quinta-feira, 14 de abril de 2011

Comboios da minha vida

16 anos foi o maior período em que vivi na mesma casa. A trinta metros da linha do comboio e a cem da estação, íamos à janela para ver se o meu pai vinha naquele comboio ou não e saíamos de casa para o apanhar quando as campainhas começavam a tocar.
Viver lado a lado com a rotina dos horários da passagem dos comboios era absolutamente normal. Quando mudámos de casa quis o destino que a linha do Oeste ficasse a poucos metros na janela da cozinha. Da janela da casa seguinte via-se a cerca de cem passos. Anos e algumas casas mais tarde, voltei a uma casa que distava os mesmos cem metros da estação e hoje estou a cem metros da linha férrea, embora Entre-Estações, como se fosse uma réplica humana de Entre-Campos.
Numa ocasião, há muitos anos, vieram uns primos lá do Alentejo com consultas e exames médicos marcados num qualquer hospital e hospedaria marcada em nossa casa. Quando nos levantámos de manhã estavam as criaturas com o estenderete do sofá cama já arranjado, cobertores dobrados e eles sentados a olhar para o vazio, com cara de quem tinha feito uma directa.
Dados os bons dias e os cumprimentos perguntámos a que se deviam aquelas caras. Responderam que não conseguiram dormir com o barulho. Barulho? Que barulho? Ninguém ouvira nada. Apesar do sono lá arranjaram convicção e força para imitar o barulho que se ouvia, aí de vinte em vinte minutos ou de meia em meia, hora, eles não sabiam ao certo, mas tinham a certeza que era um grande barulho, um barulho barulhento e rugidor. Mas que mistério! Como é que um barulho assim só os acordara a eles e nós, cinco pessoas, não ouvíramos nada?
Já não sei quem foi que se lembrou então dos comboios, aos quais estávamos habituados e que passavam por nós sem nos beliscarem o sono.
Durante anos era o meio de transporte de eleição de quem morava na linha de Sintra como eu: portas abertas e gente pendurada nos degraus era um cenário completamente normal, enquanto lá dentro os passageiros seguiam ensanduichados e colados uns aos outros. A estação de Queluz era um susto: entravam os queluzes, como lhes chamávamos, à força toda e as carruagens já cheias ficavam irrespiráveis.
Devido à falta de segurança e ao facto de as pessoas andarem literalmente de fora do comboio, os acidentes sucediam-se e um colega meu perdeu uma perna nestas brincadeiras.
Muitas das visitas aos meus avós no Alentejo eram feitas de comboio até Lisboa, barco até ao Barreiro, outro comboio até Beja, depois de automotora até Moura e, finalmente, de camioneta até à aldeia; a automotora era uma coisa cónica afunilada, vermelha e branca, muito fumarenta, ruidosa e com bancos de sumapau, como se dizia na altura.
Hoje viajo com alguma frequência no Alfa para ir a Coimbra e já não uso o comboio diariamente nas deslocações para o trabalho, mas guardo memórias de viagens fabulosas no sul da Polónia em direcção a Zakopane, pela Itália, Finlândia ou em Inglaterra, sem falar na volta do Tua, impressionante, e muitas, quase todas, as linhas de Portugal.
Viajar de comboio tem um romantismo que nenhum outro transporte consegue atingir, principalmente se os companheiros de viagem forem gente simpática.

2 comentários:

  1. Vou morrer sem fazer uma data de coisas que gostava. Viagens de comboio. Na linha do Tua ou no Transiberiano. Paciência. As que fiz, umas mais memoráveis do que outras foram todas na CP. Houve uma, talvez a última vez que vim de Lisboa para a "capital", saí às 14h e só cheguei a Campanhã lá para a meia-noite! Comboios...

    ResponderEliminar
  2. Venho da Pó dos Livros só para deixar um sorriso e que venha muitas vezes a Coimbra.:)

    Tenho paixão por viagens e adoro viajar de comboio. O Alfa é o meu preferido.
    Lá fora só andei de comboio em Espanha e em França em volta de Paris, e de Nice para o Mónaco.
    Ah, e um segredo: nunca roubei um livro porque utilizo muito as bibliotecas e gasto rios de dinheiro em livros, agora com a crise, menos, c'est la vie!

    ResponderEliminar