Da leitura de férias destaco dois livros. Podia dizer que tinha tomado duas refeições, por exemplo, um pequeno almoço e um jantar, de tão diferentes que são, desde a hora a que são consumidas até à sua natureza ingrediental, podia dizer que tinha visitado duas cidades, tão diferentes como Bruges e Marraquexe, assim foram os dois livros.
Um, A Viagem do Elefante, outro, O Guardião de Livros, romanceamento romanceado da ida da Real Biblioteca de Lisboa para o Rio de Janeiro, no início dos idos de 1800.
Que dizer de A Viagem do Elefante? Foi lido maioritariamente nos percursos Roma-Veneza-Roma, com o meu sobrinho deitado em cima de mim, a ler passagens sobre o elefante e a fazer perguntas. Nunca perguntou se faltava muito para chegarmos ou onde estavamos, mas perguntava frequentemente onde é que já ia o elefante. Pelo poder simbólico, nesta viagem, ele foi o elefante. E se o livro não fosse, como sempre, irrepreensível, bastaria esta lembrança para o tornar memorável, único.
Já O Guardião de Livros, cujo título me atraíu, cujo resumo me pôs água na boca, revelou-se, em parte, uma secura.
Editado já em 2010 não se percebe se segue o acordo ortográfico ou não, mas que tem erros de revisão, isso tem e muitos, o bastante para me desgostar. Ainda quis atribuir as gralhas ao facto de alguns personagens serem cariocas e falarem em vosmecei, ocasionalmente, mencionando sua mercê, mas lá para o fim, já não podia convencer-me disso.
Tem como pontos a favor o facto de contar com um narrador externo à acção mas também, e em simultâneo, ser narrado pelos próprios personagens, numa mistura que se entende perfeitamente e nos aproxima dos intervenientes, levando-nos a uma dimensão como a que devia ser a do Rio dos anos 10 e 20 de 1800, uma amálgama de gentes, uma confusão enlameada, num ritmo escravo, de cânticos e lamés em vestidos compridos onde os banhos, ou melhor, a falta deles por parte dos portugueses, se escondia deixando os cheiros sairem pelas rendas, pelos punhos, por todo o lado por onde conseguisse, que era muito com certeza e mau, ao contrário dos cariocas que mantinham a prática e lá conseguiam de vez em quando convencer os portugueses a tomá-los.
Voltando à forma do livro: Madre Superiora umas vezes é com maiúscula, outras não. A narração na primeira pessoa, quer seja dum português quer seja dum carioca é sempre em português, com gralhas. Dois pequenos exemplos:
‘Uns por ser americanos’ (pág. 294)
‘...se tinha desperdiçado dos anos e meio antes’ (pág. 295).
Porque me incomodam estes pormenores, tão pequenos, como alguns me querem fazer crer? E eu pergunto: porque nos incomoda um grão de areia num sapato? Porque nos incomoda um minúsculo espigão numa unha? Porque nos incomoda um quase invisível mosquito na sopa, 100% das vezes menor que o triturado espinafre e, quantas vezes, motivo para não se comer mais? Pois eu como sopa com mosquitos, mas quero saber em definitivo se a senhora é Madre ou madre e gostava que se decidissem antes de mo darem a ler.
O desconhecimento da língua é algo sobre o qual se devia pedir desculpa quando a usamos. Da mesma forma que se informa que determinado relato é fruto da imaginação do autor, que se alguém tiver notícia de um relato igual é pura coincidência, também se devia avisar, com nota mais ou menos nos seguintes termos: ‘Não querendo cercear a minha imensa vontade de escrever em português, quis satisfazer esse meu ensejo, mas informo que não domino a língua. A editora gostou do texto, colou-lhe a chancela, esteve-se nas tintas para as correcções e revisões, mas eu, pessoa séria, não quero induzir o incauto leitor em erro e aviso já que, principalmente lá para o fim do livro, quando já estávamos todos fartos e cansados, a pressa impunha o despacho da busca de erros e gralhas e o produto final acabou por sair sem estar finalizado. Queiram aceitar as minhas desculpas, e digo minhas e não nossas, incluindo a editora neste plural, porque eles não querem saber disto para nada.’
Continuando. O protagonista chama-se Luís e com frequência a mais da conta aparece-nos com uma intimidade exagerada, senão veja-se:
‘Ana tinha feito o pedido numa carta do Luís...’
‘Havia outra que afligia mais o Luís’
‘Assuntos que interessavam ao Francisco Marrocos’
É óbvio que o uso da contracção do – amplamente utilizada - devia ser substuída pela preposição de, devendo os exemplos seguintes ser também corrigidos.
Por outro lado, afirma-se que D. Pedro deu o Grito de Ipiranga, quando, aqui sim, devia ser do Ipiranga, mostrando mais uma vez fragilidade de ligação entre palavras, para além de confusão entre plurais e singulares e outras gralhices.
Na parte dos agradecimentos não consta o devido ao revisor, porque não houve, poderá pensar-se. Porém, a ficha técnica enuncia o Sr. João Vidigal como revisor. Eu não o contrataria.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
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