em ferro e paredes sujas que são substituídas pela magia de Veneza assim que damos três passos em direcção à saída da estação e somos brindados com aquela visão magnífica do Grande Canal. O facto de termos de ir de vaporetto para o hotel ajudou ainda mais. O facto de termos saído do vaporetto e andarmos uns bons dez minutos com as malas pelas ruelas estreitas ajudou ainda mais a embrenhá-lo no sonho, no seu sonho. Ali estava ele, pelos próprios pés a encolher a barriga para passar em certas ruas, galgando pontes minúsculas que nem pareciam verdadeiras. E assim chegámos ao Hotel Noemi, a 137 passos da Praça de S. Marcos, contados por nós, onde deixámos as maletas ao acaso no quarto e largámos a fugir na direcção da praça. Ele, que levava o guia bem estudado, quando entrámos na sala de visitas da Europa, como lhe chamou Napoleão, anunciou-me a tremer e com os olhos a brilhar bem abertos:
- Quica, estamos na página 104!
Claro que me desmanchei a rir e apeteceu-me apertá-lo para lhe roubar um bocadinho daquele fôlego, incansável, maravilhado com tudo, extasiado.
Veneza foi nossa durante quatro dias. Não houve ponte, calle, piazza, terra firme ou água mole onde os nossos passos não tivessem ido e os nossos olhares não capturassem e que ficaram registados em mais de quinhentas e setenta fotografias.
Nos vaporettos escolhíamos os lugares ao lado das entradas e saídas, com os gritos dos barqueiros a berrar os nomes das estações, nomes dos quais ele se ria e repetia. Só uma vez fomos sentados, lá dentro, com a cabeça dele a pender em cima de mim, morto de sono e cansaço, mas mesmo assim a não recusar mais uma viagem, a Murano, terra de vidros e vidreiros famosos no mundo inteiro e cujo nome ele se esquecia, ou fazia que se esquecia, para lhe dar outro que sabia me ia fazer rir.
No hotel em Roma o pequeno almoço era tomado numa cafetaria numa rua perto – o que ajudava às menos duas estrelas que lhe foram concedidas – e onde a refeição era fixa, café com leite e croissant com muito creme, a que em Roma chamam corneto, o que nos fazia rir, e onde assim que entrávamos a senhora nos perguntava logo se queríamos cappuccino e eu respondia que não, que era café com leite. Em Veneza o pequeno almoço incluía cereais com leite, iogurtes e fruta, para além de pão com os tradicionais manteigas, queijos, fiambres, e ainda bolos e bolinhos e bolarecos de várias espécies, ajudando-nos a retemperar forças para dias tão trabalhosos e cansativos.
O Manel não aprecia pizzas, gelados, nem é doido por massas, logo as refeições não foram óbvias, mas foram fáceis, com sandes e copos de fruta – vivam os vendedores de copos de fruta! – ao almoço e pela tarde e uma coisa mais compostinha lá para a noite.
Na primeira noite, depois da chegada emocionada, depois da verificação que o Hotel tinha direito a estrelas e era quase dentro da Praça de S. Marcos, depois de muita corrida por cima de água em pontes que se perguntavam quem era aquele par de alucinados, decidi colocar um cacho de cerejas em cima daquele bolo e fomos jantar ao Hard Rock Cafe. Ele achava que era um sítio só para adultos e ficou extasiado com várias coisas.
Primeiro, com tanto que ele adora maquinetas e gadgets, deram-nos um equipamento que toca e vibra quando chega a nossa vez, o que permite que não precisemos de estar ali a fazer fila.
Segundo, esperámos frente a um estacionamento de gôndolas, com gondoleiros de camisas às riscas a cantar.
Terceiro, quando entrámos deram-lhe logo um caderno e lápis para pintar.
Quarto, ficámos ao lado dum casal com ar de motoqueiro, daqueles bem duros, ele cheio de tatuagens que ostentava nos braços e no peito, à mostra através do colete aberto e que se meteram com ele, perguntando-lhe se ele queria da bebida deles e mostrando uma simpatia inusitada e que nos tiraram uma fotografia, bem gira por sinal.
Saímos já de noite, uma noite cantada à beira água, com gente a falar mil línguas diferentes, uma Babilónia ali aos nossos pés e ainda fomos ouvir as orquestras em S. Marcos, que me puseram, como sempre, os olhos a brilhar com mil pequenas lágrimas de emoção.
