sexta-feira, 1 de junho de 2012

Dois livros

Acabei de ler 'O Comprador de Aniversários'. Há muito tempo que não lia nada tão pesado. Foi como se a História se empurrasse a si própria e entrasse toda para dentro daquelas páginas. Imagino um Adolfo García Ortega a respirar com dificuldade, a inspirar com força quando terminou a tarefa, como se o durante lhe tivesse levado o oxigénio ou sustivesse a respiração para evitar inalar zyklon b.
Há uns dias no metro, metida nas páginas do livro, um senhor tocou-me no braço e perguntou-me se estava bem. Disse que sim, com ar desconfiado e perguntei porquê. Está a chorar, respondeu-me o homem.
Agradeci a ajuda, disse que estava bem e fechei o livro. Dois dias antes uma passageira voltou atrás para me chamar a atenção que estávamos na última paragem e que eu devia sair.
Nunca o li ao adormecer com medo dos sonhos. Dos meus e dos sonhos daquelas pessoas, sonhos mortos antes de nascerem, asfixiados por entre a maldade do mundo concentrada em risos e acções sem nome.
Cerca de uma semana antes tinha terminado 'Duas mulheres em Praga'. A passagem do real para a ficção é imperceptível, coisa que aprecio. Juan José Millás  põe-nos a vendar o nosso lado direito, desafiando-nos a fazer coisas que, a mim, me deram vontade de rir de mim própria. Só por isso valeu bem a pena!
'O Comprador de Aniversários' está mediocremente revisto, coisa que noutra leitura me faria deixá-lo de lado. Não foi o caso. Aquelas gralhas eram benéficas porque me permitiam distanciar e sair da narrativa, que nos sufoca. Ao fim de tantos anos, foi a primeira vez que me aconteceu.
Se junto estes dois livros na mesma mensagem é porque têm algo em comum, do ponto de vista do objecto livro: ambos são da Temas e Debates e a tradução, impecável,  é assinada pela mesma pessoa, Jorge Fallorca.
As estórias podem envolver-nos, podemos amá-las, mas o amor perfeito surge na pureza da língua, razão pela qual a tradução é fulcral para não nos desviar do seguimento da ponta da caneta do escritor, ligada à nascente da escrita. Uma má tradução é um cruzamento no meio de uma via rápida; se não nos apercebermos podemos caminhar em sentido contrário ou sermos colhidos por ideias desgovernadas, fáceis e sempre mentirosas.

3 comentários:

  1. Não tive acesso à revisão, como de costume, e também não tive direito a nenhum exemplar

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  2. Calculo que nem tenha sido revisto, digo eu... Mas a tradução, é outra conversa, nem damos conta que é traduzido :)

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  3. Isso escrito assim, abre solta apetite por tais alfarrábios. Bom, bom teria sido ver-te lacrimejante, ou falarmos dessas coisa de volta de uns púcaros.

    Q'ando é que metes calcanhos ao caminho e me apareces em Curitiba?

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