Quando chegámos finalmente ao quarto onde ainda nem tinhamos aberto as malas, ele manifestou mais uma vez a felicidade que o inundava e que era tão grande que se conseguia ver no ar, medir e pesar. O que dizer quando alguma coisa nos dá um prazer imenso e ainda por cima nos pagam daquela forma? Não há palavras.
Nessa noite, ele disse-me que tinha um sonho a menos e falámos de como é maravilhoso podermos dizer isso. Eu tinha-lhe dito que quando os sonhos se realizam, deixam de ser sonhos, por isso temos que ter sempre muitos, temos que nos convencer e fazer tudo para os irmos realizando, mas nunca podemos ficar sem eles, por isso há que ter sempre uma reserva. Ele respondeu que tinha muitos e adormecemos assim, sem pressas de arranjar mais sonhos, afinal estávamos a meio dum deles e há que saber aproveitar esse momento mágico, gravá-lo para o podermos lembrar sempre.
A quase totalidade destes dias incríveis são dignos de memória escrita, com tanto que se descobriu e se viu – finalmente fui à igreja de S. Barnaba! – com perguntas, exclamações, afirmações, passeios, companhia verdadeira; com o ar dele quando entrou na gôndola e falou comigo como se fosse filha dele ou qualquer garota pequena à sua responsabilidade, do ar de rei que ele atarrachou, transformando-me a mim em rainha, pelo simples facto de estar ali ao seu lado.
A orientação dele com um mapa na mão tornar-se-á lendária, tenho a certeza absoluta. É-lhe inato saber que é para ali e não para acolá!
Já tive oportunidade de falar sobre um dos livros que li em Itália, A Viagem do Elefante, mas reforço que a maior parte da leitura foi feita com ele aninhado e anichado em mim, como se fossemos um só, o que conferiu à leitura uma excepcionalidade que não teria doutra forma, independentemente da leitura em si me ter agradado sobremaneira.
Em Veneza comprei um tricórnio para mim. Soube que aquele chapéu era meu quando o coloquei e o Manel me olhou com um ar de profunda sinceridade e disse:
- Quica, ficas linda! Pareces um pirata, tudo o que é de pirata te fica bem!
Lembro-me que naquele instante pensei o que teria eu de pirata que ele achasse que me ficava bem, mas no décimo de segundo seguinte já estava a lamber-me de satisfação pelo elogio, tão sincero e que adorei do fundo do coração. Lembrou-me o meu filho que me deu o maior elogio que recebi em todos os anos de vida quando me disse que eu parecia o Peter Pan.
E é nestas palavras que eu vivo, é nelas que me alimento e na sua expontaneidade que eu encontro verdade, aquela verdade rija, em cima da qual sabemos que podemos saltar porque não se move nem um milímetro, que nos segura e nos faz sorrir ao acordar. Eu Peter Pan ou pirata, é isso que sou para eles e é nesse mundo que construimos a nossa dimensão, porque é uma dimensão em que o Peter Pan é real e os piratas existem. E nesses momentos não há problemas, não há dias de trabalho chatos e aborrecidos, não há chuva cinzenta, não há casulos a que chamamos apartamentos ou casas, não há nada de mau.
Podia contar aqui mil coisas que o Manel disse, mas vou deixá-las para outras oportunidades para prolongar esta memória escrita.
A viagem só pecou pela falta de companhia do grandalhão que andava por outras paragens e por quem eu suspirava de saudades e, pelo telefone, sabia que ele sentia a mesma coisa, o que me criava uma certa angústia, mas disso falarei noutra ocasião.
Já se projectam novas viagens, pelo menos na minha cabeça e nos meus sonhos.
Viajar com o Manel também é bom pois os seus sete anos dão-lhe imunidade de pagamento nas mais variadas coisas, e os hotéis recebem um adulto e escusam de pagamento a criança. Tirando as garrafas de água a cinco euros – que nós enchíamos em locais públicos sempre que podíamos - e algumas outras atrocidades semelhantes, os sete anos do meu sobrinho foram-me benéficos.
Porém, é preciso ter espírito para ver para além do olhar e sentir que a falta de dinheiro não é óbice a que se consigam viver aventuras. Quando saímos de Portugal, não só nesta ocasião, mas noutras, já sabemos que não nos poderemos sentar nas esplanadas da Praça de S. Marcos, não podemos jantar no Jules Verne no segundo piso da torre Eiffel ou almoçar no Figueira em S. Paulo (a menos que nos ofereçam...) e com esse conhecimento vamos na mesma, e ficamos de pé por trás das esplanadas em S. Marcos, subimos a torre Eiffel sem intenções de comer e ficamo-nos por um café no Figueira.
A mim falta-me dinheiro para ir mais vezes, não para fazer as coisas de forma diferente. Costumo dizer que um bom hotel não deixa histórias para contar, mas um manhoso vai viver sempre na minha memória. Por isso não trocava o hotel de menos duas estrelas, com um elevador tão estreito que não nos podíamos mexer, de tal forma que tínhamos de entrar de costas e só conseguíamos mover a cabeça de tão entalados ficávamos, por qualquer outro. Primeiro entrava o Manel e esticava o braço na direcção dos botões e depois entrava eu enquanto ambos encolhíamos a barriga quase sustendo a respiração até ao terceiro andar.
Em Roma não nos demos conta mas não nos deram bilhete de Madrid para Lisboa e tivemos que os ir pedir à última da hora em Madrid, a menos de vinte minutos do embarque. Outra situação que ficou para recordar, mas que faz parte da vida dos viajantes, não da vida dos turistas, que ensinei o meu sobrinho, como venho fazendo com o meu filho, a não seguir nunca. Se tivessemos que ficar em Madrid nessa noite, pois ficaríamos, íamos em busca duma cama e duma refeição e a vida é assim mesmo, com obstáculos que é preciso contornar sem dramas. Assim que me apercebi que não tinha bilhete expliquei o sucedido ao Manel, nunca lhe escondi nada, nem quando em Veneza suspeitei que ia ficar sem cartão devido a uma deficiência que poderia ter levado a ser engolido pela máquina. Sentámo-nos, contámos o dinheiro que tínhamos e disse-lhe o que pensava fazer caso ficasse sem cartão: ir a uma loja e pedir que, mediante depósito com outro cartão, só para pagamentos, me dessem dinheiro ou, ligar para Portugal e pedir que me fizessem um depósito de urgência num dos bancos que ali havia. Comer, íamos comer sempre, nem que fosse preciso andar a correr para o hotel Noemi a todas as horas do dia, pois o pagamento era feito posteriormente. Felizmente nenhum dos meus receios se concretizou e tudo correu bem.
O regresso a Portugal, fruto da confusão com os bilhetes fez-se em primeira classe e nesse momento o Manel percebeu que há males que vêm por bem e que a frase Always Look on the Bright Side of Life não é só o título duma canção. Rimos que nos fartámos nessa hora e pouco, rimos da confusão, dos lugares que nos foram atribuídos e da gentileza com que fomos brindados, mas também de excitação do regresso, que consubstancia o melhor das viagens, o regresso, principalmente se temos pessoas à nossa espera, como era o caso dele.
E se a nossa incursão pelo mundo das férias maravilhosas no estrangeiro, sem preocupações, com dias de verdadeira felicidade aos quilos, terminou com o abraço de saudade à família, para mim houve ainda mais um momento solene que guardarei para sempre, como marca indissolúvel desta aventura com o Manel.
Dias mais tarde fui a Coruche; cheguei já tarde e ele estava com o pai na esplanada. Enquanto eu caminhava para lá, olhando para os todos os lados a tentar vislumbrá-lo, ele viu-me à distância, desatou a correr e lançou-se literalmente para cima de mim do cimo das escadas, numa atitude de total entrega e segurança, apanhando-me desprevenida sem o perceber, porque na cabeça dele eu estou sempre prevenida para a sua presença e isso dá-me uma felicidade ímpar. Ele sabe que é bem vindo em qualquer momento da minha vida, que pode entrar sem sequer bater à porta. É esta consciência, este entendimento que fazem de mim a Quica e não uma vulgar tia.
O meu filho já tem outras aspirações e quando lhe pergunto onde quer ir nas férias, deixando o planeta aberto e, apesar de não ter condição financeira para tal, mas como sempre o ensinei e motivei a sonhar espero destinos como Zanzibar, Nova Zelândia ou Madagásgar, mas ele responde que está a pensar ir uns dias acampar em Porto Côvo!
Faça-se a sua vontade. Com 16 anos recém mas bem feitos, tem a benção materna para ir com os amigos. Porém, é hora de cumprir promessas feitas em anos anteriores: levar o meu sobrinho de férias comigo, promessa que quero cumprir desde o ano passado.
Sei que o Manel me adora mesmo a dormir e sei que ir de férias comigo é uma aventura, logo estavam reunidos os ingredientes para dias inesquecíveis. Viajei várias vezes com o meu filho ainda criança e já adolescente, o que me foi dando um treino que não se consegue de outra forma, treino de agradar, de fazer as coisas diferentes, de deixar andar ao sabor de cada momento, vivendo cada instante com intensidade. Não tenho qualquer espécie de horários, organizo as minhas próprias deslocações não dependendo seja de quem for, faço o que me apetece ou o que vejo apetecer a quem está comigo, como só quando tenho fome e se for uma refeição de gelados, será perfeita. Consigo saber onde querem ir só observando o olhar e sei contar histórias. São famosos os pedidos do meu filho quando insistia que lhe contasse histórias do intigamente. Qualquer pessoa pode ser protagonista destes relatos, mas de preferência que sejam pessoas da família, que tornem os relatos e as descrições mais próximas dele. Passou-se o mesmo com o Manel, incansável nos pedidos de mais e mais histórias, ou anedotas, quando eu alegava que não me lembrava de mais nenhuma, ele estava por tudo.
Meia dúzia de noites antes da decisão final telefonei-lhe e disse que estava a fazer um trabalho para o qual precisava de saber a opinião de crianças minhas conhecidas sobre quais os locais onde gostavam de ir e pedi que me dissesse os cinco sítios da sua eleição: Nova Iorque, Veneza, Egipto, Barcelona e Buenos Aires. Com a resposta na mão, pedi-lhe que passasse o telefone aos pais, expliquei a pergunta e pedi que o deixassem ir comigo a um destes locais. Disseram que sim e eu senti-me como se acabasse de pedir alguém em casamento e estivesse noiva. A partir daí foi um crescendo de emoção e felicidade, antecipando as reacções dele, o olhar curioso e verdadeiramente interessado, a sua falta de cansaço e antecipando principalmente a repetição duma palavra que eu sabia ir ser dita mil vezes a cada dia: Quica. É assim que ele me trata, desde sempre e eu via-me a satisfazer-lhe um grande desejo e ouvindo em simultâneo aquela palavra que, quando dita por ele, parece um feitiço.
Já em Roma perguntei-lhe a razão de tanto querer ir a Veneza e ele explicou que vê com frequência uma série animada – Little Einsteins – e que um dos episódios, passado em Veneza, o tinha fascinado tanto que, a partir daí, pensava nisso todos os dias.
Mas começando pelo princípio: convenci o Manel que íamos passar uns dias a Coimbra, os dois sozinhos, com a cumplicidade do resto da família, que sabia qual era o nosso destino. Ele acreditou tal como o meu filho acreditara em tempos que íamos ver os castelos da Alemanha, pois fazíamos escala em Frankfurt, quando na verdade íamos à Jordânia e ele se deliciou com Petra. Convencemos o Manel que íamos de comboio, motivo pelo qual os pais dele nos iam dar boleia até à estação do Oriente, alegando que era muito mais divertido ir de comboio a ver a paisagem, mentira que se manteve até à chegada ao aeroporto, onde ele declarou que estava muito confuso, mas com um enorme sorriso nos lábios.
Fizemos escala em Madrid e quando finalmente chegámos ao hotel Magic em Roma, colado com a estação Termini, ao qual ele atribuiu menos duas estrelas, dada a elegância e facilidades do conjunto de quartos a que chamavam hotel, ele teve a primeira manifestação de soberba felicidade, abraçando-me com toda a força duns braços de sete anos e disse:
- Ai Quica, estou tão feliz, tão feliz, tão feliz, que nem imaginas! Gosto tanto de ti!
Fez-me chorar, é claro, o que se repetiu por diversas vezes durante esses dias, embora as lágrimas fossem sobretudo de riso, daquele riso que me alimenta e me dá prazer sem limites.
Dizer que o garoto tem sete anos, não é nada. Ele tem a curiosidade dum Merlin, é incansável como Hércules, inventivo como Leonardo, sagaz como Alexandre e orientado como uma bússola. Via-o a percorrer o Forum em Roma, debaixo de 40 graus de calor, com um guia aberto que era lido até à exaustão, como se fosse um general que não tinha dúvidas que o seu exército – eu – o acompanhava e seguia até ao fim do mundo. Aqui ficava isto, ali ficava aquilo e aquilo o que era Quica? E a Quica nem sempre sabia e tentava dar ar de quem sabe mas ele, dono do guia, rapidamente chegava à resposta, ria-se da minha ignorância – que nunca tomou como tal, achando sempre que eu brincava, pois de que forma poderia a Quica não saber aquelas coisas? – e continuava como se aquilo fosse a direito, não houvessem pedregulhos e estivessem uns amenos 23 ou 24 graus!
No meio das características fenomenais do Manel, que me fazem preferir a sua companhia a quase todos os adultos que conheço, há uma que me faz assoprar: quando ele gosta de qualquer coisa fica colado ao tempo, ou seja, fica ali, imóvel, a ver, a admirar, a observar e o resto do mundo fica em stand by, esperando que ele, literalmente acorde. Nessas ocasiões, punha-me diante dele e estalava os dedos a um centímetro dos seus olhos para lhe chamar a atenção. Não vale a pena chamá-lo ou sequer gritar o nome dele pois ele ficou lá atrás no tempo, aprisionado por qualquer coisa que lhe chamou a atenção. Essa foi desde o primeiro instante a minha grande preocupação, não lhe tirar a vista de cima um nanosegundo pois se, de repente, o tempo o chamasse, ele não resistiria a essa chamada. É mais forte que ele, ele nem se apercebe do que acontece. Porém, é fantástico captar-lhe, finalmente, a atenção e não ouvir qualquer reclamação, nada, porque para ele está sempre tudo bem. Convenhamos que uma criança com sete anos não se comporta assim, há sempre uma birrinha, um quero aquilo, quero mais, afinal já não quero, não me apetece, sei lá, tanta coisa e tudo coisas normais, nada tem mal, porque são características de crianças com esta idade. Mas o Manel não é assim, ele não quer nada, ele pede e seja qual for a resposta, fica bem.
Ele fez questão de comprar tudo o que era bilhete, denunciando um à vontade incrível com as máquinas. Sabia que tinha saído de Lisboa com um lema: podia perder tudo, menos a minha mão.
No nosso primeiro dia de trabalho a sério fomos ao Coliseu. Quando regressamos e entrámos no metro, vá lá saber-se porquê, o Manel entrou e o meu bilhete informava que era inválido, ou seja, ele ficou dum lado e eu do outro, com milhares de pessoas das mais diversas nacionalidades a passarem dum lado para outro, dando-nos encontrões aos dois, que estávamos parados na zona das passagens. Gritei-lhe sem tirar os olhos dele que não se mexesse donde estava e experimentei as várias entradas sem qualquer resultado. Hoje penso que, como não desviava os olhos dele, nem via como metia o bilhete na ranhura, e esse era o motivo pelo qual não conseguia passar. Ele esteve sempre impávido e, quando vi que não conseguia passar, puxei-o quando uma pessoa abriu uma das cancelas na minha direcção. Imediatamente a seguir conseguimos passar. Já sentados no metro, rimo-nos os dois, sem traumas nem palavras de desagrado, afinal tinha sido uma pequena aventura.
De Roma adorou a Piazza Navona. Mais uma vez, uma escolha insuspeita. Lá fizemos uma caricatura, pela mão do Giorgio que o elogiou pela serenidade com que ele esteve sentado, quieto, aguardando o fim dos rabiscos que, terminados, nos insuflavam a cara, deixando-nos com ar cómico. Foi também na Piazza Navona que ele escreveu uma folha inteira dum caderno de viagem que levava, recomendação da mãe, para escrever e colar o que lhe apetecesse.
Quando saímos de comboio em direcção a Veneza deixámos uma mochila no hotel pois ainda dormíriamos uma noite em Roma antes de regressar a casa, de modo que íamos um pouco mais leves, que o mesmo é dizer com mais mãos para trazermos lembranças.
Eu sabia o que a chegada a Veneza provocaria nele pois há anos atrás tinha vivido aquele momento pela primeira vez com o meu filho: independentemente de estarmos rodeados de água antes de entramos na cidade, a primeira inspiradela de oxigénio ao sair do comboio é numa estação cinzenta, com linhas em ferro e paredes sujas que são substituídas pela magia de Veneza assim que damos três passos em direcção à saída da estação e somos brindados com aquela visão magnífica do Grande Canal. O facto de termos de ir de vaporetto para o hotel ajudou ainda mais. O facto de termos saído do vaporetto e andarmos uns bons dez minutos com as malas pelas ruelas estreitas ajudou ainda mais a embrenhá-lo no sonho, no seu sonho. Ali estava ele, pelos próprios pés a encolher a barriga para passar em certas ruas, galgando pontes minúsculas que nem pareciam verdadeiras. E assim chegámos ao Hotel Noemi, a 137 passos da Praça de S. Marcos, contados por nós, onde deixámos as maletas ao acaso no quarto e largámos a fugir na direcção da praça. Ele, que levava o guia bem estudado, quando entrámos na sala de visitas da Europa, como lhe chamou Napoleão, anunciou-me a tremer e com os olhos a brilhar bem abertos:
- Quica, estamos na página 104!
Claro que me desmanchei a rir e apeteceu-me apertá-lo para lhe roubar um bocadinho daquele fôlego, incansável, maravilhado com tudo, extasiado.
Veneza foi nossa durante quatro dias. Não houve ponte, calle, piazza, terra firme ou água mole onde os nossos passos não tivessem ido e os nossos olhares não capturassem e que ficaram registados em mais de quinhentas e setenta fotografias.
Nos vaporettos escolhíamos os lugares ao lado das entradas e saídas, com os gritos dos barqueiros a berrar os nomes das estações, nomes dos quais ele se ria e repetia. Só uma vez fomos sentados, lá dentro, com a cabeça dele a pender em cima de mim, morto de sono e cansaço, mas mesmo assim a não recusar mais uma viagem, a Murano, terra de vidros e vidreiros famosos no mundo inteiro e cujo nome ele se esquecia, ou fazia que se esquecia, para lhe dar outro que sabia me ia fazer rir.
No hotel em Roma o pequeno almoço era tomado numa cafetaria numa rua perto – o que ajudava às menos duas estrelas que lhe foram concedidas – e onde a refeição era fixa, café com leite e croissant com muito creme, a que em Roma chamam corneto, o que nos fazia rir, e onde assim que entrávamos a senhora nos perguntava logo se queríamos cappuccino e eu respondia que não, que era café com leite. Em Veneza o pequeno almoço incluía cereais com leite, iogurtes e fruta, para além de pão com os tradicionais manteigas, queijos, fiambres, e ainda bolos e bolinhos e bolarecos de várias espécies, ajudando-nos a retemperar forças para dias tão trabalhosos e cansativos.
O Manel não aprecia pizzas, gelados, nem é doido por massas, logo as refeições não foram óbvias, mas foram fáceis, com sandes e copos de fruta – vivam os vendedores de copos de fruta! – ao almoço e pela tarde e uma coisa mais compostinha lá para a noite.
Na primeira noite, depois da chegada emocionada, depois da verificação que o Hotel tinha direito a estrelas e era quase dentro da Praça de S. Marcos, depois de muita corrida por cima de água em pontes que se perguntavam quem era aquele par de alucinados, decidi colocar um cacho de cerejas em cima daquele bolo e fomos jantar ao Hard Rock Cafe. Ele achava que era um sítio só para adultos e ficou extasiado com várias coisas.
Primeiro, com tanto que ele adora maquinetas e gadgets, deram-nos um equipamento que toca e vibra quando chega a nossa vez, o que permite que não precisemos de estar ali a fazer fila.
Segundo, esperámos frente a um estacionamento de gôndolas, com gondoleiros de camisas às riscas a cantar.
Terceiro, quando entrámos deram-lhe logo um caderno e lápis para pintar.
Quarto, ficámos ao lado dum casal com ar de motoqueiro, daqueles bem duros, ele cheio de tatuagens que ostentava nos braços e no peito, à mostra através do colete aberto e que se meteram com ele, perguntando-lhe se ele queria da bebida deles e mostrando uma simpatia inusitada e que nos tiraram uma fotografia, bem gira por sinal.
Saímos já de noite, uma noite cantada à beira água, com gente a falar mil línguas diferentes, uma Babilónia ali aos nossos pés e ainda fomos ouvir as orquestras em S. Marcos, que me puseram, como sempre, os olhos a brilhar com mil pequenas lágrimas de emoção.
Quando chegámos finalmente ao quarto onde ainda nem tinhamos aberto as malas, ele manifestou mais uma vez a felicidade que o inundava e que era tão grande que se conseguia ver no ar, medir e pesar. O que dizer quando alguma coisa nos dá um prazer imenso e ainda por cima nos pagam daquela forma? Não há palavras.
Nessa noite, ele disse-me que tinha um sonho a menos e falámos de como é maravilhoso podermos dizer isso. Eu tinha-lhe dito que quando os sonhos se realizam, deixam de ser sonhos, por isso temos que ter sempre muitos, temos que nos convencer e fazer tudo para os irmos realizando, mas nunca podemos ficar sem eles, por isso há que ter sempre uma reserva. Ele respondeu que tinha muitos e adormecemos assim, sem pressas de arranjar mais sonhos, afinal estávamos a meio dum deles e há que saber aproveitar esse momento mágico, gravá-lo para o podermos lembrar sempre.
A quase totalidade destes dias incríveis são dignos de memória escrita, com tanto que se descobriu e se viu – finalmente fui à igreja de S. Barnaba! – com perguntas, exclamações, afirmações, passeios, companhia verdadeira; com o ar dele quando entrou na gôndola e falou comigo como se fosse filha dele ou qualquer garota pequena à sua responsabilidade, do ar de rei que ele atarrachou, transformando-me a mim em rainha, pelo simples facto de estar ali ao seu lado.
A orientação dele com um mapa na mão tornar-se-á lendária, tenho a certeza absoluta. É-lhe inato saber que é para ali e não para acolá!
Já tive oportunidade de falar sobre um dos livros que li em Itália, A Viagem do Elefante, mas reforço que a maior parte da leitura foi feita com ele aninhado e anichado em mim, como se fossemos um só, o que conferiu à leitura uma excepcionalidade que não teria doutra forma, independentemente da leitura em si me ter agradado sobremaneira.
Em Veneza comprei um tricórnio para mim. Soube que aquele chapéu era meu quando o coloquei e o Manel me olhou com um ar de profunda sinceridade e disse:
- Quica, ficas linda! Pareces um pirata, tudo o que é de pirata te fica bem!
Lembro-me que naquele instante pensei o que teria eu de pirata que ele achasse que me ficava bem, mas no décimo de segundo seguinte já estava a lamber-me de satisfação pelo elogio, tão sincero e que adorei do fundo do coração. Lembrou-me o meu filho que me deu o maior elogio que recebi em todos os anos de vida quando me disse que eu parecia o Peter Pan.
E é nestas palavras que eu vivo, é nelas que me alimento e na sua expontaneidade que eu encontro verdade, aquela verdade rija, em cima da qual sabemos que podemos saltar porque não se move nem um milímetro, que nos segura e nos faz sorrir ao acordar. Eu Peter Pan ou pirata, é isso que sou para eles e é nesse mundo que construimos a nossa dimensão, porque é uma dimensão em que o Peter Pan é real e os piratas existem. E nesses momentos não há problemas, não há dias de trabalho chatos e aborrecidos, não há chuva cinzenta, não há casulos a que chamamos apartamentos ou casas, não há nada de mau.
Podia contar aqui mil coisas que o Manel disse, mas vou deixá-las para outras oportunidades para prolongar esta memória escrita.
A viagem só pecou pela falta de companhia do grandalhão que andava por outras paragens e por quem eu suspirava de saudades e, pelo telefone, sabia que ele sentia a mesma coisa, o que me criava uma certa angústia, mas disso falarei noutra ocasião.
Já se projectam novas viagens, pelo menos na minha cabeça e nos meus sonhos.
Viajar com o Manel também é bom pois os seus sete anos dão-lhe imunidade de pagamento nas mais variadas coisas, e os hotéis recebem um adulto e escusam de pagamento a criança. Tirando as garrafas de água a cinco euros – que nós enchíamos em locais públicos sempre que podíamos - e algumas outras atrocidades semelhantes, os sete anos do meu sobrinho foram-me benéficos.
Porém, é preciso ter espírito para ver para além do olhar e sentir que a falta de dinheiro não é óbice a que se consigam viver aventuras. Quando saímos de Portugal, não só nesta ocasião, mas noutras, já sabemos que não nos poderemos sentar nas esplanadas da Praça de S. Marcos, não podemos jantar no Jules Verne no segundo piso da torre Eiffel ou almoçar no Figueira em S. Paulo (a menos que nos ofereçam...) e com esse conhecimento vamos na mesma, e ficamos de pé por trás das esplanadas em S. Marcos, subimos a torre Eiffel sem intenções de comer e ficamo-nos por um café no Figueira.
A mim falta-me dinheiro para ir mais vezes, não para fazer as coisas de forma diferente. Costumo dizer que um bom hotel não deixa histórias para contar, mas um manhoso vai viver sempre na minha memória. Por isso não trocava o hotel de menos duas estrelas, com um elevador tão estreito que não nos podíamos mexer, de tal forma que tínhamos de entrar de costas e só conseguíamos mover a cabeça de tão entalados ficávamos, por qualquer outro. Primeiro entrava o Manel e esticava o braço na direcção dos botões e depois entrava eu enquanto ambos encolhíamos a barriga quase sustendo a respiração até ao terceiro andar.
Em Roma não nos demos conta mas não nos deram bilhete de Madrid para Lisboa e tivemos que os ir pedir à última da hora em Madrid, a menos de vinte minutos do embarque. Outra situação que ficou para recordar, mas que faz parte da vida dos viajantes, não da vida dos turistas, que ensinei o meu sobrinho, como venho fazendo com o meu filho, a não seguir nunca. Se tivessemos que ficar em Madrid nessa noite, pois ficaríamos, íamos em busca duma cama e duma refeição e a vida é assim mesmo, com obstáculos que é preciso contornar sem dramas. Assim que me apercebi que não tinha bilhete expliquei o sucedido ao Manel, nunca lhe escondi nada, nem quando em Veneza suspeitei que ia ficar sem cartão devido a uma deficiência que poderia ter levado a ser engolido pela máquina. Sentámo-nos, contámos o dinheiro que tínhamos e disse-lhe o que pensava fazer caso ficasse sem cartão: ir a uma loja e pedir que, mediante depósito com outro cartão, só para pagamentos, me dessem dinheiro ou, ligar para Portugal e pedir que me fizessem um depósito de urgência num dos bancos que ali havia. Comer, íamos comer sempre, nem que fosse preciso andar a correr para o hotel Noemi a todas as horas do dia, pois o pagamento era feito posteriormente. Felizmente nenhum dos meus receios se concretizou e tudo correu bem.
O regresso a Portugal, fruto da confusão com os bilhetes fez-se em primeira classe e nesse momento o Manel percebeu que há males que vêm por bem e que a frase Always Look on the Bright Side of Life não é só o título duma canção. Rimos que nos fartámos nessa hora e pouco, rimos da confusão, dos lugares que nos foram atribuídos e da gentileza com que fomos brindados, mas também de excitação do regresso, que consubstancia o melhor das viagens, o regresso, principalmente se temos pessoas à nossa espera, como era o caso dele.
E se a nossa incursão pelo mundo das férias maravilhosas no estrangeiro, sem preocupações, com dias de verdadeira felicidade aos quilos, terminou com o abraço de saudade à família, para mim houve ainda mais um momento solene que guardarei para sempre, como marca indissolúvel desta aventura com o Manel.
Dias mais tarde fui a Coruche; cheguei já tarde e ele estava com o pai na esplanada. Enquanto eu caminhava para lá, olhando para os todos os lados a tentar vislumbrá-lo, ele viu-me à distância, desatou a correr e lançou-se literalmente para cima de mim do cimo das escadas, numa atitude de total entrega e segurança, apanhando-me desprevenida sem o perceber, porque na cabeça dele eu estou sempre prevenida para a sua presença e isso dá-me uma felicidade ímpar. Ele sabe que é bem vindo em qualquer momento da minha vida, que pode entrar sem sequer bater à porta. É esta consciência, este entendimento que fazem de mim a Quica e não uma vulgar tia.
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